Conto: O amor de Lindalva lhe dominava a alma-alva.

Ilustração de Pedro Gutierres
Cecília Prada.

Ilustração: Pedro Gutierres


O professor ia pelos oitenta e lá vai alguma pedrada. Seco e arcado, magro, de olho cinza esmaecido e uma tossinha renitente. Vinha devagar, penando, ladeira acima — mansa ladeira, a da Academia de Letras, para não desanimar os de provecta idade vindos para o chá com bolo e alguns discursos soniferantes. Distração parca, ritual, de quem tem teimas interioranas na tarde e na velhice, ambas calmas. Vivia — sim, como vivia, afinal o homem? Sozinho, em uma pensão. Diziam. Mas como depois se verificou, não era bem assim: sozinho, sim, mas em apartamento próprio, dois quartos e sala, e até área de serviço com inúteis dependências de empregada. Comia em restaurantes de quilo, mas só nos do centro, mais baratos, na montoeira da Rua do Comércio.

Pobre do professor — que nunca se casou, que só teve um emprego, o de professor de Geografia em uma escola particular da parte abastada da cidade, houve tempos em que até morava no colégio, em um quarto dos fundos, feito caseiro, parecia. Excêntrico, talvez. Pobre, com certeza. De camisa tinha pelo que parecia duas, uma de listinhas rosa, outra branca para solenidades. Engravatado, sempre. Até de paletó, o mais das vezes.

Na hora do chá — que na academia interiorana era com vantagem substituído por café de garrafa térmica, refrigerantes de garrafa tamanho-família, sanduíches de patê de presunto e bolo de chocolate, o professor se fartava. Com a cumplicidade educada dos colegas, que fingiam não ver o tamanho, a quantidade das fatias de bolo que engolia concentrado, em um canto. Coitado, deixa ele comer, o professor, não quer mais um pedaço, um sanduichinho, eu embrulho e o senhor leva — dizia, bai- penteadeira frascos fechados de perfumes, Cabochard, Je Reviens, Chanel no.5. Um par de óculos ray-ban, ainda na caixa.
— Faz tempo que...
— Ah, faz muito tempo sim senhor, respondeu a faxineira. Minha mãe já trabalhava para limpar a casa para o Professor. A outra também.
Que outra? O apartPedro Gutierres amento? — perguntaram.
— Não senhor. A outra que é igual esta, toda mobiliada, nem ninguém nunca morou também, não senhor. Que fica lá do outro lado, depois da estação, sabe?

O espanto caiu sobre os acadêmicos varando toneladas de tédio acumuladas. Anzol de rejuvenescimento — fofocas variadas se estabeleceram.

De repente, todo mundo lembrou pedaços de histórias sobre o professor e seus hábitos. Foram ver a casa de perto da estação. E depois, descoberta ao acaso, outra, em uma ruela atrás da igreja da Boa Morte. E outra...

Pasma, a cidade — que ignorara o professor, sua vida, seu sonho — acabou por descobrir exatamente seis casinhas que pareciam de boneca, espalhadas pela cidade. Todinhas mobiliadas até os mínimos detalhes, roupas de cama e mesa, talheres, sacarrolha, paliteiro, radinho de pilha, tapetinho do banheiro, touca para o vaso sanitário... a Lindalva imaginária residira inteira, incorporada à figura magérrima, de tão distinta sobriedade, do caro professor.

Quem ficou muito feliz — dizem — foi um sobrinho distante e herdeiro, enfim surgido depois das convocações feitas em vários jornais do interior. E em cuja presença enfim se retirou da sinistra geladeira o corpo do tio, finalmente despachado para o país dos sonhos eternos com dois discursos rápidos de membros da academia — era dia de chuva e muito frio.