Conto | João Silvério Trevisan

Brotinho legal

A h, o nariz do Marlon Brando, suspirou ela enquanto dirigia seu novíssimo Volkswagen, na radiosa manhã de domingo. Tão másculo. Estava a caminho da chácara de uns amigos, a quem pretendia mostrar esse carrinho bacana que tinha ganho dos pais, como presente de formatura do colegial. Talvez por influência da “Diana” do Paul Anka, que tocava no rádio do carro, ela se deu conta do óbvio: seu namorado Carlinhos tinha o nariz do Marlon Brando. E estava assim embevecida na fantástica descoberta quando o carro parou de repente, no meio da estrada deserta. Fenomenal! Começou a mexer em todos os botões do painel, sem sucesso. Acabara de conseguir a carteira de motorista, e não entendia nada de máquinas, especialmente aquela baratinha estranha que começava a ser fabricada no Brasil. Desceu, alisando para desamassar a saia rodada. Como estava frio, vestiu a blusinha banlon cor-de-rosa. Examinou os pneus, a lataria e tentou várias vezes dar a partida, com direito a muitas exclamações, reticências e palavrões reprimidos. Ocorreu-lhe abrir o capô. Com cuidado para não sujar a roupa domingueira, fez força até escancarar a frente do carro. Só me faltava essa! O que ela viu quase provocou um desmaio. Exceto por algumas ferramentas e o estepe, o capô encontrava-se vazio. Quer dizer, não se via nem sinal do motor. Carambolas, essa é de lascar! Algum cara de pau o tinha roubado ou algum sacana tinha lhe pregado uma peça ou tinha ficado esquecido na fábrica, ou tinha... tinha o quê, afinal? Permaneceu alguns segundos incrédula, até perceber que estava mesmo numa furada monumental. Beirando o pânico, sentiu as cólicas voltarem, desligou o rádio e quis gritar bem alto a sua desgraça: perdera o motor do seu carro novinho em folha. Mas perdera como, quando, onde? Essas estradas do Brasil, é claro! Tanto buraco, tanto sacolejo, lembrou-se de ter ouvido um barulho estranho. Numa das malditas curvas, o motor com certeza tinha caído. Foi olhar de novo: sim, o capô encontrava-se vazio. Pensou, pensou. E antes que fundisse a cuca, decidiu voltar a pé pela estrada, quem sabe não encontro o motor naquela curva logo ali? Caminhou uns vinte metros, examinando cuidadosamente o chão e as laterais da estradinha. Não viu nem tchuns do motor, talvez porque fosse menor do que se imagina, não sei, numa época com tanto progresso tudo pode acontecer. Decidiu voltar para o carro, contendo a vontade de chorar. Pensou no Carlinhos. Estaria salva se tivesse trazido o Carlinhos, tão parecido com o Marlon Brando, ai! Sentou-se numa pedra à beira do caminho, por que o Carlinhos não quis vir comigo, vai ver não gosta mais de mim. Será que..? A Vilma! Sim a Vilma vive dando em cima dele, disfarça bem mas eu percebi. Será que o boko-moko do Carlinhos...? Levantou-se, bateu o pé no chão várias vezes, com raiva só de pensar. Ah, se for verdade ele e a Vilma me pagam. Pois vou paquerar naquela rua chamada desejo, a tal Augusta que está na moda. E só de birra entro na turma dos playboys, danço rock com eles feito louca, porque eu sou uma garota pra frente, morou?, chega de ser careta, sou até capaz de participar de uma roleta paulista e aí então... Aí... ah, o nariz lindo do Carlinhos, you are my destiny! Chorou um pouco. Sentiu-se a própria Lana Turner, não, a Sandra Dee perdida no meio do nada, sem ninguém. E continuaria a desfilar toda a galeria de heroínas sofredoras de Hollywood se não aparecesse uma camionete último tipo, vinda em sentido contrário. Que gentilmente parou. Ela arrumou-se, enxugou as lágrimas o suficiente para exibir seu sofrimento e esperou, enquanto o motorista parou o carro, desceu e caminhou em sua direção. Um coroa, que coisa chata. Ele perguntou, ela respondeu, não sabia, um verdadeiro mistério, o fusca novinho em folha e justo comigo, justo neste domingo convidativo, meu primeiro passeio sozinha, um horror! Mostrou a ele o capô vazio: sumiu mesmo, está vendo?, desconfio que caiu na estrada, só pode ser. O homem riu, coçou o queixo com um olhar maroto e chamou a mocinha até a traseira do carro.

— Olha, vou lhe explicar uma coisa fantástica. Essa fábrica da Volks é tão boa e competente que costuma instalar um motor sobressalente nos seus carros, para casos como o seu. Igual um pneu de reserva, entende?

O homem, simpático e cavalheiro, levantou o capô traseiro e mostrou. Lá estava o motor extra. Precavidos, os fabricantes alemães sabiam como são ruins as estradas do Brasil, então, não pensaram duas vezes... Mas... e o motor sumido, o que faço agora? Ah, esquece. Ele abriu um sorriso enorme, pra que um brotinho legal como você precisa de dois motores? Só então ela percebeu aqueles olhos verdes e os cabelos grisalhos iluminados pelo sol da manhã... Óbvio, meu Deus, ele é a cara do Jeff Chandler.

Jeff Chandler examinou o tanque. Ora bolas, acabou a gasolina, só isso. Ela se lembrou. Tinha andado de fusca a semana inteira, para visitar amigas e parentes, claro que a gasolina acabou. Enquanto Jeff foi até suacamioneta, ela deu uma olhada rápida no espelho do carro e ajeitou o penteado bolo-de-noiva esculpido com laquê, ainda ontem no salão. Olhou de soslaio, que tipão! E aproveitou para umedecer os lábios, perseguindo um quê de Ava Gardner. O sujeito voltou com um galão de combustível de reserva. E, como um verdadeiro mocinho de filme, reabasteceu o tanque do Volks da mocinha. Que pão de homem!
 
Na hora da despedida, ela sentia o coração partido. Parecia que tudo ia se acabar num clima imitação-da-vida, a alguns milímetros do pranto inconsolável. Então Jeff virou o jogo e pediu seu número de telefone, que ela recitou de imediato. E ele, enquanto anotava, dia desses a gente vai tomar uma Crush junto, que tal, brotinho? Ela ainda tinha os lábios boquiabertos de emoção quando a camionete acelerou e foi embora. À medida que o ronco se distanciava, sentiu crescer no peito a certeza de que estava gamada.

A caminho da chácara, a toda velocidade, ela suspirava até quase perder o fôlego, ah, que estouro de homem. Eufórica no seu fusca de motor duplo, que também funcionava com um só, a mocinha ligou de novo o rádio. Tinha que ser Celly Campello! Lógico, o estúpido cupido anda solto neste domingo. Enquanto cantarolava, sentiu-se inspirada e mudou a letra: vem pra perto de mim... lá rá lá lá, meu coração tão louco para amar! Lembrou-se vagamente do Carlinhos e não conteve um riso. Ora, o nariz do Marlon Brando... Sem essa, meu chapa!


João Silvério Trevisan é escritor, dramaturgo e roteirista de cinema. Autor dos romances Ana em Veneza e Rei do cheiro, também escreveu obras ensaísticas, como Devassos no paraíso. Seu mais recente livro é Pai, pai, o primeiro volume de uma trilogia de romances.