Conto | Marcelo Brum-Lemos

Apocalipse

“podia ter acontecido com qualquer um”
(Luiz Vilela)

Apocalipse chegou.

E eu, como se estivesse morto, retrospecto:

Apocalipse chegou. O bispo é rapper. Acordei com as bombas explodindo. O Exército Dedeus saltou seus sete cavalos sobre o abismo fervente de piche e cabelo que somos.

A lua apagou, nova.

Daqui de cima me finjo o próprio Dedeus, e tudo vejo, hipermetrope:

Você, os pobres mortais, gira o nariz para o alto, míope, buscando uma coisa qualquer — e vê o quê?

O narrador prenuncia: Ivoviu será o nome do herói deste delírio.

Apocalipse chegou.

As quatro ou sete patas dos sete cavalos pisoteiam nossas almas (teto de zinco), totalizando 48. Vá entender: ninguém mais sabe somar.

O céu murcha, perde o jogo, cai, sem cor, afunda.

Novos doutores escrevem teses, em papel, criando outros milhares de árvores menos; total = EU.

É isso que todos dizem, no fundo de suas teses perdizes: EU.

Repare.

Todo o mundo quer ser EU.

Eu quero ser eu.

Ser eu
Sereu
Seu

De repente um anticlímax: Seria tão bom se isto tivesse um enredo, você reflete.

Ok.

“Ivoviu abriu os olhos sem conhecer quem era. Estes são meus olhos, quis dizer, mas não sabia. Tateou o par de orelhas ao redor da testa vazia e tentou sorrir. Depois sorriu, inepto. Sou um comanche, pensou por um triz, para treinar o pensamento.”

Apocalipse chegou.

O quarto selo. Teu nariz mordisca ar.

Selo
ou não
sê-lo

Péssimo o trocadilho, você sustenta. Ok. Apenas exercícios de cognição.

E você? Você mesmo! Sentado no conforto desse pesadelo, aí lendo.

Você acha que é fácil — gritou Ivoviu — ter 87 anos de idade? As cartilagens do corpo nunca param de crescer!

Ninguém nos escuta as panelas dos joelhos, sempre doendo.

Esperneio. Espermeio.


No fundo, Ivoviu queria mesmo era ganhar muito dinheiro. E nada no reino dos jacarés. Formigas criam cascas de conchas, casas novas nos lombos, ovos mutantes. Nós de caracóis.

Prometo respirar para o resto da vida! — ele declama.

Mas não adianta.

Apocalipse chegou.

Os cavalos param por um instante, entretidos, pisoteando o triângulo do enredo. Seus vesgos óculos piscam, bufantes os sete pares de narinas. Ivoviu faz a conta do quadrado dos catetos; percebe que descobriu o resultado, mas não quer falar.

Não se ouve nem um pingo:

Você ouviu?

Jovens pós-doutores finalmente elucidam a calda do mistério. Eles não têm sonhos, nos ensinam.

Muito elementar.

Papai Noel caiu do polo e rolou até aqui, aos trópicos. Achamo-lo na praia mansa de Caiobá e linchamo-lo.

Dedeus nos sacuda. Os cavalos se aprochegam ainda mais, inflamando o já antes incandescente asfalto velho de verão. Seus azedos vapores bafejam. É o fim, esclareço, sorrindo num sussurro. Ivoviu também sorri, ainda, pra mim, sem discernir quem é real, quem ficção.

Sete vezes quatro, vinte e seis, calculamos os dois juntos. Ou três.

Escutamos os cascalhos cavalgando, onda que ruge mil pestes de espelhos.

Me rebelo: Apago a luz da sala por uma hora no dia combinado pelo resto do mundo e perco um capítulo importante da novela.

Apocalipse chegou.

As sete cabeças de cada um dos sete cavalos meneiam, bufantes — noventa olhos de permeio — um caolho. Ouvimos o estalar das mandíbulas. São muitos dentes, considero. Quem sou eu? Ivoviu mais se concentra, não pode se perder agora. Imagina-se uma selfie e se reencontra.

Repete:

Sete vezes sete, vezes quarenta e oito, vezes trinta e dois, me perco de novo. Eu devia ter estudado melhor o número de dentes de um cavalo na escola!

Já não sei quem gritava, se Ivoviu ou Eu. Ou Você, que é o terceiro herói deste brinkedo.

Um de nós exibe a tatuagem que revela: somos poros e cotovelos.

Cada pata dos cavalos soma nove joelhos, complicando ainda mais a equestre equação. Valor de xis, valor de ípsilon.


Corram todos às janelas! Nada aconteceu!

Apocalipse mata a pau! Quem viveu verá!

Oceanos guerreiam! Sombras despencam do espaço! O dente do siso dói; mortos ressuscitam, mas só os cães vadios.


Então o clímax: O narrador sai daqui e te sacode com energia, exigindo a parte que lhe cabe no resgate.

Deste lado, Ivoviu agora sim quase se assusta: Talvez seja mesmo hora de acionar um advogado — cantarola sem voz.

Apocalipse dá trabalho.


Fazia frio. Ouvíamos o som de pés de barro batendo no chão.

Tum tum tum.

Quis tampar os ouvidos com a palma das mãos, mas ventava. Braços bambus espalhando o deserto oco do universo. Espantalhos.

Os pulmões também de barro.

E bruxas; tinha esquecido as bruxas.

Tento voar.
Puf!:
Raiz.

E voltamos para dentro do folhetim:

“Foi ao abrir o livro que a pontada atacou. Disforme, logo na primeira linha. Não saberia quando ocorreu, nem como, nem quanto. Depois um soco, um coice. Tum tum tum. Ivoviu moveu o dedo, mas só até meio caminho, sem poder explicar se o não quis mover mais ou não o conseguia. O fato é que o gesto estacou ali, sozinho.”

Apocalipse!

Os personagens fogem do papel, assustados. As palavras esvoaçam desgovernadas, noivas disléxicas. O narrador tentou suicídio, não adiantou, ninguém morre no Apocalipse.

Quatro vezes sete, vezes doze várias vezes, trinta e dois menos seis de novo nove, desespero. Ivoviu sou eu? É você?

Podia ter acontecido com qualquer um.


Marcelo Brum-Lemos é autor do recém-lançado livro Galhos de árvore movendo os dedos. Vive em Curitiba (PR)