Conto | Carla Bessa

Urubus

Ao puxar o sapato vem junto uma perna esgarçada. Mas não é só de calça desmembrada do dono, não. Tem gente dentro, carne, osso. Tem sexo. Dá para ver direitinho que tem tudo isso ali dentro da perna daquela calça. É homem. É, ou foi. Será que está vivo ou morto? Mas antes de se ocupar disso a mãozinha ainda gordinha de criança apalpa, se escarafuncha para dentro do bolso, quem sabe não tem dinheiro por aqui. Já teve várias vezes, tantos fundos de calça recheados ali no lixão.

Ao sentir-se cavoucado, o quadril lá dentro da roupa se contorce, vira de bruços, a mãozinha do ladrãozinho fica imprensada, vai junto, ai meu deus. Cambaleia-tropeça o menino por cima do corpo que, caramba tá vivo mesmo. O cheiro é: não tem nem como descrever, é é é azedo, é é é insuportável. O corpo nos resíduos parece que reside há muito tempo. O menino grita, mas da boca não sai som. Com desmedido esforço dá um último puxão cheio de dor-raiva-medo, a mão liberta, a boca solta um suspiro, aaaaah. Um pedaço de calça com pele grudada, escamas, gordura, um líquido preto vem junto na palma suja. O homem no meio do lixo se decompõe, o menino pensa. E se lembra do pai lendo o panfleto, arrancando com os dentes letra por letra das palavras: “o chorume do aterro é um líquido preto que escorre do lixo, penetra na terra, contamina o solo e o lençol freático”. O menino na hora não entendeu, mas achou bonito o lençol freático e desejou um para sua caminha que na verdade era só colchonete sobre chão duro.

O mesmo pai que, agora, bem ali pertinho, avista o filho e chama, ô Zezinho! O menino se ergue apoiando o bracinho naquele corpo encontrado ali, a criatura afunda ainda mais no entulho. No rosto empastado do homem no meio do lixo de repente os olhos se abrem e, quem é você, garoto? Zé Duardo, às suas ordens, o menino pensa, mas não fala. A cara do homem deitado não dá para ver se é preto ou branco, nem o peito nu, agora vestido de lama. Zezinho arrepia.

   Ilustração: Carolina Vigna
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As canelinhas finas ao alcance das mãos encardidas, dos dedos de graxa-gordura-carvão daquele ser imundo que logo estica o braço e puxa, ai, não! De novo a voz sai só na cabeça, o berro fica entalado. A gargantinha apertada, pensa em chamar o pai ali a poucos passos, tão pertinho e tão longe longe longe, mas o grito sucumbe em plástico-resto-de-comida-lata-velha, corta o lábio. O homem agora agarra o menino, abraça, beija! e solta um ar podre da boca, não moço não! A voz do menino agora estridente-entredentes. E enfia o pezinho numa fundura bem no lugar do sexo do homem-lama homem-lixo homem-bicho. Que solta um gemido um latido um ai abafado, não se sabe se dor ou o quê.

Zezinho liberto pisa naquele peito, nos braços, o homem afunda afunda. Zezinho desacorrenta a raiva o medo, pula em cima do esfarrapado, dá chute na cara suja da criatura. A cabeça vira bola, rola de um lado para o outro, resfolegando colada na sola do menino. Por fim o corpo pende para o lado, descamba para dentro de um desnível uma vala, Zezinho não tinha visto, quase vai junto.

De repente, do rabo do olho, ele advinha o pai acenando, ô, vem cá moleque, tô te chamando! Zezinho plantado-estatelado, não se mexe nem a cabeça vira. Agora o olhar pregado no deslumbre do homem escorrendo para dentro da terra, se esfarelando, liquefazendo. Zezinho fica com medo, será que matei o sujeito. Nisso, sente uma mão embrutecida um tentáculo sobre o ombrinho pontudo de tão magro, um susto da porra, o menino quase desmaia. Mas era só o pai, a boca anunciando, esse aí, dizem que ele vive aqui. É o homem-chorume, o fantasma, o anjo do lixão. Não mexe com ele, não. Aí Zezinho aprende que o ser humano no lixo falta pouco para ser lixo humano. Zezinho compreende que aquele é ele daqui a alguns anos.

O pai e o filho se afastam, os olhos nos pés chafurdando nos resíduos. Mais adiante o pai nota Zezinho se virando toda hora para trás, chega garoto, esquece ele, vamos almoçar. O menino não obedece, observa espantado os urubus sobrevoando o lugar onde o homem caiu. Caiu não, escorreu.

Quando chega na tenda à margem do aterro, o almoço posto na mesa, foi dali mesmo, foi dos restos que tiraram tudo, tem o que aproveitar. Zezinho come devora o que encontra no prato, mas não é muito. Uma garrafa de Coca-Cola um outro moleque encontrou ainda fechada, divide com ele e ficam amigos. E mais um resto de um prato de alguém que ficou doente, ficou sem fome. Depois do almoço Zezinho levanta, arrota, anda e sobe um montinho com o amigo novo. Dali dá para ver o lugar onde encontrou o homem, os urubus rodeando, e a criatura lá em pé de novo catando lixo, comendo ali mesmo, então não morreu. Zezinho despreocupa. Aponta, mostra para o amigo, olha ali, conhece ele? Mas o amigo ocupado com um troço que achou não dá atenção na hora. Insiste para Zezinho descer, ele vai muito a contragosto. Quando vê era só um diário todo escrito, de nada me serve, não sei ler. Sobe o monte de novo arrastando o companheiro e quando olham o homem-chorume já tinha sumido. No lugar onde estava, agora pousados bicando o lixo: um bando de urubus. 


CARLA BESSA é uma escritora e tradutora carioca radicada na Alemanha desde 1991. Estreou na literatura com Aí Eu Fiquei Sem Esse Filho (2017). O conto “Urubus”, publicado pelo Cândido, foi um dos vencedores do Prêmio Off Flip de Literatura e integra um livro homônimo que será lançado neste mês de julho, durante a Festa Literária Internacional de Paraty.