Conto | Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

quermesse



quermesse
os suicidas reuniram-se para o grande sorteio, e foi surpresa para os organizadores que a barraca estivesse tão cheia, tão ruidosa naquela noite, pois era a primeira e última vez que um encontro dessa natureza se realizava, mantido num irônico e tumular segredo, como diziam entre si, rindo em juramento, os dedos cruzados nos lábios, porque em boca fechada não entra beronha, ameaçavam, sob pena de que um raio caísse na cabeça do eventual linguarudo, antecipando para ele, de modo vulgar e oposto ao que sonhara, o desejado final dos tempos, por isso se assustaram com aquela afluência injustificada, o evento era sigiloso, poxa vida, quase restrito, não ocorresse obrigatoriamente em praça pública, mas sem os regulares anúncios em carro de som, sem cartazes, sem peças publicitárias no rádio, nada, nada, nem mesmo os operários, contratados para a montagem da estrutura que sustentava a lona, faziam ideia do teor daquele festejo, fato que, com razão, portanto, deixou bastante apreensivos os festeiros, desconfiados uns dos outros, temerosos de que algum deles pudesse ter dado sem querer com a língua nos dentes, experimentando de antemão o gosto do próprio sangue e, arrependido talvez do sabor intragável de si, tivesse espalhado, à boca pequena, a verdade do prêmio desse raro sorteio, amparando-se numa probabilidade que diminuísse a chance de todos, entre os quais ele desgraçadamente se misturara, então, por isso, enquanto as cartelas da tômbola eram distribuídas, os patronos da quermesse demonstravam uma exagerada preocupação com a quantidade de pessoas, supondo o número de bilhetes insuficiente, o que por certo excluiria da disputa boa parte deles, ocasião em que o mais suspeito opinou, pressuroso, mas não muito, para não confessar com a solicitude forçada aquilo que a sua sugestão deveria desmentir, que havia a possibilidade de conseguirem mais cartelas na papelaria da ana lúcia, que morava ao lado da lojinha 7, ali perto, comprometendo-se inclusive a ir pessoalmente buscá-las, ora, ora, ora, tal observação gerou algum desconforto, posto que um ou outro desocupado aventou a hipótese de que aquilo não passasse de estratagema barato para cair fora, isso sim, deixando todos na mão sem tômbola dessa vida, ou quase todos, como se disse, e justamente os festeiros, caramba!, que ficariam impossibilitados de beliscar, na própria pele, o resultado maior daquele sorteio único, bem, nada disso aconteceu, ele foi à lojinha 7, encheu o saco da proprietária e, mais ainda, de seu marido, um sujeito estranhão que levantou a porta do estabelecimento resmungando alto, para que o cliente desorado ouvisse, pagou, conferiu o troco e voltou com as cartelas, garantindo a participação dos organizadores, sem exceção, pronto, era só começar, o povaréu aguardando ansiosamente, todos os suicidas da cidade ali reunidos, alguns de cidades vizinhas, até, esperando ganhar de mãos beijadas e cruzadas o grande prêmio que viria em boa hora, como pilheriavam os mais desembaraçados, dois patinhos na lagoa, 22, foi assim que o locutor conseguiu silêncio absoluto, cantando pedra após pedra o caminho sobre as águas que levaria apenas um sortudo para o fundo, cartela cheia, hein!, só vale cartela cheia, anunciava, até que se deu o imprevisto, quando um sujeito corpulento, no meio da barraca, gritou, como de costume, a boa!, a boa!, o que ensejou uma discussão violenta, a cartela é minha, seu filho da puta!, ele roubou a cartela!, eu?, a cartela é minha, seu sem-vergonha!, confusão que paralisou o sorteio, desviando os olhares para a briga de dois homens que começavam a trocar sopapos e cadeiradas por conta de um cartão quase premiado, tem cabimento?, mas não foi esse o imprevisto, não, não, há quem diga que os brigões mancomunados com o locutor e tradicional leiloeiro da região, pode ser, porque ele desapareceu da barraca sem que ninguém percebesse, aproveitando-se da balbúrdia e levando consigo o grande prêmio, para espanto e decepção de todos, que voltaram para casa de mãos abanando, como sempre, desde que saíram do lar para ganhar a vida, coitados, e tudo por causa de um ladrãozinho safado, sim, a polícia iniciou as buscas naquela noite, mesmo, em vão, é verdade, mas muitos ainda acreditam que as diligências da lei trarão de volta o grande prêmio, recuperado e quase intacto, a esperança não é a última que morre?, cor de varejeira ela tem..., debocham aqueles mesmos vadios, para desespero com remédio dos suicidas, e eles têm razão, porque o delegado hoje mesmo se pronunciou receoso de que seja tarde demais, e de que o facínora, a estas horas, possa estar morto, mortinho da silva, indigente sem nome usufruindo o grande prêmio em algum lugar para sempre ignorado.



Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nasceu em Mococa (SP). Estudou na USP, onde se graduou em Letras e ingressou na pós-graduação. Na década de 1990, abandonou a academia e foi morar em Arceburgo (MG), onde vive. Publicou o livro peixe e míngua, poemas, e outros textos em diversos jornais e revistas. Em 2012 publicou seu primeiro romance, as visitas que hoje estamos. Vários veículos e críticos literários, a partir de então, têm apontado o escritor como um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Em novembro último estreou na literatura infantil com o livro O Amor pega feito um bocejo. O fragmento publicado nesta edição faz parte de um romance inédito, ainda sem previsão para o lançamento.