Conto | Cristiano Castilho

Poderíamos simplesmente juntar nossas solidões

Castilho


Ao mesmo tempo, um ônibus amarelo soltou fumaça preta, as colegiais tropeçaram na calçada e as senhoras depositaram o corpo em frente ao prédio. Eu estava prestes a abrir o portão, chaves balançando. Suava no peito do calor de janeiro. O homem caído vestia um pijama conhecido. Isso me acalmou.

Ignorei o que acontecia, subi os três lances de escada, abri a porta, revi as contas não pagas, prometi pagá-las no dia seguinte e olhei pela janela. Uma pequena multidão se agrupava ao redor do homem caído. A cena imitava uma pintura pontilhista. Movimento, roupas coloridas, gestos intermitentes. Acendi um cigarro. Há instantes de incertezas entre a vida e o que achamos que é a morte. Respira-se ou não, viram-se os olhos doidamente ou não, suspira-se com profundeza até então inédita.

Era o fim para aquele homem que vestia pijamas largos às seis da tarde. Estava da cor de parafina, a verdadeira cor da morte. Quatro graus de miopia não me impediram de ver a cabeça caída para trás, os olhos catatônicos, e o gogó, que pronunciado devido à posição exótica, olhava em minha direção como se fosse um olho hare krishna, este sim muito aberto. Acendi outro cigarro. Traguei fundo.

Antes de espiar na janela, tirei o paletó e fiz rodar um vinil na radiola da sala. Talvez quisesse mesmo era aproveitar a cena que transcorria ao vivo, melhor do que qualquer programa policialesco típico daquelas horas em que se chega do trabalho no pique e se está louco para trepar, tomar um uísque, fumar, ouvir jazz. O corpo estava na maca. No chão, a poça de sangue de um vermelho profundo e pedaços de carne recheados de cabelo. Dedos rijos e esfolados agarravam penas imponentes. Colocaram um colar cervical em volta do pescoço. Muitos tiravam fotos com o celular e aquilo atrapalhava a visão do rosto mumificado. O CD tocava a faixa três de um disco de Coltrane quando a bituca do quinto cigarro caiu ao lado da ambulância que acabara de chegar. Senti-me desumano e egoísta. Ri um pouquinho. O silêncio após o aquietar da sirene é banal, mas ao mesmo tempo carrega um sentimento de finitude. Gosto de ambulâncias pelas surpresas que carregam.

Dois paramédicos vestidos de azul bebê ergueram o corpo enorme de Francisco com dificuldade. As pernas estavam como as de um boneco de pano, dobradas em direções impossíveis. Encaixaram um tubo de plástico em seu nariz batatudo antes de enfiarem a maca na ambulância com certa vagareza, como se avisassem em silêncio aos populares que não tinha mesmo mais jeito. A sirene soou novamente e desapareceu como das crianças desaparecem os soluços. Conhecia Francisco há dois anos. E aí você me perguntaria por que não fui acudi-lo, conferir se era ele mesmo, se estava realmente morto. A verdade é que não sei. Meio que desacreditei de tudo. Das coisas deste mundo. Pra ser sincero, o que quero agora é fumar e ver, daqui de cima, as pessoas conjecturarem o que teria acontecido com Francisco. Coltrane está no fim.

Os apartamentos neste bairro, antigamente tranquilo e hoje violento, têm dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro. Quando me mudei, pensei que o espaço total seria pequeno, porque estava acostumado com a casa grandiosa da minha ex-mulher, uma vaca que mentiu para Deus e o mundo e da qual ainda tenho saudades. Hoje penso que morávamos num desperdício imobiliário. Vivíamos juntinhos, na piscina olímpica, em raias separadas, em volta da mesa da sala de jantar (eu numa ponta, ela em outra), e utilizávamos a louça especial de casamento aos domingos para empratar a comida tailandesa do delivery. O silêncio começou a fazer eco e a desconstruir o que pensávamos que tínhamos. Tornamo-nos dois ratos num labirinto em tamanho real. A terceira idade do amor é a solidão mútua.

Francisco morava logo acima, no 48. Seu chão era o meu teto. Em dois anos, conversamos pouco. Não me arrependo. Até achava simpático vê-lo entrar no elevador com o estojo do violão nos braços. Nas noites de fim de semana, sozinho, engatava boleros e serestas. Baladas francesas, Frank Sinatra. Francisco tocava muito mal apesar das aulas que ainda fazia. Eu, também sozinho nessas noites eternas, não sentia pena antes de ligar o som em volume alto o suficiente para abafar suas palhetadas atrapalhadas. Francisco está morto.

Meu apartamento tinha problemas hidráulicos constantes. Água vazava pelo cano da pia do banheiro mês sim, mês não. Às vezes arrumava por conta porque o encanador responsável pela imobiliária só atendia às segundas-feiras, certamente o pior dia para se consertar encanamentos. Tomava banho frio numa manhã de sábado quando notei gotas caindo do teto. Havia uma infiltração, o bolor verde-musgo nojento começava a ganhar forma no gesso descascado. Vinha de Francisco.

Passava das onze e já tinha fumado três cigarros. Subi as escadas, toquei a campainha. Tinha visto o interior de sua casa apenas uma vez, rapidamente, quando o ajudei a carregar um sofá recém-comprado para dentro da sala. Gosto de observar o interior das casas das pessoas. Daqui da minha janela, dependendo do dia e da sorte, consigo ver o que a vizinha do prédio da frente pretende fazer para o jantar, ou que o casal de velhos do apartamento ao lado vê filmes no Telecine Touch de mãos dadas. É um hobby. Faço isso, fumo e escuto jazz e assim são meus dias.

No dia em que nos conhecemos, Francisco abriu a porta depois das minhas três batidinhas e pouco deu para perceber do seu mundo: a sala tinha uma poltrona de couro antiga (provavelmente utilizada para leitura, já que um abajur amarelo se aninhava ao lado), um tapete cor de creme, que contrastava com o assoalho escuro de madeira, dois violões, uma geladeira última geração, destas que armazenam água gelada na porta, e uma gaiola vazia perto da janela. Por algum motivo, senti que era um lar incompleto, como o meu, e isso me fez bem.

“Um vazamento no seu apartamento está inundando o meu”, disse, exagerando para ver a reação do homem. Francisco tinha uns 60 anos, cabelos ralos e grisalhos, um nariz batatudo, como já disse, algumas espinhas na cara e grandes olhos verdes. “Precisamos ver isso. É no banheiro?” Voz solene. A dicção pragmática me lembrou um pouco a do meu pai, que quase separava as sílabas enquanto falava, “VO- -CÊ PRE-CI-SA SOR-RIR MAIS, GA-RO-TO”. “Sim. O encanador vem na segunda-feira.” “Obrigado. Ainda bem que só tomo um banho por dia”, disse Francisco, tentando soar engraçado. “Por que a gaiola vazia?”, perguntei num rompante — se tivesse com um cigarro, daria uma tragada maravilhosa, daquelas de acender a brasa por completo, depois soltaria um redemoinho de fumaça e bateria as cinzas sem olhar para elas, com elegância despropositada. “Tinha um pássaro, mas ele voou pela janela.” “Que bom, está em liberdade agora”, eu disse sem ele esperar. Provocar- lhe algum tipo de desconforto talvez ajudasse. “Provavelmente ele morreu”, interveio o homem. “Não sabia se virar sozinho.”

“Como era o pássaro?”
“Um canário Harzer. Importado.”
“Hum.”

Essa foi a nossa conversa mais duradoura. Eu não fazia ideia do que era um canário Harzer. Só conhecia o belga, e achava extremamente irritante. No mesmo sábado, liguei o computador para pesquisar sobre o bicho. O nome carregava algo de épico. Harzer. Miles Davis no som: “O Harzer é um canário robusto, sendo a coloração da sua plumagem o amarelo, o verde e o manchado de verde e amarelo. A alimentação do Harzer é diferente da de todos os outros canários. A característica principal é a percentagem elevadíssima do nabo na mistura de sementes. As fêmeas geralmente são ótimas mães, cuidando zelosamente dos filhos, e os machos bons pais, mesmo quando acasalados com duas ou três fêmeas. O que distingue o Harzer é o seu canto melodioso, suave e enternecedor, em contraste com o som forte e metálico dos canários comuns. Canta com o bico fechado, numa posição elegante, enquanto a garganta se dilata por debaixo das penas”.

Baita bicho. Teria Francisco ficado muito triste sem o Harzer? Uma vez a síndica me disse que ele era o homem mais triste do mundo, e eu duvidei. Mas, relembrando do seu apartamento agora, e da forma levemente lânguida como olhava para as coisas e as pessoas, penso que sua vida pode ter se transformado justamente numa gaiola vazia, algo ridiculamente inútil. Fui ao aviário. Sábado à tardinha não é uma boa hora para as galinhas de angola, que jaziam esfarrapadas em gaiolas quadradas e imundas depois da bateção de asas e do calor de um dia inteiro. Elas não foram escolhidas por ninguém, a vida é injusta e os bichos ainda não sabem disso. Num canto, uma cacatua maior do que um gato berrava, talvez porque não tivesse mais comida em seu pratinho. Alguns peixes no aquário eram seguidos por aqueles fios de merda que lhes transformam momentaneamente em seres marinhos com rabos compridíssimos. Perguntei a um rapaz de bigode e regata se ele tinha Harzer e ele me disse não, só estricnina. Disse então que não procurava veneno, e sim um canário. Um canário cuja espécie pode alternar entre trinta variedades de canto. Expliquei a ele que certa vez na Inglaterra um operário de nome Henry Seiffert revolucionou uma exposição de canários ao levar vários Harzer, que cantaram em uníssono uma música dos Smiths.

“Não temos, senhor. Só o belga.” Canários belgas são sem graça, parecem pintos que cresceram demais. “O que mais você tem aí?”

“Um pássaro raro, senhor.” Fui guiado a um cômodo anexo, em que havia um aquário com cobras e uma grande gaiola. Dentro dela, uma casa de madeira. Dentro da casa, um bicho espetacular, de um azul-escuro estonteante, rabo comprido e bico como o de um falcão selvagem. “Apareceu há algum tempo. Importado.”

O pior de carregar na rua uma gaiola com um pássaro de uns dois quilos é não ter mãos disponíveis para acender um cigarro. Já era noite quando cheguei em casa, louco para mostrar a Francisco a surpresa, e me sentir importante, apreciar sua gratidão, receber certo louvor e devoção. Deus, como isso é bom. Subi a escada, estava escuro, bati a gaiola na parede e o bicho reclamou. Francisco estava de pijamas largos e parecia cansado. “Pra você.”

Precisava ver a reação do homem! As duas mãos na cabeça, que balançava negativamente como se não acreditasse naquele milagre verdadeiro, os óculos escorregaram da cara porque Francisco começou a chorar de repente. Disse que estava muito feliz, uma felicidade que não lembrava que existia, e que ia cuidar do bicho como se fosse seu filho Thomas, o suicida. Desci os 32 degraus, voltei para casa, acendi um cigarro e ouvi Thelonius Monk. 

Nos dias seguintes, espiando da janela, percebi que Francisco saía mais à rua. Voltava do mercado com sacos de milho, de alpiste, de rações coloridas e frutas frescas. Havia tingido o cabelo. Pela manhã, o canto do bicho ecoava por todo o prédio. Era suave e melancólico, desproporcional em relação à aparência. Parecia a Nina Simone. E assim foi até o dia em que o corpo do meu vizinho foi encontrado no chão do prédio, disforme como uma lasanha crua.

Dois sobrinhos vieram ao apartamento de Francisco no dia seguinte à sua morte. Comportavam-se não como se estivessem de luto, mas como se precisassem resolver as coisas o mais depressa possível, numa velocidade incompatível com a eternidade que de alguma maneira se fazia presente. Talvez não fossem íntimos. Talvez Francisco não tivesse intimidade com ninguém.

Acendi um cigarro e fui para a janela, onde vi um pequeno caminhão sendo carregado com o sofá, o abajur, a poltrona e os violões. Escolhi Bill Evans antes de espiar o andar de cima. As duas gaiolas permaneciam no apartamento vazio, de portas abertas. Cru e esquisito, o cenário era como que uma instalação artística contemporânea sobre o tema “liberdade sem limites.”

O pássaro não era totalmente domesticado. Assim como não são as pessoas infelizes, eternamente sensíveis à infelicidade alheia.


Marluce Reque é aluna de Design Gráfico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vive em Curitiba (PR).

Cristiano Castilho é jornalista. Nasceu e vive em Curitiba (PR). Publicou o conto “Compressa” pela editora Tulipas Negras (2012), foi vencedor do concurso "Minicontos", da Geração Editorial (2012), e um dos autores do Livro dos novos, com o conto “Alvorada” (2014).