Conto | Luiz Roberto Guedes

Liga dos cavaleiros das letras

Para Ariosto Augusto de Oliveira

A TRADICIONAL CANTINA SAN PIETRO É O RECANTO preferido de certo grupo de escritores para seu encontro mensal. Embora gostem de experimentar restaurantes estrelados, os confrades sentem-se em casa no ambiente familiar da vecchia taverna da Bela Vista.

A careca de Lauro Di Ungaro, filho do fundador, resplende em numerosas fotos emolduradas, ao lado  de craques do futebol, narradores esportivos, atores, cantores, compositores, personalidades da televisão e subcelebridades momentâneas. Nesse pequeno rol da fama há uma foto dele com os escribas, no almoço em honra do diplomata e literato Saulo Santorino. A távola redonda congrega uma autodenominada Liga dos Cavaleiros das Letras:

☆ Breno Fontana, escritor e roteirista de cinema; 
☆ João Rodolfo Prado, criador de sólida trilogia sobre quatro gerações de uma família operária; 
☆ Murilo Meireles, escritor e autor de minisséries de TV; 
☆ Saulo Santorino, novelista de temática homoafetiva; 
☆ O ficcionista negro Samuel Lemes, autor de Toque um samba-canção, romance ganhador do Prêmio Machado de Assis; 
☆ Alvanor Salgueiro, romancista pernambucano, herdeiro cioso da literatura viril de Hermilo Borba Filho; 
☆ Sebastião Vilanova de Malta juiz aposentado e autor de novelas policiais, criador do delegado Dr. Ruy Rocha, que virou série de TV;
☆ E, last but not least, Josué Peregrino, poeta bissexto e autor de literatura juvenil com um pé no fantástico, esse que acaba de chegar à cantina, um tanto atrasado para o almoço de janeiro.

Avistando os comparsas — Fontana, Meireles, Prado e Salgueiro —, Peregrino tira o chapéu panamá e exclama “saludos, amigos”, com um cômico sotaque mexicano, e aí nota o olhar estranhamente duro que Murilo Meireles lhe atira. “Será que estou tão atrasado assim?”, tenta atinar com o motivo. “Ora, só meia horinha. Não é almoço de negócios. Todo mundo aqui é senhor do seu tempo.”

Aperta cerimoniosamente a mão de cada um, pendura o paletó de linho no espaldar da cadeira e toma seu lugar.

— Nós já pedimos — Meireles avisa.

Peregrino acena para o histórico garçom/sósia do escritor João Ubaldo Ribeiro, pede um spaghettini com molho à bolonhesa, e começa a empastar uma fatia de pão italiano com o patê de ervas finas. 
 
— Cadê o Tião? — Meireles o interpela. — Você não ficou de trazer o velhaco?

— Eu tentei. Liguei pra ele, insisti. Não teve jeito. Ele deu mais uma desculpa: disse que vai acompanhar os netos dele num passeio ao zoológico. Falou que anda mais interessado em bichos do que em gente.

Peregrino vê Meireles entortar a cara, contrariado. Faz tempo que Dom Sebastião vem declinando dos convites. Parece ter desertado da confraria. O motivo, não se sabe. O homem é um bastião impenetrável: não tem e-mail nem celular, e não gosta de muita conversa ao telefone.

— E como está o nosso meritíssimo amigo? — Alvanor Salgueiro tem grande afeição pelo velho ogro de Malta.

— Contou que vai receber a visita de uma mulher de Mato Grosso. Vai passar o fim de semana “engalfinhado em refregas eróticas” — Peregrino imita o timbre rouco de Tião.

— Tá bom — Meireles resmunga. — Até parece que ele ainda dá no couro, com setenta e três anos no lombo.

Ninguém diz nada. Todos eles já dobraram há muito o cabo dos cinquenta anos, e divisam no futuro um vasto deserto afetivo.

— Como vão as coisas, Peregrino? — Breno Fontana bate em seu ombro. 

— Estou preparando um livro de contos pra um concurso nacional. Tem que ser material inédito. Vou escrever pelo menos cinco histórias novas. Mandei um desses contos pro Murilo, por e-mail. Não sei se ele teve tempo de ler. 

Meireles não dá sinal de ter ouvido a deixa do confrade. Continua parolando com Prado e Salgueiro, reportando sua recente viagem ao México, para o festival de cinema de Guadalajara.

— E no capítulo trabalho? — Fontana manifesta agora maior deferência, desde que Peregrino se dispôs a ler seu romance inédito e dar sugestões valiosas.

— Fazendo uns frilas pra uma agencinha de publicidade, escrevendo uma croniqueta mensal pra uma revista dirigida. A boa notícia é que um amigo pretende lançar uma chapa pra concorrer à diretoria do sindicato dos publicitários, e me chamou pra participar. Estou esperando ter uma reunião com ele.

— E o que você espera conseguir com isso?

— Um subemprego fixo. Uma entrada regular de dinheiro, pra matar as contas mais torturantes. E ter algum sossego pra escrever as minhas coisas.

Fontana balança a cabeça com descrédito:

— Pra ter o quê? Uma mesa e um telefone? Desculpe, mas acho isso um projeto medíocre. 

Peregrino não acha resposta, prefere servir-se da garrafa de vinho. E interrompe a narrativa de Meireles, no exato momento em que uma escritora do Colorado sussurrava “Kiss me, brazilian boy”, na noite enluarada de Guadalajara.

— Murilão, chegou a ver aquele conto que te mandei por e-meio?

— Vi. Você aproveitou uma historinha do bar Tresnoitado, um lance com aquela garçonete gostosona, como era o nome dela? 

— Martha. Com “th”.

— Essa mesma. Um bucetão. Queria ter dado um picote nela. Mas você deixou de lado o tema do conto, e armou um desfecho que não funciona, eu acho. É por isso que não gosto de escrever sobre experiências pessoais. Prefiro partir do zero, inventar tudo.

— Sim, mas aquele incidente não tem enredo, não tem conflito, é quase nada. Eu quis fechar o círculo de maneira casual. Um exercício.

— Pois é. Da próxima vez que ficar empacado com uma história, mande pra mim que eu termino pra você — Meireles finaliza.

Peregrino se pergunta se o vinho já subiu à cabeça do amigo, mas ainda estão na segunda garrafa. Enquanto pondera se aquela frase é apenas uma gabolice tola, ouve Meireles declarar aos seus pares:

— Ele é um poeta, escreve direitinho, mas não tem nada pra dizer.

Ninguém diz nada. Peregrino não acha o que dizer. Fica mirando na parede uma foto de Lauro Di Ungaro abraçado ao ator Zé Celso Martinez Corrêa. Só consegue pensar que, se aquilo for uma piada, é estupidamente grosseira. E, se for verdade, tem a delicadeza de um megalossauro. Ou murilossauro

João Prado muda o rumo da conversa: 

— E você, Murilo? O que anda escrevendo?

— Martelando uma minissérie bíblica pra televisão do pastor. Reis e Guerreiros da Terra Santa. É foda, camarada. Vou ter que encher muita linguiça pra entregar sessenta e tantos capítulos.

— Não, quero dizer literatura mesmo. 

— Ah, bom. Comecei a escrever uma coisa que... se eu levar em frente... vocês todos vão beijar a sola do meu pé. É um romance. E o fantasma de Graciliano Ramos é um dos personagens. Não posso dizer mais nada. Não gosto de falar sobre o que estou escrevendo.

O garçom/sósia de João Ubaldo chega com os pratos, serve os cavalheiros e lhes deseja bom apetite. Peregrino pendura no peito o babador de papel com logotipo da Cantina San Pietro e ataca vorazmente seu espaguetinho, enquanto Meireles recomenda o filme Diário de um jornalista bêbado, baseado no romance de Hunter S. Thompson.

— Gostei mais do livro — Peregrino aparteia, de boca cheia, certo de que vai causar estranhamento. 

Ao ver a expressão inquisitiva de Meireles, ele esclarece:

— No livro, a moça tira o vestido branco, dança nua na festa, e o autor informa que ela tem um belo tufo entre as coxas. No filme, a moça não tira o vestido, não dança nua, e não tem tufo nenhum.

Meireles emite um silvo depreciativo: 

— Quer ver pentelho em filme da Disney... Pois sim.

— Pois é, eu também achei que a Disney não tem nada a ver com Hunter Thompson — Peregrino conclui a resenha, e continua a enrolar seu macarrão com o garfo.

Agora, João Prado diz que ficou sabendo, de fonte segura, que a editora Zakarian & Kirinus vai fechar as portas.

— Também já soube — Meireles confirma. — É pena. Publiquei um único livro na ZK, meus microcontos, e foi a edição mais bonita que já tive. 

Disposto a meter a colher na conversa, Peregrino indaga: 

— A bela Isabela de Holanda ainda trabalha na casa? 

— Fale baixo – Meireles o repreende.– Fale baixo.

— Ué! Qual é o problema de eu dizer “Isabela de Holanda”? — Peregrino rola as sílabas líquidas.

A cara habitualmente blasé de MM converte-se numa carranca irada:

— O problema é que você faz muito alarido. Nós somos conhecidos. As pessoas olham e dizem, ‘aquele é o Murilo Meireles, aquele outro é o Breno Fontana, aquele lá é o João Rodolfo Prado, o outro é o Alvanor Salgueiro’. E você sempre chamando a atenção.

Surpreso com o destempero de MM, Peregrino olha em torno, para verificar a presença dessa plateia deslumbrada. O salão principal da cantina está quase vazio. Só duas mesas ocupadas num canto, e os comensais concentrados em forrar o estômago. 

Cada vez mais emputecido, MM desafoga o peito: 

— Você sempre fez muito alarido. Como naquela vez, na pré-estreia do filme do Fábio Stefanelli. Estávamos conversando com ele, quando duas mulheres vieram em nossa direção. Eram a mulher e a filha do Fá- bio. Eu sabia que você ia dizer alguma merda, tentei te dar um toque, mas não adiantou. — E MM volta-se para os amigos. — Sabem o que ele fez? Me deu uma cotovelada e falou: “Olha só que gatas, Murilão”. E teve aquela vez em que a mulher que eu mais amei na vida foi me procurar no Tresnoitado, depois de meia-noite. Ela rompeu um noivado pra ficar comigo. Vocês nem imaginam o que ele fez. 

Peregrino arranca o babador de papel, pega o cachimbo e o pacote de fumo no bolso do paletó e comunica:

 — Como já conheço essa histó- ria, vou fumar lá fora. Assim você fica mais à vontade.  

Quando retorna, ainda ouve MM rematando o relato: 

— Ele bebia, cheirava pó e puxava fumo com os músicos do bar, no porão do sobrado. E repetia sempre o mesmo bordão: “Desculpe, eu já bebi”. 

Peregrino flagra o sobressalto de Breno Fontana, ao vê-lo de volta. Visivelmente embaraçado com a virulência de MM. Retoma seu lugar e os confrades permanecem em silêncio, de cabeça baixa, enquanto MM tenta disfarçar, selando a crônica derrisória com um fecho inofensivo:

— Visitei o túmulo dele no cemitério judeu de Praga. Coloquei uma pedra ao pé da lápide, seguindo o costume. Ainda vou aprender alemão pra ler Kafka no original.

Peregrino bebe vinho e rememora a pergunta que Martha, ex-gar- çonete do Tresnoitado, lhe fez há algum tempo, na cama, fumando um cigarro:

“Tem notícia do nosso amigo Murilo?” 

“De vez em quando. Ele é bem ocupado, viaja muito por aí, dando palestra e oficina de roteiro.”

“Ele continua aquele cara bacana que a gente conheceu... ou já virou estrela?” 

Os confrades dão risada com João Prado recordando um incidente engraçado, envolvendo escritores africanos, no metrô de Berlim, por ocasião do festival Berlinale. Alvanor Salgueiro comenta que não conhece Berlim, só esteve na feira de Frankfurt, mas está de viagem marcada para Barcelona, junto com a namorada. Vai visitar sua filha estilista, que faz muito sucesso por lá. 

— Sua namorada é uma pintora fantástica — Prado sabe ser gentil. 

— Ah, eu terminei com a pintora. Minha namorada agora é psicanalista. Mais madura, centrada. Chega de maluquice.  

Peregrino considera se deve dizer que anda pensando em passar uma temporada em São Thomé das Letras, MG, para caçar OVNIs, mas percebe que poderia soar como sarcasmo. Em vez disso, menciona que sua filha mais velha vive na Califórnia, que foi convidado a conhecer seu neto, nascido em San Diego, mas que gostaria de ir primeiro a Liverpool — “numa peregrinação religiosa”, assinala.

— Você vai ser humilhado quando for pedir visto no consulado americano — MM observa.

— Ora... por quê? 

— Porque você não tem emprego fixo, holerite, comprovante de renda. Além disso, você não é branco.

Peregrino não compreende como o antigo estilo irônico de MM pode ter se tornado tão ácido nos últimos anos. Dá de ombros:

— Ninguém no Brasil é cem por cento branco. Lembra do filme Brincando nos campos do Senhor, do Babenco? Nelson Xavier faz um padre mestiço, que diz à missionária Kathy Bates: “Daqui a duzentos anos, o mundo inteiro terá a minha cor, madame”. A avó de minha mãe deve ter sido uma índia pataxó da Bahia. E meu neto gringuinho carrega esse DNA índio. É o melting pot, camarada — e Peregrino ergue sua taça vazia: — Fornicando venceremos.

MM não retruca, chama o garçom Ubaldo e comanda mais uma garrafa de vinho. Prado realiza a proeza de nova intervenção tática: 

— Falar em filme, o que você anda fazendo, Breno?

— Escrevendo o roteiro do próximo “longa” do diretor Fernando Montezel. Ele comprou os direitos de um livro chamado A datilógrafa, de Afonso Schmidt, um escritor comunista. A história de uma escritora pobretona e descasada, que se fode de verde-amarelo durante o Estado Novo. Letícia Sabatella vai fazer o papel. 

— Opa, isso vai dar prêmio. 

— Não sei. Já mexi duas vezes no roteiro, e o puto continua pedindo alterações. Vou mexer pela última vez e mandá-lo tomar no cu. Vá encher o saco de outro.

Então o garçom Ubaldo traz a conta, MM faz a divisão na calculadora do celular, e Peregrino se dá conta de que acaba de consumir o espaguete à bolonhesa mais caro do hemisfério sul. Por fim, os cavaleiros das letras trocam abraços e beijos na calçada, sob o grande brasão pendente Cantina San Pietro – Desde 1971. Cada qual toma um táxi, rumo ao seu compromisso, e o pedestre Peregrino sobe cachimbando a Brigadeiro Luís Antônio, a caminho de seu pombal na avenida. 
 
Procura ocupar a mente com o encontro mais importante dessa sexta-feira. Martha virá passar a noite com ele, depois da faculdade. A noite e o fim de semana. No sábado, ela vai cozinhar uma costela com salsinha, um arroz com coentro. Se ela perguntar como foi o encontro com seus confrades, ele vai dizer que o preço do banquete ficou muito indigesto. Duro de engolir. Vai ser obrigado a cancelar de vez esse almoço com os escribas. É motivo de força maior.

Tão justo quanto as possíveis razões do meritíssimo Tião Vilanova de Malta para dispensar a confraria da Cantina San Pietro.

Luiz Roberto Guedes S nasceu e vive em São Paulo (SP). É poeta, escritor, cronista e tradutor. Publicou, entre outros, a novela histórica O mamalucovoador (2006), o livro de poemas para crianças Planeta Bicho (2011) e as coletâneas de contos Alguém para amar no fim de semana (2010) e Como ser ninguém na cidade grande (2018). Suas obras Treze noites de terror (2002) e O livro das Mákinas Malukas (2007) foram adotados pelo PNBE (Plano Nacional Biblioteca na Escola).