Conto | Otávio Duarte

A iluminação de Ana

Ilustrações: Marília Costa
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Ana está rezando. Ela só tem oitenta. Não faz exercícios, pouco se movimenta e o corpo está encolhendo. Uma vez por dia, ao menos, ela reza. Ajoelhada, Ana não bate no peito, não se flagela, não se atormenta. Repete as orações, o terço bizantino completo. A reza em casa, diferente da que faz na igreja, é um ato solitário, de comunhão íntima, mais intuída que sentida. Hoje, Ana terá uma noção ainda mais clara, no quarto que transformou em capela. 

Não de súbito, não uma revelação. Bem lentamente, a luz começa a mudar. É difusa, fornecida apenas pela vela em frente ao quadro da imagem da Virgem Maria a pisar na serpente. Uma gravura, impressão emoldurada. O vidro reflete o brilho da chama. Há um odor suave de incenso, da vela a derreter-se, talvez. 

Ela nem percebe o quarto a iluminar- se, absorta nos mantras, nas repetições das Ave-Marias. — Ana! chama a voz gentil. Sai devagar da imersão. O cheiro é mais adocicado e forte, o quarto tomado pelo perfume de rosas recém- -colhidas. Quem a estará chamando, na casa solitária? 

— Ana! O arcanjo é uma visão maravilhosa. 

— Deus sabe de você. Ele vê. 

Ana estremece. Prostra-se, o rosto contra o assoalho de madeira, não limpo há uma semana. A superfície fria apazigua o calor da testa. 

— Eu não sou digna... O arcanjo mantém as mãos levantadas, palmas abertas, braços próximos ao corpo. Rosto no chão, Ana procura lembrar do vislumbre as feições nobres, o cabelo loiro, encaracolado, a cair sobre os ombros. Um halo de luz brilhava ao redor da cabeça angelical? 

Ela não teve tempo para reparar no rosto de traços suaves, nos cristalinos olhos azuis, no tecido branco da manta rica, mas simples, nas asas majestosas... Deus vê... uma pecadora, uma alma simples... como poderia incomodar a majestade tremenda? 

— Louvado seja o Santo Nome, louvado seja! 

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Ana não quer tremer, mas não consegue evitar o descontrole do corpo. Nunca foi assim que se viu, imaginou, frente ao momento supremo. Deus é piedoso, magnânimo e onisciente. Poderosos e humildes têm o mesmo valor ante a potência celeste. Por que uma pecadora não poderia receber a atenção divina? A própria Maria Madalena não santificou-se pela humildade e pelo coração generoso? 

— Ana, é chegada a hora da redenção. 

Ana não sente mais o frio do quarto austero. Toda a vida ansiou por isso. Se tivesse coragem, levantaria a cabeça, não para confrontar o arcanjo, examiná-lo com olhos curiosos e igualadores, mas para buscar na sala as imagens do pai, Waldemar, da mãe Virgínia, e dos avós paternos, Antenor e Laura; porque dos maternos nunca conseguiu a generosidade de mantê-los no mesmo patamar, na parede. Um pecado, venial, é certo. Ali, do quarto, sempre pode avistar as fotos queridas, não por idolatria, jamais, mas pelo amor, saudade, respeito aos ensinamentos que lhe transmitiram e fizeram a base de sua vida. 

O frio dissipa-se e Ana acha mesmo que experimenta uma sensação de relaxamento e bem-estar. Felicidade com a presença do arauto do Senhor. 

— É hora de redimir os pecados. 

Ana pode sentir a claridade que domina a casa. Seus olhos já não veem bem há muito tempo. Está quase cega.

— Redimir os pecados, glorioso arcanjo? 

— Redimí-los, Ana, apresentar-se limpa ao Criador. 

— Limpa de todos os pecados? 

— Até mesmo do Pecado Original. 

Ana considera o alcance da revelação. Nas questões de fé, aprendeu que o batismo perdoa o Pecado Original. Pois todo homem e toda mulher nascem pecadores, frutos e herdeiros do pecado. Nunca soube discernir se o Pecado Original aconteceu por ter o homem procurado o conhecimento, ao provar do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, ou se foi por surgir de mulher, pela tentação que induz ao homem, e, portanto, por levá-lo a provar de todos os frutos e a cometer desatinos. E, assim, toda mulher condenada a ser agente da perdição, perpetuadora do pecado. Isso turvava-lhe a mente. O batismo não era suficiente? Homens e mulheres são pecadores por princípio? 

— O não entendimento é pecado? Ou um obstáculo a ser vencido? 

— Dúvida nenhuma resiste à verdade e ao calor da fé, diz o arcanjo. — É justo. Só pela fé minha vida teve sentido, só por ela pude resistir aos abalos da existência.

— A existência se justifica na comunhão divina. 

Ana sabe que é correto. E que a honra suprema da presença do arcanjo é o corolário de uma vida justa, não obtida por pecadores. Ainda assim, alguma coisa surge, sem controle. Não ousa indagar se a remissão de seus pecados beneficia os próximos, se os ajuda a conseguir a felicidade, o favor celeste. 

Felicidade é uma condição que Ana não teve como alcançar. As provações foram muitas. Na maior delas, sua irmã Laura, Deus a tem, recebeu a graça de conceber a mais linda criança. Ana foi abençoada em ser a madrinha. Quanta alegria, quanto orgulho sentiu em ser a segunda mãe aos olhos do Senhor! Christina trouxe encantamento à pequena família. Os avós, Waldemar e Virgínia, fizeram festas, todos os conhecidos convidaram para apresentar a neta. Uma alegria imensa. Talvez tenha sido o mais belo ser inocente que o Senhor colocou sobre a face da Terra. De brilhantes olhos castanhos, pele quase leitosa, claros cabelos encaracolados, ela foi por dois anos o centro de tudo. Quem não se comovia com o choro espontâneo dos motivos simples — a fome, a contrariedade de não ter algum desejo qualquer atendido — ou com o riso límpido, que a todos enchia de contentamento e esperança? De ver a família renovando-se na casa de Laura? A criança engatinhando, dando os primeiro passos, revelando nos balbucios a inteligência, articulando as palavras, entabulando nomes, mostrando o entendimento e reconhecimento de pais, tia e avós?
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Tiana! Tiana! ela dizia ao ver a madrinha; tia e Ana — com os gritinhos que dava, de alegria, pela maravilha que era, de ser tão nova, bonita, inteligente, um presente de Deus. 

Quando Christina começou a apresentar problemas, Ana deu apoio firme à Laura e ao marido dela, Antonio, homem de fé. O que era belo transformou- se numa prova de sofrimento, a mesma travessia de Jó, e só a certeza do caminho divino manteve a família no rumo do bom entendimento. Quantas noites Ana ficou ajoelhada, pedindo a divina intercessão em prol da pequena criatura? 

O avanço da doença foi um tormento. Christina deixou de ser alegre. Os nervos começaram a retesar-se. Ela ficava encolhida, joelhos juntos à cabeça. E havia dores. Christina tremia, o corpinho molhado, respiração ofegante, tinha surtos, ataques, nos quais jogava-se para todos os lados, a cabeça batendo em qualquer superfície que encontrasse, um som indistinto saindo da boca, monótono, repetitivo, enjoativo, assustador. Ela espumava e não era a escuma dos insensatos, pois tempo nenhum tivera para buscar razão e sentido, mas algo mais primitivo e poderoso, incontrolável. 

Christina esmaecia enquanto o corpo definhava. Não recuperava as forças e permanecia em alternância de surtos violentos e pausas de gemidos intermitentes, interrompidos somente pela benção de sonos exaustos e pouco frequentes, até que a dopagem, os remédios pesados, dessem a falsa impressão de uma trégua. Pois não houve melhora alguma, um momento sequer em que os cândidos olhos pudessem reconhecer os pais, a tia, um apoio, um abraço, um choro, um consolo. 

Depois do rosário de hospitais e médicos, a morte foi um consolo. Deus apiedou-se e deu fim ao sofrimento. Mas a provação mostrou-se demasiada. Abalados, os pais de Ana e Laura feneceram. Viviam em tristezas e recolhimento, não resistiram aos rigores do envelhecimento, sem as alegrias da infância e da juventude, e logo partiram. Vírginia primeiro, Waldemar quase em seguida. Mortes por razões fúteis, segundo os atestados médicos burocráticos, e não pela ausência de motivos para permanecer vivos. Também Laura e Antonio sentiram. Ficaram distantes, isolaram-se em partes distintas da casa, quartos separados. Antonio, homem de fé, metódico, cumpridor de seus deveres, um dia sumiu, e isso foi o golpe definitivo para Laura. 

Pouco a pouco, perdeu o sentido das coisas. Passou a discursar despropósitos, via e falava com a filha, o marido ausente, os pais mortos, a própria Ana envolvida nesse mundo de imagens, sem ser percebida de verdade nos sonhos da irmã. Foi impossível deixá-la sozinha na antiga morada conjugal. Empregadas a roubavam, deixavam passar necessidades, viver em sujeiras. Enfermeiras a dopavam, aumentavam os danos e Ana, que buscava ser o sustentáculo da desvalida, teve de ceder à razão. Internou a irmã num asilo, onde receberia, ao menos, alguma atenção. E também isso, infelizmente, é preciso reconhecer e pedir o perdão a Deus, foi um remédio que apressou o fim. De incontrolada, Laura se tornou cada vez mais apática, perdida em devaneios que não externava, sem reconhecer nada do mundo, até que, também ela, foi prestar contas dos seus atos e da vida infeliz. E Ana viu-se absolutamente solitária, dona de duas habitações vazias, cheias de lembranças. E se a fé a manteve, só ela abriu rumos na estrada da escuridão. 

Encontrou amparo na igreja. Tornou-se ministra e participante de pastorais. Ajudava nas missas, recitava passagens do Evangelho, recolhia os donativos. Comungou da ação comunitária e visitou os pobres. Fez quermesses, distribuiu o que arrecadou e o que pôde das próprias posses, que nunca foram muitas, pois não trabalhava e não tinha como aumentar o que ficou de herança da família estimada. Continuou no apartamento dos pais, quase intocado, com todos os móveis antigos, no prédio gasto e agora mal conservado na Rua Doutor Pedrosa, onde sempre vivera. Passou a viver do aluguel da casa da irmã, nas Mercês. Sempre pouco, pois não se permitia ser usurária. E que ainda assim atrasava, escasseava e acabou não vindo mais. E quanto, premida pela necessidade, teve de recorrer à lei dos homens, descobriu que a justiça terrena não é célere nem se inclina aos proprietários em acordos de boca, feitos há muito tempo. 

— Minha redenção, glorioso arcanjo, perdoa o abandono de minha irmã, que joguei no asilo? 

— O mais simples ato pode relevar o pecado mais grave na balança divina. O Senhor tudo sabe, tudo considera. 

Não que Ana esperasse compensação pela caridade que praticava, na dedicação à comunidade religiosa. A animação das crianças miseráveis, o brilho dos olhos ao receber os alimentos e agasalhos usados eram um bálsamo para a dor surda da solidão. 

Gostava das missas na igreja do Senhor Bom Jesus dos Perdões, na praça Rui Barbosa. A Catedral era mais bonita, imponente, com belos vitrais, várias capelas, às vezes, até cultos com a Camerata Antiqua, que executava músicas tão bonitas, desconhecidas para ela. Mas a praça Tiradentes era longe e a idade pesava nas caminhadas. Quando Laura vivia, frequentava a paróquia Nossa Senhora das Mercês. Por isso, na morte da irmã, mandou rezar lá as missas de 7º dia e de um mês, como Laura havia feito para Christina, perto da casa delas. Depois, porém, era a Senhor Bom Jesus que preferia e onde encomendava as missas pela irmã, sobrinha e pais. Até pelo cunhado Antonio rezava, de vez em quando, perdoando o desaparecimento que agravou a doença de Laura. 

A acústica da Senhor Bom Jesus sempre foi boa. Ana gostava de ouvir os hinos, o canto dos fiéis ressoando claro e forte, principalmente o das mulheres, que cantam melhor e não têm vergonha de saudar ao Senhor. Nessas horas, ela enlevava-se, cantava também, ouvindo a própria voz, um pouco mais fraca, distinta para si, do coro que integra e rejubila. E sentia-se bem. Feliz. Ana acendia velas pelas almas da família. Ex-votos, nunca deixou na gruta em frente à igreja, por não ter graça direta recebida por promessa e nem mesmo por quem pedir, porque ela não precisava mais, sabia que sua hora se aproximava. Não era uma freira, entretanto, não renunciara à vida mundana quando moça, não vivia inteiramente pela causa de Deus. Era, sim, uma fiel que procurava amparo na casa divina. Fora dos trabalhos de que procurava participar, das missas, das rezas, a vida continuava, com atribulações, questões, dúvidas, decisões. 

Tiana! o gritinho querido, quanto tempo ecoou em seus ouvidos... e nunca mais tê-lo ouvido não foi tudo. 

Das amigas de juventude, mantinha contato ocasional com apenas uma, Neusa, também solteira e ministra. Neusa acompanhou o purgatório de Ana, viu a sucessão de mortes e foi aos enterros no cemitério do Água Verde. Conhecia Laura da paróquia das Mercês, foi ao casamento dela e estava no sepultamento, com alguns conhecidos. Neusa tinha dois irmãos e uma irmã casados, muitos sobrinhos, alguns já constituindo suas próprias famílias. Muitos compromissos, era natural que se encontrassem pouco e acabou afastando-se também. Ana sozinha, envolveu-se ainda mais na rotina das atividades religiosas. Pouco participava das reuniões e terços nas casas de outras pessoas. Era tímida, avessa, quase não sentia alegria. Ainda assim, conheceu melhor alguns parceiros de prática cristã que se compraziam nos encontros, divertiam-se, e até gostou deles. Mas tinha medo, preferia o isolamento. Gostava de rezar nas missas, onde a comunhão das preces respeitava as dedicações individuais e, principalmente, em casa, quando podia desenvolver mais as extensões do terço. Rezava-o no final da tarde, quando ainda não estava com sono, antes de distrair-se com a televisão. Do prazer dos mistérios, apreciava o da alegria, os  gozosos; da dor, dolorosos; da ressurreição, gloriosos. 

Nos gozosos, a anunciação, a suprema ventura: o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a Sua sombra; a visita de Maria, cheia de graça, à Isabel, que concebeu na velhice; a viagem para o recenseamento e o nascimento no estábulo; a apresentação da criança à casa do Senhor em Jerusalém; as caravanas anuais ao templo, o extravio de Jesus aos doze anos e o encontro dele entre os doutores da Lei. 

Dolorosos, os mistérios da angústia e do sofrimento: a agonia de Cristo, Nosso Senhor, quando suou sangue no horto, a oração para combater a tentação; a flagelação atado à coluna; a coroa de espinhos; o calvário; o peso da cruz sobre os ombros, o encontro com a mãe dolorosa, Maria; a crucificação e a morte na cruz. 

Nos mistérios gloriosos, a ressurreição: a ascensão de Nosso Senhor; a vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidos com Maria Santíssima; a assunção de Nossa Senhora e a coroação da Virgem como rainha de todos os anjos e santos. 

Sempre se emocionara com a ladainha. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus... Santa Virgem das virgens, Esposa do Espírito Santo, Mãe de Jesus Cristo, Mãe da divina graça, Mãe puríssima, Mãe castíssima, Mãe inviolada, Mãe amável, Mãe do bom conselho, Mãe do Criador, Mãe do Salvador, Mãe da Igreja, Virgem prudentíssima, Virgem venerável, Virgem digna de louvor, Virgem poderosa, Virgem misericordiosa, Virgem fiel, Espelho de justiça, Trono de sabedoria, Causa da nossa alegria, Vaso espiritual, Vaso digno de honra, Rosa mística, Torre de David, Torre de marfim, Casa de ouro, Arca da aliança, Porta do céu, Estrela da manhã, Saúde dos enfermos, Refúgio dos pecadores, Consoladora dos aflitos, Auxílio dos cristãos, Rainha dos anjos, Rainha dos patriarcas, Rainha dos profetas, Rainha dos apóstolos, Rainha dos mártires, Rainha dos confessores, Rainha das virgens, Rainha de todos os santos, Rainha concebida sem pecado original, Rainha elevada ao Céu em corpo e alma, Rainha do santíssimo rosário, Rainha da paz... 

Rogai por nós, rogai por nós, rogai por nós, rogai por nós... 

O papa João Paulo II introduziu o quarto bloco de mistérios, os da luz. Meditação sobre momentos relevantes da vida pública de Cristo, entre o batismo e a paixão. Luminosos mistérios: o batismo no Jordão; a autorevelação nas bodas de Caná, com a transformação da água em vinho; a pregação e o anúncio do advento do reino de Deus, com o apelo à conversão e o perdão aos pecadores; a transfiguração no Monte Tabor: a confirmação aos apóstolos pelo Pai Supremo, o incitamento à que dessem ouvidos a Cristo e, finalmente, a instituição da sagrada eucaristia: Cristo faz-se alimento com o seu corpo e o seu sangue, sob os sinais do pão e do vinho, testemunhando o seu amor pela humanidade e disposição de oferecer-se em sacrifício pela sua salvação. 

No início, fora difícil para ela, acostumada com a perenidade dos costumes de devoção, entender que havia um novo espaço a ser cumprido nas orações. Mas sabia que a igreja evolui para melhor orientar o povo de Deus. Antigamente, quando fora batizada, e depois, quando estudara o catecismo e optara pela confirmação do crisma, não eram as missas em latim? Ficou bem melhor, talvez não tão bonito e grandioso, mas mais próximo, quando tudo passou a ser em português. Como poderia participar da missa, subir ao altar, pronunciar as palavras sagradas da Bíblia, se as mudanças não tivessem acontecido? Até conviver com os padres, conhecê-los, saber que eram humanos e tinham, é verdade, defeitos e ressalvas, era melhor do que antes. Gostava particularmente do padre Elói, jovem ainda, brincalhão, que contava piadas na missa, mas que sabia transformar o sermão em ocasião de reflexão e aprendizado. 

Ele explicou que os quartos mistérios ressaltavam o reino divino já presente, personificado em Jesus, e que, assim, o Rosário se completava como compêndio do Evangelho, sintetizado antes no terço e agora no quarto. 

Quando Padre Elói discorreu sobre a parábola do filho pródigo, Ana entendeu, pela primeira vez, que esse filho não tinha se perdido por fraqueza, mas pelo desejo de conhecer as coisas do mundo, desejo supremo de todo homem, e que, afinal, tendo sofrido com as decisões que tomara, da busca do hedonismo, crescera com elas, com as alegrias e tristezas que experimentara, e soubera reconhecer que estivera errado e que a casa paterna sempre fora o ponto central de sua vida, para ele, que perdera tudo por dela ter se distanciado e optado pelos prazeres fáceis. A casa paterna era a casa de Deus. Pois quem erra e arrepende-se sinceramente, abandona os vícios e costumes enganosos, está pronto para receber a iluminação divina, talvez até melhor do que as pessoas que nunca falharam, porque consegue vencer um calvário. Deus é misericordioso e sapiente, sabe o esforço necessário ao pecador para que se reconheça em erro. E o bom pastor sempre procura os desgarrados, para que tenham proteção no rebanho divino. 

Para a remissão, dizia padre Elói, é preciso o arrependimento verdadeiro, que prepara a alma para a lavagem dos pecados. Por isso, Ana rezava também pelo cunhado Antonio, para que conseguisse esclarecimento divino e percebesse a culpa de ter abandonado Laura no caminho das tormentas, logo após a morte da adorada Christina, renegando os votos do matrimônio e agravando sua doença, até a loucura e a morte. 

Ela sabia que, assim como o amor do pai ao filho pródigo superava os ressentimentos, ainda que o outro filho, o fiel, não o entendesse, todo cristão verdadeiro precisa ter generosidade na alma. Perdoar mágoas e ofensas. Por isso, seu coração apertava-se quando via os espaços descorados na parede da sala, onde por muito tempo estiveram os retratos dos avós maternos, Ruy e Teresa, os quais ela retirara e guardara depois da morte de sua mãe, Virgínia. Pois eles, que moravam longe, em Belo Horizonte, e nunca apareciam, vieram então, com a tia Renata e um dos filhos dela, o primo Zé Márcio. Quando Laura morreu, não muito depois, o avô Ruy ligou querendo saber do destino da casa dela, nas Mercês, porque tinham ajudado na compra, deram dinheiro, era de Laura, não de Antonio, queriam vender e repartir o dinheiro com Ana. Ela nada conhecia dessas coisas, mas tinha visto o esforço da mãe e do pai em ajudar Laura a arrumar casa depois do casamento, porque Antonio não tinha condições, ganhava pouco como contador. Por isso, ficou revoltada, sem saber o quanto havia de verdade e com a falta de sentimento em meio a tantas tragédias. Da briga não saiu solução e foi definitivo o distanciamento da única parte da família que lhe restava. Enquanto envelhecia, Ana não mais falou deles com ninguém. Só soube das mortes dos avós maternos num acidente de carro por um telefonema do primo Zé Marcio. E assim findou a comunicação com os parentes. 

Lembranças cortadas pela percepção do aumento do calor na testa, da febre que aumenta. O corpo tremendo, Ana levanta-se do chão frio, onde estava deitada, e volta a ajoelhar-se, sem ousar ainda levantar a vista para a presença angelical. 

— Eu peço perdão pelo orgulho e pela soberba! Minha solidão foi minha culpa, mais que resultado dos desígnios celestes!

Absorvida pelas próprias considerações, Ana não repara no sentido da resposta do arcanjo ou mesmo se ele responde. Recordações assomam à memória, das viagens na infância para Belo Horizonte. De ficar na casa dos avós maternos, Ruy e Teresa. De escutar música na radiola do avô, que gostava de boleros e de orquestras. De saírem, ela, Laura e a mãe Vírgina, com a tia Renata, ainda solteira, que brincava com ela, a sobrinha mais nova. E que compravam doces e sorvetes. Lembra de bolinhos de graxa, café com leite, bolos de fubá, sente até mesmo o cheiro deles e um sentimento forte a faz engasgar, não consegue segurar os gemidos e as lágrimas. 

Só depois reina o silêncio, enquanto acalma-se, põe os pensamentos em ordem. Então, lembra-se do perdão. 

— Estás pronta, Ana, o coração limpo de toda mágoa? É o que pergunta o arcanjo ou o que ela pensa ouvir. 

Mas, se o arrependimento e o choro convulsivo a aliviaram do peso do afastamento dos parentes, resta a lembrança de Antonio. 

4
Dez anos depois da morte de Laura, Ana resolveu rezar pela alma da irmã na igreja das Mercês, que frequentara antes com a amiga Neusa. E foi lá que a reencontrou. Neusa, junto com Antonio. Quando a viram, os dois perderam a cor. Nada foi dito. Levantaram- se do banco onde estavam e saíram da igreja, foram embora. Nunca mais os encontrou, nunca teve notícias. 

A testa explode de calor, Ana sente uma onda de dor vindo do estômago, que a faz estremecer e cair ao chão. Tem dificuldades para respirar, a garganta se fecha, ela tosse e isso aumenta as dores e as contrações do corpo. A visão começa a escurecer. Ana olha para a chama da vela, quase toda queimada, em frente ao quadro da imagem da Virgem Maria a pisar na serpente, única e pequena luz que vê. 

— Só Deus pode perdoar...diz, em palavras entrecortadas. 

E os olhos nada mais veem. O pequeno toco de vela ainda leva algum tempo a queimar, sobre o pires. Depois, acaba. Não há cheiro de incenso nem perfume de rosas recém-colhidas. A noite predomina, a casa está escura e fria. 

Otávio Duarte nasceu em Campo Mourão, Paraná, em 1953. Jornalista e escritor, morou e trabalhou em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, e voltou a residir na capital do Paraná. Autor, entre outros, do livro de contos Seis romances e uma pintura (2001) e do romance Amor Absoluto (2012).