Conto | Maurício de Almeida

Chá

                                                                                                                   Ilustração André Ducci
Ilustra André Ducci


Ao abrir a porta, já o sorriso de Inês indispõe Maria, que, com o semblante rijo, as sobrancelhas arqueadas e os lábios comprimidos impõe silêncio. Inês circunspecta o rosto forçando trejeito, pede licença e aguarda o passo que abre caminho à passagem: entra atuando cuidado com algum cinismo, desdenhando respeitabilidades e, tão logo ouve o giro da chave, sussurra

— ele está?

provocando a irmã mais velha. Mas, alheia ao sarcasmo dessas travessuras, Maria se enfastia com a obviedade do questionamento, pois, se acaso Rômulo estivesse em casa, jamais essa calmaria. Basta uma breve negativa com a cabeça para que Inês caminhe pela sala tocando os retratos e as páginas abertas da Bíblia, um averiguar lúdico e supostamente desinteressado que desvia dos brinquedos ao chão até alcançar o sofá quase coberto por uma manta amarfanhada sobre a qual ela se deixa cair sem o trabalho de estendê-la. Ainda à porta, Maria incomoda-se com a pouca austeridade de Inês (por que seria diferente?) e ao ouvi-la com uma voz mansa 

— o bebê?

responde sem paciência

— dormindo

atravessando o cômodo até o corredor para desmobilizar a impertinência da irmã. Todavia, forjando o dia como apenas mais um dia, Inês aconchega-se ao encosto desfazendo-se da manta com a intenção de permanecer sentada. Haverá de mudar?, pondera Maria com exaspero, um dia se portará de acordo?, e, prestes à irritação por deduzir que Inês não só dissimula compreender o convite como também desfiará bobagens, ela se antecipa e propõe

— vamos comer alguma coisa

vencendo com poucos passos o corredor para chegar à cozinha sem saber ao certo o que fazer, pois há alguns dias (desde quando, afinal, deu ouvidos aos comentários de Inês sobre Rômulo e o filho) debate-se no desnorteio de uma aflição tão voraz quanto vertiginosa: ela mesma haveria de mudar?

Inês acompanha a contragosto, senta-se à mesa e observa a irmã recolher os poucos utensílios do escorredor e devolvê-los às gavetas e aos armá- rios com gestos afoitos e pouco destros. Descobrindo-se prestes a abrir brechas, Maria vê a pequena caixa de chás sobre a mesa e anuncia

— tomarei chá

mas o titubeio da voz que quase desfaz a asserção em interrogativa evidencia o subterfúgio desses afazeres desnecessários. Mesmo envergonhada por flagrar-se em artifício, Maria pergunta ainda de costas

— quer?

e Inês concorda sem vontade, propiciando a Maria (não sem culpa) a evasiva de outras tarefas. Ela se agacha frente a pia e destrincha entre panelas empilhadas e garrafas vazias a chaleira que leva à torneira: o fluxo d’água carrega a voz da irmã e, não obstante permita tempo, também prediz conflito: sentindo-se ignorada, Inês abandona as observações sobre a qualidade e os propósitos de chás e se remete a questões travestidas de comentários sobre o sono irregular de bebês e as cólicas sem explicação. Maria opta por resguardar-se ainda um instante e balbucia concordâncias quaisquer, dedicando tanta cautela em ações corriqueiras que Inês percebe o expediente — e, talvez por isso, certamente para espezinhá-la, reitera opiniões até Maria irritar-se por pressentir ardil ou ironia nessas investidas e responder incisiva, sonos e cólicas, noites a fio de febre e choro, um inferno que faz as palavras saírem trêmulas e o qual ela tenta dirimir indo ao armá- rio para pegar pires e xícaras, um pote de açúcar. No entanto, é irreversível o propósito já deflagrado desse entrave e Inês finalmente confronta Maria com interrogações, questionando se a alimentação do bebê já prescindiu o leite materno. Mesmo que relute em quantas tarefas (e note o sarcasmo de duas mamadeiras que ladeiam a torneira), a indagação de Inês demanda um retorno e Maria grunhe

— sim

como se confessasse uma possibilidade até então impensável. Desacorçoada, distribui com involuntária brusquidão os objetos sobre a mesa, mas, notando a rispidez desses atos no susto de Inês, ela refaz movimentos idênticos para dispor no lugar em que já se encontram as colheres ao lado das peças, o açúcar ao lado da caixa de sachês de chá. 

Inês espera Maria sentar-se, finca os cotovelos ao redor dos pratos e pergunta sem outros preâmbulos

— faremos o combinado, então?

retraindo Maria por não haver mais contorno possível, é inevitável decidirem qualquer futuro ou ao menos discutirem se Inês tem razão sobre o destempero de Rômulo e, portanto, se a proposta dela fundamenta solução. Deveria acreditar na irmã se ela tão diferente?, mais nova e arredia, vida incerta que a levou a uma gravidez solteira e Deus sabe lá como corrigir esses caprichos (ainda que seja negar o sopro de vida). Que entende Inês de casamento? se Maria nunca duvidou de que para a irmã o amor sempre teve giro rápido e provisório, reação momentânea e impulsiva quando deve ser lento e cuidadoso, maduro e paciente porque tudo pode, em tudo crê. Ao mesmo tempo, a espantosa revisão de Inês ao ocorrido de dias atrás promoveu outras perspectivas sobre a irritação de Rômulo, fazendo os vergões no braço de Maria doerem como se ainda a pressão dos dedos, a mão estendida ressoar o tapa seco do qual ele desistira, os gritos mais vociferados antes de abandoná-la assustada ao canto da cozinha. O amor tudo suportar? Conquanto tente remitir dúvidas, Maria não contêm o estremecimento ao reviver o pavor de acompanhar cada passo dele até chegar à sala, abrir a porta e sair indiferente ao choro ainda miúdo do bebê no quarto. Talvez o amor nem por tudo sofra.

Mas outra vez uma confusão aguda de tantas incerteza, a descrença irrompendo em um ruído, o sopro alto e insistente da chaleira e nenhum consenso, dia após dia o insuportável gosto amargo da contrariedade, a reação assustadiça ao menor toque, qualquer contato, nenhuma palavra a não ser vontade de grito se realizando em uma insônia que assola e não cede, um debater-se estéril noite afora (e na lembrança os braços dele envoltos ao corpo dela em noites antigas, o calor do sono), a frustração desmobilizando tentativas (nenhum abraço, ao menos o sono dele) e as poucas energias dissipadas horas adentro (apenas a distância fria entre os corpos), um assovio constante que encontra voz 

— Maria?

demandando atenção

— está ouvindo?

desmerecendo a dor como sempre desmerece os sentimentos dela (nenhum corpo, o vazio), o vazio de entendimento no qual ela sobrevive açoitada por um chamamento

— Maria?

Inês insiste para recuperar a irmã alheia e então as pupilas afiando-se pontiagudas, a boca entreaberta em um susto e Maria reagindo como se recém desperta ao ouvir

— a água ferveu

desfazendo a chama do fogão em um giro, o pano de prato amparando a asa da chaleira que ela tomba na xícara da irmã um tanto de água e também um gole para si antes de devolvê-la à pia e sentar-se como se nada, como se tudo bem. E, indiferente à incógnita que Inês suspendeu à mesa, Maria puxa pelo barbante fino um pacote de chá e o deposita com deferência na xícara. Observa a submersão e o suspiro verde daquele retângulo ao qual ela impede superfície com a colher, afogando-o com açúcar em um giro rápido, incisivo remoinho voluteando as ideias quase à boca em uma vontade de dizer a Inês que o ama apesar de não compreender a razão de amá-lo, quiçá precise dele em casa mesmo transtornado por um mal do álcool, pois senti-lo perto acalma em uma paz tumultuada, cheia de acidentes e percalços, contudo calma ainda assim. Por isso, malgrado Inês não entenda, Maria rende-se à necessidade de explicar-se

— ele não tem a intenção

arrepende-se antes de terminar a frase e murmura intentando voz

— mas preciso pensar em mim

reparando no engasgo a denúncia da falta de certeza e repetindo

— sei que preciso

para evitar desaprovações. Não é mais capaz de satisfazer-se com a vida que tem e conhece?, dedicar-se ainda ao que escolheu e lhe cabe?, que sabe Inês da implicação dessas escolhas?

As mulheres sustêm o silêncio das xícaras à boca, pois qualquer movimento ou palavra reverberariam excessivos. Inês volta-se ao corredor certa de ouvir o bebê e Maria pinça com os dedos o barbante vazando pires afora. Ela acolhe o pacote de chá com a colher e, antes de desfazer-se dele ao pires, com surpresa o traz a altura dos olhos: investiga com estranheza e ojeriza o embrulho intumescido gotejar como se sangrasse, mínima bolsa desfalecida e frágil incapaz de reter em si o conteúdo vazando sombrio. Inês volta-se àquela tarefa curiosa e prontamente a ignora, devolvendo a xícara à mesa — e Maria não duvida que a pose arrogante se presta a forjar a impaciência de estar prestes à conquista de algo. Comovida com o instinto que dispensa a lógica e impõe verdade à desconfiança, Maria enrijece cada gesto pronta a resistir às tentativas de acuá-la a uma decisão. E basta tão somente um gole da água rançosa para que, em um arroubo sem mesuras, pegue as xícaras e as enxague todas, não sem antes apertar os pacotes de chá com força exagerada e jogá-los na lixeira ao lado do fogão, à altura dos pés. Mesmo finalizada a limpeza, Maria permanece observando pelo vitrô sobre a pia o quintal de cimento batido, a tinta do muro carcomida e reafirma a si mesma quando Inês pergunta 

— e então?

que, se o amor tudo pode, não há intransigência ou reação condenável.


Maurício de Almeida é autor de Beijando dentes (2008), livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos, e do romance A instrução da noite (2016). Vive em Brasília (DF).