Conto | Otavio Linhares

Heróis


Ilustração: Renato Faccini
Herois



por um tempo conviver com a violência foi fácil. a piazada só se orgulhava dos que davam porrada. dos que botavam os outros pra correr. é que não importava apanhar ou bater. importava sair na porrada. um dia você batia e no outro você apanhava. só que os mestres eram aqueles que só batiam e nunca apanhavam. esses eram os idolatrados. os intocáveis. havia uma certa mística como que uma aura no entorno desses piás. cada um tinha um apelido que vinha de uma deficiência do próprio corpo ou de uma característica que fosse muito marcante e que muitas vezes era seguido do nome do bairro em que moravam. o zóio da vila izabel. o perna do fanny. o cavêra do cic. o irmão do nêgo do água verde. tenho um tio que vendeu maconha um tempo junto com o irmão do nêgo do água verde. a tia conta que ele até foi preso uma vez. eu não tinha nascido ainda. foi só quando ele começou a vender pra sobrinhara - da que a família caiu de pau. nunca comprei dele. nunca fumamos juntos. e nem me liguei que ele podia ter sido um traficante avião ou coisa parecida. foi ele que me ensinou que se passasse cocaína no baseado a gente tinha que chamar de cabral. ele sempre fumava um cabral pra baixar a lombra. algumas vezes cheguei na casa dele e ele estava chapiros no sofá vendo uma tela. ele adorava ficar chapado na frente da tv porque o movimento dos desenhos animados criam outros desenhos animados e assim sucessivamente por horas a fio dentro da cabeça até apagar e acordar no outro dia e começar tudo de novo. o gato tom é o meu favorito. ele diz. repara como ele sempre se fode mas no fim acaba tudo bem. faz tempo que não vejo o tio. a última vez foi quando um policial civil famoso por roubar a piazada que voltava das festinhas durante a madrugada me pegou junto com uns amigos. a gente estava voltando de uma festa e tinha bebido pra caralho e cheirado um vidro inteiro de éter. nunca tinha cheirado éter antes. já tinha cheirado tíner em casa e benzina com a galera. éter era a primeira vez. um amigo de um amigo de um amigo ia fazer uma festa numa casa abandonada lá na vila izabel e a gente ficou sabendo porque todo mundo sabe que não é pra contar e acaba contando pra todo mundo e resolvemos que a gente ia lá porque a piazada nunca tem o que fazer e fica só zanzando por aí atrás de algo pra bater ou apanhar. a festa estava massa. no nível da galera. música alta e um monte de tubão pra ficar bêbado rápido e vomitar e voltar a beber e vomitar de novo. não é pra isso que a gente bebe! grita o banha que é irmão do rodriguinho que é o dono da festa. ele já está bem crazy e a gente também vai ficando ao longo do tempo. só que ficamos ali de boa entre nós porque não somos grandes o suficiente pra despertar o desejo das meninas nem fodas pra caralho pra que alguém queira ficar ouvindo nossas estórias durante a noite. a verdade é que sempre ficamos ali entre nós falando das nossas proezas pra nós mesmos. e no fim da festa um dos piás que estava com a gente passou muito mal e trouxemos ele carregado numa escada. não sei da onde saiu aquela escada. de repente tinha uma escada ali e colocamos o piá em cima dela e subimos até o água verde. a gente estava nuns seis, sete. o pior é que a gente estava tão cansados que subimos quietos sem fazer zona. chegando no shopping água verde a duas quadras de casa já fodidos pra caralho de carregar o monstrão chega um chevettinho branco derrapando e de dentro saltam três caras já com os três oitão nas mãos. dois eu reconheci na hora. da infância na vila. não lembro o apelido deles. só das caras. jogamos bola algumas vezes na pracinha. e o terceiro era um velho. um cara de uns cinquenta anos. muito engraçado isso. na minha cabeça e na do meu primo / ele me contou depois que tinha pensado a mesma coisa / achamos que os caras iam ajudar a gente. hahaha! nada a ver. que burros nós dois. foi muito bizarro. os caras levantaram aqueles trabucos e mandaram todo mundo pra parede enquanto o cozidão ficou no chão estatelado em cima da maca escada falando merda pros policiais. agora nem sei mais se eram policiais. eles podiam ser qualquer coisa que a gente teria caído na conversa deles de qualquer jeito. também né! com aquelas armas apontadas pras costas que cê queria que a gente fizesse?! perguntaram o que ele tinha usado e se a gente ainda tinha um pouco daquilo. aí o irmão dele falou que ele era bobo assim desde criança. queria ter rido. ali naquela hora queria que todos tivessem achado graça da piada e entrassem numa catarse cômica e começassem a rir um do outro e simplesmente se cumprimentassem e fossem embora bem de boa como se o mundo fosse um lugar legal pra se viver. mas não. levaram todo o resto do nada que ainda tinha sobrado nos bolsos da piazada. um isqueiro e meia dúzia de cigarros. nada de dinheiro. imagina que um bando de piá ia ter grana a essa hora da madrugada. só que sacaram o bafo de éter e fizeram mais algumas perguntas ameaçando a gente e ainda deram uns tabefes na cara do sapo que resolveu se justificar. quem ficou calado de perna aberta e cabeça baixa não apanhou. só o idiota do sapo que resolveu argumentar e ficou com um roxão na boca. os caras foram embora rindo. depois descobrimos que eles tinham roubado mais uma galera de amigos nossos durante aquela noite. muita gente jurou os caras de morte. só que eles eram os donos das armas e dos distintivos e no fim ninguém acabou cumprindo suas juras. cada um ficou na sua e aos poucos a raivinha da piazada que tinha sido roubada foi virando rancor e dor de barriga e mandíbula travada e aí voltamos pra primeira lei dos bairros. têm uns que batem e têm uns que apanham. é assim que a gente extravasa nessa idade. e bem nessa época eu estava de mudança. estava saindo do nosso apartamentozinho fedido no portão e estava indo prum mais barato e mais legal lá no santa quitéria. eu não trabalhava. mal e porcamente estudava. minha mãe estava falida. minha irmã já tinha ido morar com a vó mãe da minha mãe pra diminuir as despesas. aí a gente teve de ir morar num lugar mais barato. então esse meu tio que estava sempre de varde se prontificou a ajudar a gente. fez a correria com a mudança. na família da minha mãe todos sempre disseram que esse tio sempre foi bom de correrias. só hoje entendo o que eles quiseram dizer. quer ir na boleia do caminhão? ele perguntou pra mim. sorrimos. esses tipos de sorrisos que só saem das intimidades. são bons esses sorrisos. boi preto conhece boi preto. meu tio tinha uma kombi e sempre me levava pro colégio. gostava de passar lombadas no pau e de acelerar nas descidas com a criançada dentro. e aí tinha uma ladeira com um viaduto que ele sempre passava por baixo e tacava o dedo na buzina e fazia um puta eco. era legal pra caralho. a kombi dele era azul calcinha com caçamba e fazia um barulhão quando chacoalhava e tinha um espaço entre a porta e o banco do motorista. não sei como mas eu cabia nesse vão e ficava com a cabeça feito um cão pendurada pra fora levando vento na cara. era demais. subi na boleia do caminhãozinho e ele mandou que o motorista tocasse até nosso novo endereço. esticou o braço por trás de mim e me apertou num abraço afetuoso. e como vai a vida? vai indo. tá estudando? mais ou menos. e os baseadinho? tá fumando? de leve. era a segunda vez que ele iniciava um papo desse comigo. a primeira tinha sido na hora que a gente estava carregando o caminhão. achei estranho. duas vezes em pouco mais de duas horas. eu nem gostava de fumar maconha. fumava só pra ficar perto da galera e pra gostarem de mim. sempre passava mal e vomitava. ficava horas com a pressão baixa suando e rolando de um lado pro outro. não sei se eu queria falar isso com ele mas como não falava com adultos sobre isso achei que podia ser uma forma de desabafar algumas coisas que estavam entaladas e aí acabei contando sobre o éter e a escada e os civis. ele fechou a cara. ficou sério. um cara assim assim e dois piás assim assim? é. porque? aí ele falou o nome dos dois piás e do civil. fiquei com medo na hora. talvez eu tivesse começado uma guerra. ele disse que ia resolver isso. aí fiquei com mais medo. óbvio que esses três iam querer pegar a gente depois dessa. na hora até quis dizer pra ele não ir atrás dos caras mas no fundo o que eu queria era que ele fodesse com aqueles piás no mínimo como eles foderam com a gente naquela noite. então fiquei quieto. meio querendo deixar na mão de deus pra ver no que é que ia dar. só que deus é um cara que gosta de ver o cu dos outros pegando fogo com os bombeiros de greve. foi a gente tocar no nome dos caras e PLAW! dito e feito. para o caminhão! o que foi tio? ó quem tá ali na esquina. que merda. foi a gente falar nos piás e eles estavam ali na padoca da esquina fumando um cigarro e tomando uma bera. o tio mandou parar o caminhãozinho. não tinha onde eu enfiar a cara então fiquei de cabeça baixa mirando o próprio pinto. ele desceu e os piás já chegaram cumprimentando com um sorrisão na cara como se tivessem vendo um herói. eu tenho um herói. todos têm um herói. e quando o teu herói chega perto de você a única coisa que você quer fazer é partir pra cima dele e tocar nele como se ele fosse um deus. acho que foi isso que os piás sentiram nessa hora. o primeiro já esticou a mão querendo cumprimentar meu tio. e aê! só que nessa hora ele pegou a mão do piá e apertou com tanta força que fez o copo de cerveja que estava na outra mão explodir no chão PLASH! achei massa. a piazada que estava na padoca nem se mexeu. ficou todo mundo em silêncio. ali no bairro todos sabiam quem era o meu tio. menos eu. ele era o cara. o herói de toda aquela geração. fiquei com menos medo nessa hora mas achando que mesmo assim eu ainda ia levar um pau na semana seguinte. ele puxou o piá bem pertinho e botou a boca dentro da orelha dele. não deu pra ouvir o que ele cochichou. nem foi lá cumprimentar os outros caras. falou o que tinha pra falar e saiu. voltou pro caminhão. bateu na perna do motorista e mandou seguir. eles não vão mais incomodar. e se eles chegarem perto de você de novo fala comigo. beleza? dito assim dessa forma fez com que meu coração por um instante quisesse sair da boca. minha barriga ficou fazendo uns barulhos. eu não conseguia falar. estava muito emocionado. queria ter dito alguma coisa. tinha esperado a vida toda por esse dia. estava ali na minha frente o cowboy que faltava no meu filme. eu sentadinho no banco do meio do caminhão olhando pra ele e o sol lá no fundo projetado como numa tela e o amarelo do lusco fusco brilhando a silhueta do rosto dele e o chapéu e o cigarro no canto da boca e o radinho do caminhão tocando raindrops keep fallin’ on my head que é a música que eu sempre quis que tocasse nessa hora. por um instante o tempo vira câmera lenta e ele virando o rosto devagar pra mim pergunta que foi? nada tio. ele dá dois tapas na porta do caminhão. bóra! e partimos rumo ao santa quitéria. acabei não comentando com a mãe sobre isso. acho que tudo ficou como deveria ter ficado. e também não vi mais os piás que apavoraram a gente naquela noite. também não voltei mais àquele bairro. duvido muito que por lá ainda pairem heróis. heróis são como nuvens.


Otavio Linhares nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Com formação em Filosofia, História e Artes Cênicas, é editor da revista de literatura curitibana Jandique e do selo Encrenca — Literatura de Invenção. O conto aqui publicado integra seu mais recente livro, O cão mentecapto, que será lançado neste mês. Vive em Curitiba (PR).