Conto | Bruno Bandido

Bambinos


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Ganhei quinhentos reais por publicar um conto na Granta. Foi uma boa quantia e foi a única coisa que eu já ganhei com literatura e provavelmente vou ganhar. Quando a bolada entrou na minha conta, tirei logo tudo e fui à livraria Saraiva comprar dois caros calhamaços do Kerouac e um do Bolaño. Eu costumava roubar da Saraiva, mas agora eu tinha quinhentos mangos, por que não? Aí resolvi passar no Bora Bora, um boteco perto da minha casa. Cíntia Laura tava lá, a gente bebia e dormia junto de vez em quando. Era uma mãe solteira de 46 anos que aparentava, pelo menos, uns oito a mais. Eu gostava dela. Tinha um senso de humor ridículo, um gosto brega e um hálito insuportável — posso garantir que a gente se dava bem. Senta aqui, meu amor, vâmo rachar uma jarra de vinho, ela disse.


Hoje não.

Vai beber conhaque?

Vou comer em algum restaurante, quer ir?

Uh, com que dinheiro?

Ganhei escrevendo um conto.

Conto? E tu escreve, é?

Vâmo na Bambinos. Vâmo pegar um táxi.

Mas é tão perto.

E daí? Vâmo de táxi.

Meu deus, quanto tu ganhou? Mil reais?

O taxista ficou incomodado por sair do ponto pra percorrer aquela ínfima distância, mas Cíntia Laura parecia se sentir gloriosa quando eu disse Galeteria Bambinos, por favor. Pedimos uma garrafa de tinto seco de cento e sessenta reais e comemos pra caralho. Nenhum de nós costumava ficar bêbado com uma garrafa, ainda mais com o estômago cheio, mas naquele dia ficamos e ela ria estridente na granfina Galeteria Bambinos enquanto eu comia polenta frita e coxas de frango com as mãos. Tua barba tá tão suja, ela disse sorrindo. Minha barra? Por quê? Barba, eu falei barba, seu surdo! e então ela gargalhou de novo imbuindo aquele clima desagradável na vida dos outros clientes.

Sobre o que tu escreve?

Sobre você.

Sério, Bruno. Esse conto aí é de quê?

Sei lá.

Fala, menino.

É um moleque que apanhou numa briga e aí tá no centro da cidade com a namorada matando tempo antes de ir trabalhar.

E ele vai pro trabalho?

Sei lá, isso não aparece no conto.

É só isso? Ele matando tempo? É, depois ele passa em casa e toma umas cervejas com a namorada travesti do pai, eu disse e, mais uma vez, ela riu pra valer. Por que tu não pede um petit gateu? perguntei, Cíntia Laura seguiu rindo, Vai fundo, pede aí. E ela pediu e comeu toda a merda daquele sorvete.

Meu ex-marido uma vez me levou numa galeteria lá no centro. Era cara também, não tão cara. A gente ficou duas horas comendo e, quando ele não aguentava mais, perguntou se não podiam fazer uma quentinha com o que tinha sobrado nos pratos. Que falta de classe, né?

Era o direito dele.

Ah, tu não faria isso. Eu não deixaria nada no meu prato, eu disse e ela gargalhou e então começou a chorar. O que foi?

Nada. Deixa pra lá.

O garçom pareceu mesmo surpreso quando viu que a gente ia pagar a conta, mas talvez fosse apenas nossa impressão de vira-latas. Deu trezentos mangos, ele trouxe a máquina de cartão, dispensei tirando as notas do bolso e fiquei contente porque ainda tinham sobrado quase setenta reais preu gastar com conhaque até o fim do mês. Cíntia Laura quis voltar caminhando porque o céu tava estrelado e parecia um bom fim pruma noite romântica. Entramos em sua casa, ela foi preparar um café. A filha dela, Laura, tinha dezesseis, três a menos que eu, e tava com seu namorado rapper na sala. Resolvi ficar com eles assistindo TV até ela voltar da cozinha. Pude perceber que o mano fez alguma piada a meu respeito nos ouvidos de Laura.

Qual foi? perguntei.

Nada não, bicho. Sem stress.

Stress é o caralho, eu disse.

Para, Bruno, tu tá bêbado. Laura disse.

Grande merda, esse moleque tem que ter respeito.

Vai se fuder, seu gordo de merda, o mano explodiu. Pior tu. Tu tem que ter vergonha, sacô?

Vergonha?

Vergonha na cara. De comer uma velha, com a filha aqui dentro.

Então eu levantei, puxei o mano pela camisa e ele me acertou o primeiro soco. No queixo. Não cheguei a cair, mas foi quase, apertei seu pescoço, empurrei contra a parede e comecei a bater com a cabeça dele. Ele me chutava, mas eu só queria esmagá-lo. Laura gritou pela mãe e aí começou a gritar preu parar. Era isso que teu pai faria, eu disse, enquanto seguia batendo no moleque, que, a bem da verdade, moleque ou não, devia ter a mesma idade que eu.

Não fala do César na minha casa, Cíntia Laura gritou. Deixei de bater no mano e olhei pra ela entrando na sala, ele me acertou outro soco e me empurrou, caí de joelhos.

Parem com isso! Alex, vai embora.

Nas mãe, disse Laura.

Mas mãe nada, ela disse. Alex, vai embora daqui.

É, vai embora, Alex, eu disse.

A menina saiu chorando pro quarto. Não fala nada sobre o pai dela, sobre o meu ex-marido, nessa casa, Cíntia Laura gritou comigo de novo. Levantei e fui pra cozinha lavar o rosto e beber o café.

O que eu fiz pra merecer isso? ela chegou dizendo.

Nada, eu disse, vem beber o café.

A Laura tá um inferno. Que buceta, nossa noite tava tão boa.

Ela não gosta da vida que tu leva.

Ô, Bruno. Quem é que ia gostar? E aí a gente ficou em silêncio bebendo o café. Ainda naquela noite, voltamos ao Bora Bora. Ela achou que seria divertido. Eram umas quatro da manhã e os bêbados de sempre nos saldaram. Cíntia Laura contou a todos sobre o fato de eu ser escritor e meu pai namorar um traveco e sobre nosso jantar na Bambinos — parecia quase feliz. Fiquei ali, empurrando umas doses de Dreher até ela querer ir embora.


Bruno Bandido nasceu em 1990 na fronteira com o Uruguai. Hoje mora na Bahia e escreve no blog brunobandido.wordpress.com. Tem contos publicados na revista Granta e na coletânea É assim que o mundo acaba. Ainda em 2014, lançará seu primeiro livro, Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro.

Ilustração: Rafael Campos Rocha