Conto: Chuva

Otávio Duarte
ilustra

Esta rua Martim Afonso é movimentada. Nunca um carro deixa de passar, nunca os motores de rugir. Quem pode ouvir outra pessoa dizer uma palavra, uma frase? As calçadas são de lajotas de pedra, cortadas irregularmente, a cobrir a terra. Duras, diversas, difíceis para um carrinho de bebê cruzá-las. Imagine para os joelhos do homem velho que curva a cabeça frente à imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, protegida pelas grades, no parapeito posterior do pátio da igreja. A bulha não o perturba. A garoa a deixar escorridos os parcos cabelos nevados também não e, se uma tempestade houvesse, ele não se daria conta. Absorvido em si próprio, submerge na oração, em sua comunicação com Aquele que a tudo prove. Se levasse uma facada, se fosse atropelado, nem notaria.

Ricardo Pereyra, chama-se, e o melhor sobrenome, não o do registro, talvez seja Sem Deus. Sem Deus e sem nada.

Romancistas procuram momentos perfeitos, distintos e definitivos, nas vidas de suas personagens atormentadas. Será que eles existem? Certamente, isso não acontecia quando Ricardo Pereyra bateu à porta da família Schwartz.

Chovia.

Vês aquela capela pequena, com espaço para cinquenta pessoas, sentadas ou ajoelhadas? A capela Schwartz. Uma comunhão de família e amigos muito próximos. A água caía quando ele esmurrou as portas dela, no fechar da tarde de uma quinta-feira.

Levado para a casa grande, Ricardo viu-se num mundo particular.

A tarde finda, a luz esmaece. O grande jardim dos Schwartz escurece. As luzes da casa se acendem. O jantar está pronto.

— Senhor Ricardo Pereyra, é uma honra e uma alegria que possamos compartilhar da sua presença nesta casa. Esta refeição simples, que a graça de Deus nos permite desfrutar, a todos eleva os sentimentos de boa vontade e hospitalidade. O que seríamos, se não pudéssemos esperar que de outros seres humanos, de outros cristãos, tivéssemos a ventura do enriquecimento, pelo saber das suas aventuras, de suas dúvidas, certezas e incertezas? Não se faz assim o mundo? O que seríamos, se os nossos braços encurtassem e as mãos abertas não ficassem ao alcance do desconhecido que bate à nossa porta, no meio da noite gelada? É para nós uma alegria tê-lo em nossa mesa e as nossas esperanças são de que a mesma disposição ocorra em seu íntimo, e de que, ao nos esclarecer os rumos de seu pensamento, a aliança dos bons propósitos muito mais do que clara fique.

Anne-Sophie e Heinrich Schwartz tinham duas filhas: Anne-Louise e Laurie. O bem das moças costuma ser, acima de tudo, o controle e a sobriedade. A beleza, a alegria, a bondade, a simpatia, o conhecimento das artes e da música a todos enlevam, mas espera-se um grau superior, que as diferencie.

Não que as bem cuidadas filhas pudessem se entusiasmar com um viajante, um aventureiro, um rocker, um cantor de jazz, um bailarino, um pintor boêmio, um guitarrista, ou, Deus as livre, um escritor. Não. Anne-Louise sempre se interessou pela Suécia. Pensava viver bem numa terra regrada pelos costumes, pela lei e pela observância respeitosa dos ditames de um Deus que a tudo via e não se intrometia. Laurie, ouso dizer, tinha inclinação um pouco excessiva, talvez, pela cultura e pelas artes do homem, mais do que pela observância da lei e dos costumes religiosos. Ainda assim, fora educada a confrontar a vontade pura dos anseios com as exigências da contenção e dos atos deliberados pela instrução e pela boa inteligência.

Anne-Louise ostentava ar angelical, com seus olhos claros e cabelos curtos, quase uma acossada por Godard. Laurie, ora cortava as madeixas, ora as deixava crescer. Ora vestia branco, ora preto, ora vermelho.

A mãe, Anne-Sophie, muito bem se aventurava no piano e no canto das lieder, principalmente as de Mahler, o judeu boêmio, talentoso e encantador.

— Anne-Louise — dizia Ricardo Pereyra —, a arte cristã e universalista de Bergman está longe de ser isolada e não pode, de maneira alguma, ser separada das suas raízes suecas.

— Laurie — falava Ricardo —, a modernidade consiste da vitória da cultura clássica e também da contestação e da síntese que as renovam. Tradição e ruptura.

A vida transcorria assim na família Schwartz. E o bom costume não é o de que todos colaborem para a manutenção e o progresso das casas onde vivem e das quais se nutrem? Das mulheres-objeto de encômios, Ricardo foi chamado por Heinrich a esclarecer suas intenções e, se acaso pudesse e quisesse, da possibilidade de participar de um negócio. Antes, deveria explicar de onde e a que vinha.

Ricardo era grato pela acolhida e pela confiança dadas a um filho da noite. O que podia advogar em seu favor? De tristeza e sofrimento era o seu passado. Muitas dores causara, sem querer. Por uma soma de tragédias, aqui tinha chegado.

Longe de Curitiba, em Barcelona, Ricardo trabalhava como operador no mercado de valores. Lá nascera e crescera, orgulhoso das tradições catalãs. Um pecúlio interessante reuniu em pouco tempo, pois sabia antecipar a alta e a queda dos movimentos.

Uma moça atraiu-lhe a atenção. Luísa Paredes, gentilíssima jovem, esguia, de cabelos curtos, morena, usufruía com regularidade das tapas da lanchonete do Palau de la Música Catalana.

Na Barceloneta andavam, a mirar o mar. Ah, “I wanna hold your hand”, cantava a inocência, pois coisa melhor não há. Nas noites, viam o jazz que os amantes descobrem nas canções, nos filmes e nos gestos de afeto.

Chove, faz frio, calor, venta, tudo muda e a vida também.

Amar Ricardo alterava a vida de Luísa. Filha tardia, crescera sob a vigilância e os cuidados ciumentos da mãe viúva, pois o pai se fora antes que o pudesse conhecer. A ausência de irmãos ou de outros parentes a deixava como a única mantenedora da velhice materna. A vida a esvair-se lentamente, cada vez mais necessitada de atenções, dobrava os encargos que pesavam no destino da jovem. Amar Ricardo era amar menos a mãe, dona Alba, pois lhe tirava, progressivamente, o precioso tempo da filha.

Há uma força que move o mundo e renova a espécie. Jovem alguma, se for sadia, deixa de outro jovem procurar, mesmo que não o saiba. E não consegue não se apaixonar, não estabelecer relações, não sonhar.

— Você precisa viver —, dizia dona Alba, com a recriminação, entretanto, fixada na mágoa da idosa, que se achava em vias de abandono. E piorava a velha nos achaques quando a moça tardava ou, raro, pela madrugada apenas voltava à casa. Era uma ordem que mudava, sob protestos e recalcitrâncias.

Bem cedo tinha Luísa Paredes de iniciar o trabalho na El Corte Inglês. A chefia do setor de vestuário da procurada loja a ocupava o dia todo e o fim da tarde era um alívio. O happy hour, a saidinha rápida com os colegas, um desafogo. Depois, a casa, as novelas e dona Alba. Agora, outra rotina se instaurava. Leve de início, complicada logo. Afeições, amores e tempo não se ajustavam. O que Ricardo precisava era dela inteira só para ele. O que a mãe queria era a ordem antiga, que a mantinha e garantia. E do que Luísa necessitava, talvez ela não quisesse se dar conta.

Dominado pela paixão, Ricardo não suportava mais a ausência, o segundo plano em que se encontrava, sem maneiras de vencer. Ele pressionava mais Luísa. Queria que ela fosse morar com ele. Casariam, publicariam a notícia em edital público e tudo seria formalizado. Precisava disso. Não podia mais ficar dessa maneira e exigiu uma decisão. Aceitava ou não.

A mãe horrorizou-se com a perspectiva. Então, definharia em absoluta solidão? Em plena ingratidão da filha adulada? Dela, por quem tudo fizera? O mundo não conhecia, embora muito o desejasse, porque tudo o que tivera, investira na formação da filha. Não era assim? Que reservas poupara para o pagamento de enfermeiras e damas de companhia na velhice? Se em tudo a filha querida tivera prioridade? E disso não se arrependia. Se algo de bom fizera, foi isso, de providenciar para que Luisa uma vida boa tivesse. Mas sempre a pensara juntas. Como ficaria sozinha e desvalida?

Ricardo ligava, dona Alba falava, os clientes da El Corte Inglês multiplicavam-se e não ficavam contentes com o atendimento. Luísa experimentou a vergonha da reprimenda oficial e da visão de portas se fechando. E isso, se era importante para o que imaginava ser seu futuro, era apenas parte das questões com as quais vivia e das quais teria que tomar decisões. Ela postergava, não decidia, e as pressões aumentavam.

Luísa fizera-se forte para dar conta das fraquezas da mãe, que se abandonava. Assim se tornara pela necessidade e não por naturalidade. Não tinha amigas próximas, namorado ou amante, antes de Ricardo. Para a mãe se dedicara, pelo trabalho pensava conviver com o mundo. Com Ricardo, a paixão conhecera. A angústia suprema reinou então, sobre os caminhos que não se abriam, sobre as opções de ganho e de perda. O mundo em que tinha vivido se fragmentava. Ela só achou uma saída.

Da ponta de uma corda muitas fugas acontecem. Dona Alba não suportou o suicídio da filha e logo feneceu. Ricardo sentiu que o mundo lhe faltava e encharcou-se de vergonha e dor. Viu-se como o único responsável pela tragédia, pois Luísa muito bem vivera até então, sem o seu amor obsessivo. Em nada mais pensava. A habilidade que tinha de descortinar o rumo do lucro na compra ou na venda se evaporou e as perdas logo o deixaram no chão. E ele não queria se levantar, culpado que se sabia.

Também Ricardo fugiu, sem rumo certo, por países, aeroportos, cidades. E aqui afinal chegou, numa noite chuvosa, sem saber direito como. Não seria o destino, o perdão divino, a graça de Deus, a abrir a porta da esperança? Não tinha revivido?

Heinrich Schwartz acreditava nos desígnios divinos. Não vivia bem? Não garantia o Senhor o bem-estar de Anne-Sophie e das filhas, não lhe dava a oportunidade do trabalho redentor? Dar a mão ao homem que se reergue pareceu-lhe a única possibilidade de um cristão. Pois ainda que se multipliquem sobre a Terra, os fiéis são os mesmos poucos que se abrigavam nas catacumbas. E só pela fraternidade sobreviveram e prosperaram.

Heinrich guardou a aceitação para si. A mulher e as filhas não sabiam de suas dúvidas, pois obstáculos prévios não colocara. Ricardo Pereyra foi contratado como representante dos negócios da família. Da venda dos produtos dos vinhedos deveria se ocupar e assim fez.

A nova linha de tintos apresentou com eficiência e brilho aos jornalistas e connoisseurs de São Paulo. Os comentários foram receptivos e as encomendas dispararam. A marca Schwartz foi o sucesso da temporada, exigência em todos os restaurantes de público antenado. A cepa europeia adquiria brilho próprio na terra nova. Ganhava força no terroir distinto. Sabores específicos, gostos particulares... elegância, acima de tudo.

Se as coisas dão certo, tudo está bem.

— Anne-Louise — dizia Ricardo —, a cristandade despida de ornamentos é a recuperação da mensagem. Muitos em um.

— Laurie — falava ele —, a diversidade da arte é o espelho que concentra e multiplica as possibilidades de abstração e expressão do ser humano. Um são muitos.

Ricardo Pereyra saiu-se muito bem também em Lisboa.

A nossa bossa da leveza brasileira reverteu a navegação das garrafas, como as variações do batuque e a influência do jazz tinham feito na música. Navegar é preciso, em Goa, Luanda, Florianópolis ou no Porto. A linha Schwartz era, então, o melhor blend. A mensagem original, partida da Europa quinhentista, voltava no cálice da aceitação dos povos, enriquecida, amadurecida e plural.

Se o olor do vinho assim fluía, se os negócios avançavam, tudo o que bem estava não acabaria bem?

Heinrich Schwartz pensou numa grande comemoração.

Dos ardores luteranos, Anne-Louise se deixara tomar de interesse pelo estrangeiro católico. Os dias curtos do inverno sueco, propícios ao recolhimento e à reflexão, não lhe pareciam mais atraentes que a luminosidade do verão curitibano. Os planos do novo assentamento tiveram de aguardar. Uma abertura teológica se prenunciava.

Laurie, se os humores alterava, não deixava nos modos demonstrar. Nada parecia importar nas atitudes independentes que sempre tomara. A atenção ao estrangeiro não a ocupava mais que o tempo devido da educação e da boa formação. Espaço maior tinha que dedicar à leitura dos novos poetas e performers, pelos quais se encantava e dos quais se esquecia, assim que a maré recuava e a vanguarda a retomava.

E foi por ela que Ricardo Pereyra não conseguiu deixar de se apaixonar.

O baile brilha. A música da orquestra a ninguém deixa sossegar. A bebida estimula os desinibidos e libera os tímidos. A dança é o ritual alegre da tribo, que a todos envolve. A valsa estonteia nos rodopios.

Heinrich Schwartz aguarda os visitantes na porta da casa. Ele procura: onde se encontra Anne-Sophie, que ainda não veio?

No mezanino a dominar a vasta sala, Ricardo Pereyra aprecia a festa. Anne-Louise ou Laurie lhe darão a honra imensa do acompanhamento?

Um toque suave no ombro o faz transformar-se. Ele vira-se, ansioso: não é nenhuma delas.

Assustado, Ricardo Pereyra inclina a cabeça ante sua patroa, Anne-Sophie. E o que ele vê é o olhar desesperado: o largo colo resplandece, uma corrente de ouro e o crucifixo sobre a pele, contrastando com o vestido de veludo verde. Anne-Sophie dirige-se para Ricardo, plena de intenções, perdida totalmente nas vontades. Ela o cerca, impede a fuga, o olhar fixo em seus olhos, as mãos seguram-lhe os ombros, a boca abre-se para tomar o gosto da dele.

— Mãe! — Grita Laurie, e corre em direção aos dois. Os saltos altos dos sapatos a atrapalham e ela perde o equilíbrio. Tropeça, bate na murada do mezanino, vira e tomba. Cai e o barulho do corpo a bater no piso de mármore é o do fim de muitas vidas.

Veja agora esse homem envelhecido, que se ajoelha nas lajotas duras da calçada, sob a chuva. Causou a morte de quem amou e levou a tragédia para dentro da casa que o abrigou da tormenta. Os que dele se aproximaram receberam o pior dos destinos. Por isso, só conseguiu passar a vida em solidão, apartado do convívio que ameniza o sofrimento. Pois ele só traz dor. Pensa carregar uma maldição, uma doença peçonhenta que envenena a vida daqueles que a sorte traz ao seu redor. Tudo lhe foi negado. Todos os castigos experimentou, de todas as pessoas se afastou. Não tem razão de sofrer, rezar e pedir perdão?


Otávio Duarte é escritor e jornalista. Morou em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Entre outras obras, publicou o livro de poemas e contos Fanfarra infante (1998), o livro de contos Seis romances e uma pintura (2001), e o álbum Clepsidra, em parceria com o pintor Rones Dumke (2010), que ilustra o conto publicado aqui.

Ilustração: Rones Dumke