Conto | Caetano W. Galindo

Livre-arbítrio

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Quando esta estória começa a dela está para acabar.

Tinha que ser uma ponte. O que deixa a coisa toda já com uma cara meio convencional, convencionada, falsa.

Tinha que ser uma ponte, tinha que ser de noite. Tudo bem.

Mas aí também tinha que ser uma ponte dessas mais velhas, com uma grade que ela conseguisse pular facinho, porque ela nunca foi boa de pular muro. E porque, convenhamos, ia ser totalmente ridículo cair da grade e morrer lá embaixo no rio por acidente.

Tinha que ser um rio.

Agora que diferença haveria de fazer. Se você decide se matar, que diferença haveria de fazer o como, o quando, o onde, e muitíssimo especialmente que diferença haveria de fazer se fosse ou não fosse totalmente ridículo, muito especialmente se ninguém soubesse que tinha sido totalmente ridículo.

E fazia diferença alguém saber?

Se ela queria se matar, se queria acabar com a própria vida, fazia diferença? Por que o rio? Por que a ponte? Por que esse momento todo ali parada do outro lado da grade que afinal foi fácil de pular e era muro, não era grade, deu pra sentar em cima e jogar as pernas e descer com bastante calma até ficar ali agora parada, de pé, pensando esse monte de merda e olhando o rio, sem ter corrido o risco de despencar por acidente e morrer descomposta, de susto.

É a última decisão que ela vai tomar.

E a mais importante.

E já tomou.

Talvez seja isso, então. Menos do que essa ideia de saber se os outros vão saber ou se vai parecer ridículo, ou sei lá o quê. E pra quem.

Talvez seja o fato de que essa decisão tem que ser pesada, medida, sentida em cada passo, em cada grau, cada degrau, em cada passo, em cada salto, em cada passo. Que pelo menos neste momento da vida dela, neste momento que vai acabar com a vida dela, ela tenha tido controle, tenha podido decidir de verdade, tenha escolhido.

Inclusive escolhido este lugar.

Que tinha ponte, em cima de um rio, que tinha grade de murinho que era fácil de pular, que tinha até, e isso também ela nem lembrava quando lembrou dessa ponte, daquele dia com as meninas,que tinha até tipo esse beiralzinho do outro lado da grade, onde ela agora podia ficar parada, sozinha.

E era longe.

Meio que no meio do mato.

Era uma estrada.

Aí inclusive tinha pouquíssima chance de aparecer alguém tipo Ei, que que cê tá fazendo aí. E aí cena.

Tipo um guarda.

Ou um carro passando. Quando ela chegou, ficou coisa de meia hora dentro do carro, relendo os bilhetes que tinha escrito e que ficaram direitinho em cima do banco. E nenhum outro carro tinha passado.

Agora, ela já estava ali fazia coisa de mais uns vinte minutos.

E carro nenhum.

Era um dos maiores medos dela. De aparecer alguém e acabar com esse momento que, pelamor, era pelo menos um momento que ela queria que fosse dela, tranquilo. Pensado.

Mas não vai aparecer ninguém.

Quando esta estória acabar. Só.

Quase uma hora ali. Entre carro e beiralzinho. Quase uma hora pra chegar de casa ali naquele pedaço de estrada. Devia ser umas três da manhã agora.

Fazia pelo menos duas horas, duas horas e meia, que ela tinha decidido, pesado, escrito bilhetes, escolhido, marcado lugares. E a vontade não se alterava.

Estranhamente calma. Ela estava estranhamente calma. Nunca pensou que pudesse ser assim.

Medo do pulo ela não tinha.

Tinha era medo de alguém chegar. Assim como antes de pensar direito tinha medo de cair por acidente e morrer ridícula. Ainda tem. Mas não tem mais acidente. Agora que o murinho está atrás dela.

É decisão.

É decidir.

Ridículo, afinal, era se importar com o ridículo.

Que nem quando ela ficou tentando limpar a sola do tênis no tipo de meio-fio do outro lado do muro, antes de subir, de sentar. Porque quem foi o samonga que me veio passear com um cachorro aqui nesse meio do nada.

Deve ter sido um cachorro do mato, ridícula. Ou outro bicho.

Deve estar cheio de bicho olhando em volta. Sem entender.

Sem capacidade de entender ou de decidir. Que nem eu. Que eu tenho.

E a luz do carro ficou acesa. As luzes. A de dentro e a do farol. Para ela poder ver em volta. Para poder como que ter consciência. E ela ficou raspando e reolhando a sola do tênis pra tirar os restos. E aí desistiu.

Ela ia se matar, caralho.

E, quer saber, ia se matar caindo num rio. Ia lavar tudo. Ia ficar tudo limpo. Nem com isso ela tinha que se preocupar, se tinha que se preocupar com alguma coisa. E desistiu.
Mas aí o cheiro.

Parece que de mexer naquilo só piorou. De raspar um pouco e não tudo.

Não é que ela queria tipo ‘gozar’ o momento. Esse último momento.

Como se houvesse algum prazer nisso. Nesse momento.

Mas atrapalha, o cheiro.

Se bem que se ela não pula de uma vez...

Se decidiu tem pelo menos três horas que vai pular e não pula de uma vez, é por quê? Se não por algum tipo de prazer nesse adeus?

Raspa de novo a sola do tênis, agora deste lado do murinho.

Só que o tal meio que beiral aqui desse lado é meio redondo, de repente até pra evitar que alguém queira ficar aqui pra pular (ela tem que se segurar no murinho o tempo todo, uma suicida que se segura para não cair). Ela esfrega a sola uma só vez, deixando uma marca comprida no cimento claro, que, claro, só piora o cheiro. E ainda deixa aquela trilha atravessada, como uma seta de merda que aponta pro rio.

Ela dá um passinho pro lado.

Com cuidado.

Suicida com cuidado.

E o mais estranho é que esse assunto todo do suicídio... Da decisão, das escolhas e decisões, de fazer essas coisas uma a uma, bilhetes, escolher roupa... Escolher roupa. Ela escolheu uma roupa. Que essa coisa toda, e esse tempo todo, essas mais de três horas cuidando disso tudo meio que apagaram o resto todo. O que levou ela a pensar naquilo tudo pra começar.

Restou a certeza da dor.

A certeza da desilusão. Da irresolução.

É só por isso que ela não mudou de ideia nesse tempo todo. Que ela ainda está aqui. Mas ela ainda está aqui.

Se preocupar com acabar com tudo aquilo de uma vez fez, pela primeira vez, tudo aquilo sumir do primeiro plano. Ela esteve ocupada demais nas últimas horas, fazendo finalmente alguma coisa por si própria. Finalmente alguma coisa definitiva, certa, clara, que só ela mesma podia fazer, só por ela mesma. Que não dependia dela. Que não dependia de ela me querer ou não me querer. Que não dependia de a mãe dela achar esquisito duas meninas juntas. Que não dependia de ela se preocupar com isso e me mandar pastar. Me foder.

Não foi uma distração. Uma ocupação qualquer que apagou aquele zumbido de fundo das últimas semanas. Uma outra atividade não teria.

Foi só por eu ter decidido vir aqui, pular de uma vez, que aquilo se apagou.

Porque decidir pular é a solução. Resolveu de verdade os problemas. Os meus problemas.

Porque acaba. Porque não tem mais. Porque não dói mais.

E quando acabar, e não tiver, e não doer, não é mais problema. De ninguém.

Mas agora, já só por eu ter decidido, escolhido, feito uma coisa por mim, clara, definida, eu já posso sentir antes essa tranquilidade.

Já é quase como se eu não precisasse pular.

Mas isso só porque eu vou pular.

Nessa noite linda. Sem lua. Montão de estrela. Com esses bichos todos me olhando por causa da luz do uninho. Das luzes.

Com aquele rio e aquela pedrarada lá embaixo.

Bem lá embaixo.

É respirar fundo. E chega. Cansei.

***

Foi.

Acharam o corpo dela ontem. Parece que foi tem uns dois dias. Tinha. Tinha um monte de bilhete no carro.

Mas parece que não deu pra ler.

Parece que ela tinha deixado a janela aberta e uns bichos entraram. Sei lá, tipo serelepe. Roeram meio que tudo. Tinha comida no carro, e a bateria tava arriada, então os caras acham que ela tinha deixado a luz acesa. Aí entrou um monte de bicho.

O estofamento. Tudo. Tava tudo ferrado.

E os bilhetes.

Meio roídos, meio rasgados.

Diz que deu pra ler só uns pedaços.

É.

Foi o que me disseram também.

É.

Que o mais engraçado era isso. Que tinha uma puta marca de lama no beiral da ponte mais ou menos de onde ela deve ter pulado.

Porque tinha chovido uns dias e depois não chove mais tem uns três lá.

Que parece que no fundo, no fundo mesmo, ela acabou foi escorregando.

Foi.

Caetano W. Galindo nasceu em 1973, em Curitiba, onde mora. Desde 1998, é professor de História da Língua Portuguesa na Universidade Federal do Paraná. Traduziu obras de Thomas Pynchon, David Foster Wallace e Ulysses, de James Joyce — trabalho reconhecido com o Prêmio Jabuti e com um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Ensaio sobre o entendimento humano é a sua estreia na literatura.

Ilustração: Renato Faccini