Conto | André Sant’Anna

A História do André Sant’Anna

Na verdade, André Sant’Anna não é George Harrison, estou confessando. É que ser o George Harrison é a melhor coisa que alguém pode querer nesta vida estranha, muito doida mesmo. E o Andrezinho começou a ser George Harrison na passagem do ano de 1967 para o ano de 1968, perto do natal, quando os Beatles lançaram o Magical mystery tour e o pai e a mãe do Andrezinho ainda não eram meio hippies, mas estavam começando a ser e nós estávamos em Londres e eu só tinha três anos de idade e, nesse natal, eu ganhei Help, Magical mystery tour e um carrinho dourado do James Bond, que tinha os bancos ejetáveis e o teto abria assim. E essa é a lembrança mais antiga que eu tenho da minha vida: o Andrezinho ouvindo o Magical mystery tour numa vitrolinha, brincando com o carrinho do James Bond, no quarto de hotel e, pô, depois de quase cinquenta anos, eu sinto a maior inveja do Andrezinho, pois só eu sei, e não consigo explicar — acho que tudo o que escrevo é para explicar isso, explicar algo, something, esse negócio, um arrepio assim, que Magical mystery tour, uma música pouco conhecida do disco, Blue jay way, do George Harrison, e outras coisas que eu não sei explicar, coisas que alguém com três anos de idade percebe e guarda para a vida inteira, uma parada proustiana, embora uma vida inteira não seja nada se comparada ao infinito, à eternidade, ao cosmo e a todas essas coisas estranhas, que fazem até a gente saber que Deus existe — e só eu sei como é emocionante aquilo que o Andrezinho sentiu e que nem era nada demais assim, só Blue jay way, o carrinho dourado e devia ter uma luz entrando por alguma fresta, algum cheiro, sei lá.

 O pai do André Sant’Anna é o escritor Sérgio Sant’Anna, mas, naquela época, o pai do George Harrison, desculpe, eu não sou George Harrison, o Sérgio Sant’Anna ainda não era escritor, nem meio hippie, mas estava começando a ser, tinha ganhado uma bolsa para viver em Paris e o Andrezinho, que foi gerado na véspera do golpe militar brasileiro, estava em Paris no Maio de 68 e também havia passado pela Primavera de Praga, em Praga, onde ganhou uma coleção de fantoches, um verdadeiro elenco de atores para as primeiras histórias inventadas pelo Andrezinho bonitinho, inteligentezinho, testemunhazinha da História, meio precocezinho, tirando a maior onda em Paris, em maio de 68, e ouvindo quase que em primeira mão, o Magical mystery tour, em Londres. Outro momento forte da História que o George Harrison assistiu de perto foi a Reunificação da Alemanha, mas isso é mais para o final da história.

Aí o De Gaulle desconstruiu a juventude revolucionária francesa, meio anarquista, meio hippie, meio comunista, a Chinesa do Godard e os soviéticos fecharam a Primavera de Praga, a caretice sempre vencendo, os idiotas sempre no poder, e o Andrezinho Muniz Sant’Anna e Silva voltou com o Sérgio Sant’Anna e a Mariza Muniz para Belo Horizonte. O coitadinho não aprendia a amarrar o sapato, apanhava das meninas do prédio, não aprendia a andar de velocípede, era sempre o primeiro a ser achado no esconde-esconde, mas tinha uma cabeça deste tamanho e, como era George Harrison, já sabia bastante sobre o De Gaulle, golpes de estado, rock’n’roll, 2001 — Uma odisseia no espaço, Roberto Carlos, João Gilberto, a Tropicália. Uma vida interior profunda dentro daquela cabeça enorme em cima daquele corpo magrelo. E aí o Sérgio Sant’Anna foi ficando meio hippie, ficando meio hippie, a Mariza foi ficando meio hippie, ficando meio hippie, e o George Harrison foi ficando uma criança meio hippie, meio Robson Crusoé, meio jogador de futebol, da Seleção Brasileira, do Fluminense, e nasceu a irmãzinha do George Harrison, a Paul McCartney, que tocava um pianinho de brinquedo, enquanto o George Harrison tocava balalaica e cantava fingindo que um penduricalho da cortina era o microfone. Pois é, estou confessando: esse negócio de que George Harrison é na verdade o André Sant’Anna, na verdade, é tudo mentira. E a mãe do André Sant’Anna abriu um atelier de arte infantil, que era um negócio diferente, nós, as crianças, fazendo uns negócios muito loucos, uns robôs muito loucos, uns monstros e a gente fazia música também e tinha o Matheus, colega de escola e de Atelier do André. O Matheus sabia tocar The fool on the hill na flauta doce e o George Harrison não sabia tocar instrumento nenhum, mas já tocava todos os instrumentos. E eles também eram os Beatles.

Os tios do André Muniz eram todos hippies na época, quando o pai e a mãe do George Harrison foram para os Estados Unidos, por causa de outra bolsa que o Sérgio Sant’Anna tinha ganhado, e tiveram experiências muito loucas, como ouvir Bitches brew, aquele disco muito louco do Miles Davis, assistir a uma peça do Bob Wilson que eu passei a vida inteira ouvindo falar a respeito — e os sonetos de Shakespeare que o Bob Wilson encenou, no Berliner Ensemble, também foi uma dessas coisas emocionantes que acontecem na vida, aquele arrepio do Blue jay way, naquele dia, a gente chegando de Praga, quarenta e tantos anos depois da Primavera, mas eu não vou conseguir explicar essa sensação nem que eu conseguisse escrever mil livros cheios de palavras e explicações — e os meus pais e os amigos dos meus pais foram ficando todos meio hippies, uns escritores meio hippies de toda parte do mundo, e começaram a fumar uns baseados, e o pessoal, os hippies brasileiros, uns caras todos cabeludos, uns caras doidaços, todos iam à nossa casa, para escutar o Abbey Road, que os meus pais trouxeram dos Estados Unidos. The dream is over etc.

E quando o Sérgio Sant’Anna e a Mariza Muniz estavam nos Estados Unidos, o George Harrison, que já era George Harrison, e a Paul McCartney, que era só um bebê, viveram um tempo na casa do Vô Adelelmo, que era um avô muito doido, que finge até hoje, aos 105 anos de idade, ser um sujeito careta e tal, mas é o maior doidão, que estava sempre inventando umas coisas, tocando violino, fazendo umas esculturas e o filhos do Vô Adelelmo, todos hippies, tinham um covil no fundo da casa, que era praticamente um estúdio de som. Todos os tios do André Muniz faziam música e no covil da casa do Vô Adelelmo tinha guitarra, baixo e bateria e um teclado Moog e uns posters dos Rolling Stones e o André e o primo dele ficavam lá vendo os tios tocando rock e depois jazz e era sensacional e o George Harrison podia até tocar uma guitarra elétrica de verdade, parecida com a do George Harrison, toda colorida, bem mais possante que a balalaica que o Vô Sant’Anna tinha trazido da União Soviética para o George Harrison, que tinha os brinquedos mais incríveis da rua, em Belo Horizonte, trazidos pelo Vô Sant’Anna, que trabalhava para o governo e viajava pelo mundo inteiro.

O Sérgio Sant’Anna lançou seu segundo livro em 1973 e se tornou um escritor mesmo e começou a se dedicar o tempo todo a isso e ficava trancado num escritório em casa, escrevendo, escrevendo, escrevendo e o Andrezinho ficava ouvindo aquele barulho da máquina de escrever e o pai do Andrezinho se queixava muito, dizendo que escrever literatura não era mesmo uma coisa muito prazerosa. Que era um inferno. Inferno! E na casa do Vô Adelelmo tinha piscina e tinha sauna e tinha um campo de peteca e tinha o covil com o piano, guitarra, baixo e bateria e uns instrumentos de banda — tuba, trombone, bombardino, trompete, e os tios do André Muniz também tocavam flauta e saxofone e piano e baixo de pau e todo domingo ia todo mundo para a casa do Vô Adelelmo e os hippies, lá, fazendo música, doidões, fumando uns baseados, comendo lombo com farofa e batata frita e era uma coisa e o Andrezinho não tinha a menor noção do que significavam aqueles sinais naquelas partituras espalhadas pelo covil, mas já compunha assim mesmo, escrevia ele próprio, o Andrezinho, todas as músicas dos Beatles, nas partituras, e dava as partituras para a mãe ler e tocar na flauta doce, mas os sons que saiam da flauta da mãe não se pareciam nem um pouco com as músicas dos Beatles, mas o Andrezinho fingia, ele era George Harrison.

O André Sant’Anna não queria ser escritor como o Sérgio Sant’Anna, que sempre escreveu como se estivesse numa guerra contra si mesmo. O André Sant’Anna queria era ser igual ao George Harrison, que era a pessoa que tinha a vida mais maravilhosa na face da Terra, com aquela guitarra colorida, aquelas aventuras do filme Help, uma namorada lourinha, a Paty Boyd, que foi o primeiro amor do Andrezinho, e o George tinha também uma turma com mais três amigos.  

Acho que, por causa dos Beatles, eu sempre precisei de turmas, grupos, bandas, conjuntos, camaradas. E fazer música é quase sempre uma coisa de bando, enquanto que escrever é uma parada solitária, quase sempre movida por sofrimento, dor, raiva, essa angústia de tentar explicar sensações que não podem ser explicadas por palavras, como a visão daqueles vietnamitas todos à beira da estrada, num mato da República Tcheca, perto de Dresden, muita chuva, o nível dos rios subindo, o rádio avisando que havia previsão de enchente, e, algumas horas depois, no Berliner Ensemble, tinha aquela velhinha cantando com aquela voz de menina, uma velhinha que, dizem, fez parte do grupo do próprio Bertold Brecht, em Berlim, cantando um dos sonetos de Shakespeare, que lindo!

O Andrezinho lia muito e gostava, com aquele cabeção. O Robson Crusoé foi o primeiro personagem literário que o George Harrison foi. Depois veio a coleção inteira do Monteiro Lobato, os comics todos da Marvel, eu era o Thor, e uma agente da Interpol, em quadrinhos, que tinha uma roupa preta assim, toda colada no corpo e ela era linda!, era a namorada do Thor e as coisas mais importantes na vida do George, Andrezinho, digo, passaram a ser sexo e futebol e índios Sioux e eu comecei a ler livros de adultos, com cenas de sexo — Papillon, Tubarão, Guerra conjugal, do Dalton Trevisan, que deu umas ideias meio erradas, a respeito de sexo, para o Andrezinho. E o Feliz ano novo, do Rubem Fonseca, tinha sexo e futebol, um conto que tinha um treino da Seleção Brasileira, o Gerson, cérebro do time, cuspindo um cuspe cristalino, sinal de boa forma física, de boa saúde. Aos 11 anos, George Harrison era o cacique Nuvem Vermelha e, quando brincava de Forte Apache, passou a usar os índios como sua turma e não os soldados americanos, matadores de nobres guerreiros e o maior bandido de todos era o General Custer, aquele filho da puta. E eu descobri que Engraçadinha, do Nelson Rodrigues, era um livro contando tudo o que um beatle de 11 anos de idade precisa saber sobre sexo: incesto, automutilação peniana, lesbianismo e outras coisas estranhas.

Eu gostava de ler, mas, entre a literatura do papai e a música da mamãe, entre a guerra solitária do papai e a galera hippie dos titios, é óbvio que o Andrezinho preferia o rock’n’roll e, depois dos Beatles e dos tropicalistas vieram o Pink Floyd e os Carpenters cantando Please Mr. Postman, que era a música de amor que fazia eu pensar na menina pela qual eu estava apaixonado, lá na minha escola.

Mas, naquela época, eu não pensava em ser artista, não. O Andrezinho teve várias profissões: químico, astrônomo, jornalista, cronista esportivo. O Andrezinho foi nadador, jogador de futebol, jogador de basquete, surfista, skatista, além de guitarrista dos Beatles. E, antes de ser músico ou escritor, foi ator, autor e diretor de teatro. Tudo o que o George Harrison queria fazer, o George Harrison fazia mesmo sem saber fazer.

É um sofrimento isso: fazer muitas coisas que você não sabe fazer. André Sant’Anna nasceu com quatro dedos na mão esquerda, sem o mindinho, sem marcas, e ganhava todas as disputas de par-ou-ímpar, e, claro, até daria para estudar muito, praticar novas técnicas, para ser um guitarrista com um dedo a menos e, justamente o André Sant’Anna, que era George Harrison. George Harrison até tentou virar canhoto, estudava com a guitarra ao contrário, mas tocava do lado certo, com as cordas ao contrário, quando fazia música muito louca experimental transgressora de vanguarda com o Tao e Qual, um grupo de rock conceitual, meio doidão, meio jazz, e que fazia até umas erudições, umas experimentações contemporâneas muito loucas experimentais transgressoras de vanguarda.

Mas antes disso, quando os pais do André Sant’Anna se separaram, o Andrezinho foi morar com a mãe e a irmãzinha em Ubatuba, uma cidade na época pequenininha, que dava para dormir com a porta da casa sem trancar, dava pra andar a qualquer hora do dia e da noite em qualquer lugar com muito pouco medo e era um negócio mesmo espetacular, uns três anos de pré-adolescência ideais para um garoto que apanhava das meninas e não sabia andar de bicicleta e era muito medroso. O André devia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filho da puta. Uma só, no nariz, e pronto. Mas não. O Mané arregou para o gordinho filho da puta e ficou com fama de “viadinho”, entre a turma da escola, a turma que jogava futebol o dia inteiro, na quadra em frente à casa do “viadinho”. Mas foi até bom, porque eu tive que sobreviver, fiquei meio amigo do pessoal do surf, que garantia uma certa proteção e depois entrei para um grupo de teatro que a minha mãe montou, onde havia as primeiras meninas pelas quais me apaixonei e a gente fazia teatro, escutava uns discos, dava uns beijinhos, tomava banho na cachoeira e éramos muito bonitos, saudáveis, da praia, as meninas com flores nos cabelos, o mundo ia começar, era agora que a vida começa, depois do primeiro beijo na praia, numa época sem veraneio, uma época meio hippie, uns caras tocando violão e gaita na praia. E o George Harrison com as namoradinhas do grupo de teatro, na praia, de noite, com fogueira, o cara tocando música do Beto Guedes e da Rita Lee, no violão, e as estrelas, os beijinhos, os peitinhos. E eu fui morar, depois, com o meu pai, no Rio de Janeiro.

Por causa das meninas mais sensíveis e inteligentes e da possibilidade de um dia ser ator de novela, naquela época em que as pessoas das novelas eram as pessoas mais bacanas que existiam e eu queria ser um jovem de uma série da televisão, um jovem que fazia teatro, pegava onda, tocava guitarra e namorava a atriz mais bonita na novela, foi que entrei para o grupo de teatro da escola, que era uma escola de padres ligados à Teologia da Libertação e a escola era sensacional, uma liberdade que funcionava, porque era bom ir à escola e o André fazia teatro e tinha uma banda e escrevia para o jornal dos alunos e operava uma estação de rádio, “Amor e Natureza”, no pátio da escola dos padres libertários, o Bitches brew, do Miles Davis, aqueles adolescentes comendo hambúrguer e ouvindo Miles, doidão, e fazia política estudantil como ministro de um grêmio acadêmico anarco-monarquista, que tomou o poder político, coroando Dom Peppino IV, rei do Colégio São Vicente e, na Praia de Ipanema, no Posto 9, o André foi vendo aquela gente: o Glauber Rocha fazendo discurso, o Macalé empinando pipa, o Gabeira de tanga rosa de crochê, a Isabel do vôlei grávida, o Caetano Veloso com a Dedé e o pessoal do Asdrúbal Trouxe o Trombone no Teatro Ipanema e a coisa que eu mais queria na vida era ser ator no Asdrúbal. Mas tinha o negócio do jazz.

   Ilustração: Leo Gibran
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Eu, que sempre sabia mais do que os meus colegas em qualquer área artística, achei aquele pessoal do teatro da escola meio devagar. O professor era meio careta e não conhecia nem o básico, como O apanhador em campo de centeio, Ubu Rei e a Patafísica, a ciência das soluções imaginárias do Alfred Jarry. O Sérgio Sant’Anna ficou amigo do Antunes Filho e eu ia lá no Teatro João Caetano, ver o Antunes ensaiar Macunaíma e era uma coisa muito espetacular para o Andrezinho, o Antunes dirigindo, as atrizes nuas. Eu ia quase toda noite ver o Macunaíma do Antunes e matava aula para ir aos ensaios. E, uma vez, eu disse para o Antunes Filho que eu queria ser ator e o Antunes me disse que era para eu não ser ator de jeito nenhum, que, cá entre nós, os atores só repetem o que os outros criam, que eu seria diretor de teatro. E, de fato, embora eu faça tudo — teatro, música, literatura, artes plásticas, cinema e balé — o que eu acho mais interessante, mais criativo, mais adequado para alguém que não sabe atuar, tocar, escrever, filmar, bailar, é o teatro. O teatro é para quem sabe fazer tudo. E quem não sabe fazer nada, tem que inventar um jeito de fazer as coisas e esse jeito, baseado no “não saber”, é sempre uma invenção, é sempre original, é você usando todas as ferramentas para fazer algo único. Depois do Glauber, o cineasta que eu mais gosto é o Godard — o Glauber e o Godard fazem filosofia e poesia de som e imagem e luz e fúria.

Mas teve um festival de jazz no Rio de Janeiro e tinha uma turma nova que o George Harrison arrumou, uns caras que gostavam de ficar tocando violão, gaita, vaso de cerâmica, tinha um violão só com três cordas graves, fazendo o baixo, e a gente passava a noite fazendo música original, já que ninguém sabia tocar mesmo os instrumentos. E aí esse violão de cordas graves e o Jaco Pastorius tocando baixo no disco 8:30, do Weather Report, fizeram com que eu começasse a achar o contrabaixo um instrumento bacana, chique, e eu virei baixista, compositor, performer, bailarino e a gente fazia shows muito loucos experimentais transgressores de vanguarda e viajamos tocando pelo Brasil todo, por uns buracos no interior, no Circo Voador e aquilo era tudo o que eu queria e literatura, para mim, era escrever aqueles textos muito loucos experimentais transgressores de vanguarda, que eu leio até hoje, numas performances muito loucas experimentais transgressoras de vanguarda que eu faço por aí, que eu faço até hoje, ainda vivendo daquele jovem que escrevia, mesmo não sabendo escrever, meio hippie, meio punk, fazendo aqueles espetáculos meio esquisitos, cheios de microfonia, muito eco, um naipe de sopros que nem sempre afinava, gosto muito, e me acho um artista invocado quando eu vejo os vídeos gravados do Tao e Qual no palco.

Mas dinheiro é a coisa mais importante que existe e eu tinha 20 anos de idade e a minha namorada era a cantora do Tao e Qual e ela tinha uma voz aguda e eu era o Arrigo Barnabé e ela era a Tetê Espíndola e eu morava com o meu pai e eu não tinha emprego, não tinha profissão, não ganhava o dinheiro próprio, eu não sabia o que ia fazer da vida e o Arrigo Barnabé entrava e saía da Faculdade de Música e tinha muita preguiça de estudar, de tocar bem o instrumento e não ia dar pra ser, assim, contrabaixista de acompanhar artista e muito menos contrabaixista de jazz, assim que nem o Jaco Pastorius e o Tao e Qual era muito doido demais, era ótimo, um troço esquisito mesmo, e não ia virar, assim, uma banda pop, e o pessoal ia ter que trabalhar e o Jaco Pastorius — Arrigo Barnabé — foi trabalhar em propaganda, foi ser redator publicitário e a Andrea, a cantora namorada, começou a namorar o Lula, o guitarrista, o amigo, parecia até novela de televisão, e o Andrezinho sofreu demais, lá sentado na frente da máquina de escrever, na agência de publicidade, sentindo aquela dor do amor. Eu comecei a escrever compulsivamente sobre a dor do amor e sobre a percepção de que dinheiro é a coisa mais importante que existe, uma desgraça mesmo, um negócio que destrói tudo, que premia defeitos de caráter, que pune qualidades inequívocas. E o Andrezinho escrevia aquelas coisas, ele fazia psicanálise e lia o livro A negação do morte do Ernest Becker, um livro que convence o Andrezinho de que tudo é loucura, que até as coisas normais são loucura, que tudo o que o homem faz é para disfarçar sua insignificância, essa tentativa de não ser só homem, ser mais, de disfarçar o sangue que jorra, a indiferença dos seres uns para com os outros, pô, e a morte.

Os parceiros todos do Tao e Qual e o George Harrison tiveram que ir ganhar dinheiro, que é a coisa mais importante que existe, muito mais do que música muito louca experimental transgressora de vanguarda. E eu conheci a Pati, que é minha mulher hoje, numa agência de publicidade onde eu ganhava dinheiro, e a Pati é alemã, e eu comecei a namorar com a Pati e a Pati ia voltar para a Alemanha e, quando ela foi, eu fui junto. E a gente morou em Berlin logo depois da reunificação da Alemanha e Berlin Oriental era ainda um lugar de aspecto comunista e o pessoal de lá parecia meio hippie, enquanto os ocidentais eram meio punks e era tudo muito doido e interessante e eu sempre tenho muita saudade daquela época, quando se pensava que um grupo de pessoas estava se libertando de alguma coisa. Acho que o Leste foi simplesmente anexado, e a Nova Ordem e a morte da Karl Marx apenas estão fazendo do dinheiro o troço mais sagrado, a coisa mais importante que existe, e eu penso o tempo todo em dinheiro, em como é que eu vou pagar a minha velhice, as minhas dores, eu todo artista.

George Harrison é um escritor brasileiro e, por isso, viveu quase a vida toda sofrendo pelo dia em que o dinheiro não ia mais dar. Os avôs do George eram pobres, que ficaram ricos. Os pais do George são filhos de pais ricos, que se tornaram meio hippies e meio pobres e eu nasci meio hippie e meio pobre e passei a vida meio acostumado com crises econômicas. Por causa da crise econômica de 90/91/92, período em que o George morou em Berlin e escreveu para o Jornal do Brasil um texto/crônica sobre os equívocos da Nova Ordem Mundial, sobre o Lobo-Mau capitalista, e ficou todo excitado, escrevendo um monte dessas coisas que a gente guarda na gaveta e depois acha e fica na dúvida se é bom ou não é, o André Woll veio morar em São Paulo, porque São Paulo tinha mais dinheiro rolando do que no Rio e dinheiro é a coisa mais importante que existe no universo infinito. E eu confesso que sempre tive essa vaidade de ser artista, de dizer coisas importantes, de tocar profundamente a alma das pessoas, de explicar direitinho a todo mundo o que eu estou vendo em todos os lugares ao mesmo tempo, explicar que eu estou entendendo tudo, sabe? Jamais morrer, desafiar o desconhecido, enfrentar a arbitrariedade de Deus, ser George Harrison. Ser Glauber Rocha.

Em São Paulo não tinha banda, nem teatro e o George, coitado, era redator numa agência de publicidade pequena, minúscula, com um chefe que tossia e dizia que cresceríamos juntos rumo ao sucesso e era como se a vida não existisse, porque eu passava o dia inteiro tentando perceber se o chefe gostava de mim ou não, se eu seria demitido, e eu almoçava em restaurante de comida a quilo e era tudo muito deprimente e eu tinha de ser artista de qualquer jeito e o chefe me falava coisas grosseiras sobre as bundas das funcionárias.

Eu li o livro O Buda do subúrbio, esqueci o nome do autor, mas tinha um nome indiano, era um desses ingleses filhos de indianos, mãe inglesa e pai indiano, e o livro era jovem, era engraçado, tinha rock’n’roll e eu me diverti muito ao ler. E eu achei que eu poderia escrever um livro assim, leve, falando das histórias do Tao e Qual, falando de um jovem que tinha uma banda e tinha uma namorada e tinha toda uma vida pela frente.

Eu visitei o Museu de Art Brut, em Lausanne, e havia lá umas obras muito loucas de uns caras que eram grandes artistas, que tinham coisas importantes para dizer à humanidade, como artistas criadores, mas que são classificados como uma coisa à parte, fora da História da Arte e, pô, é justamente o contrário, porque esses caras não aprenderam arte. Esses caras, tinha até estuprador de bebê entre eles, esses caras criavam a própria linguagem para dizer coisas importantes que ficam atormentando a vida deles, as noites deles, no escuro e eles dizem tudo.

E eu lia O Buda do subúrbio que eu estava escrevendo, que se chamava “All Blues”, que é uma música do Miles Davis e o personagem principal de “All Blues” era trompetista igual ao Miles. E eu lia e não estava gostando daquilo, que aquele livro, o “All Blues”, era igualzinho ao Buda do subúrbio, só que com outra história. Era como se o autor de “All Blues” fosse aquele autor inglês/indiano que eu esqueci o nome.

E eu vi o filme do Godard, o JLG por JLG e, no filme, o Godard aparecia falando que “cultura é regra e arte é exceção” e que “a cultura vai fazer de tudo para matar a arte”, transformar a arte em cultura, os artistas todos fazendo os mesmos filmes, a mesma música, os mesmos livros e eu não queria fazer livros, ou shows, ou peças de teatro iguais a outros livros, outros shows, outras peças de teatro.

E eu li Miséria dourada, um livro do Jorge Mautner, que é um artista do jeito que eu sempre quis ser, que não é um artista que toca bem um instrumento, ou tem uma bela voz, ou sabe escrever bem, enxugando o texto ao máximo e, sim um artista que inventa linguagens únicas, para falar de coisas únicas, individuais e eu resolvi explicar como o mundo funcionava e escrevi Amor, que é um poema grande, que fala de todas as coisas que existem e tudo o que escrevo tenta falar sobre todas as coisas que existem, mas eu sempre acabo esquecendo quais são mesmo todas as coisas que existem.

E eu publiquei Amor pela Dubolso, que é a editora do Sebastião Nunes, que é poeta, ou ex-poeta, que também era outro muito louco experimental transgressor de vanguarda, e a gente, no Tao e Qual, fazia sons muito doidos com os poemas do Tião. Foram 500 exemplares e eu não era escritor, e eu ainda queria fazer shows multimídia e tocar contrabaixo e discutir estética nos botecos e eu bebia muito, muito, demais.

Eu enviei Amor, pelo correio, para um monte de gente e o Antônio Houaiss, o cara que traduziu o Ulisses do Joyce para o português, me escreveu uma carta, dizendo que, na idade dele, ele, o Antônio Houaiss não esperava ser surpreendido por mais nada e estava surpreendido com Amor. E ele já tinha mais de 90 anos e morreu logo depois. E o Raduan Nassar me telefonou e me enviou uma carta, e o Dalton Trevisan e o Millôr Fernandes e Bernardo Carvalho escreveu na Folha de S.Paulo que eu era escritor e foi assim que eu me tornei escritor.

Depois eu escrevi, Sexo, para me vingar dos chefes das agências de publicidade pequenas que eu trabalhei e que sempre falavam sobre sexo de um jeito tão nojento, que eu ficava até com um pouco de nojo de sexo e o livro Sexo é um livro com a linguagem do preconceito, do racismo, do machismo, do fascismo, e o sexo que é feito no livro é bem nojento.

Amor, Sexo e Amizade é uma trilogia que termina com Amizade, que são contos em primeira pessoa, monólogos mentais de gente egoísta, de gente que não percebe “o outro”, gente louca que não sabe que é louca. São textos que agora estão sendo muito usados no teatro e fazendo com que eu volte a escrever teatro e trabalhar com outras pessoas e gosto muito que isso esteja acontecendo.

O André Sant’Anna quase morreu, um ano depois que o George Harrison tinha morrido. O André Sant’Anna bebia demais e teve uma Pancreatite Aguda Necro Hemorrágica, quando trabalhava escrevendo discursos para campanhas eleitorais, em Natal/RN. Quando a Pati chegou no hospital, disseram pra ela que o André M.S.A.Silva tinha apenas 5% de chances de sobrevivência. Teve gente chorando a minha morte mas, como, na verdade, eu nunca fui George Harrison de verdade, eu sobrevivi. O Dr. Silvio foi o cara que salvou a minha vida e que só salvou a minha vida porque não era só um médico profissional, mas um cara que tava ligado, que prestava atenção no paciente, prestava atenção no “outro” e realizou vários milagres durante os seis meses que fiquei internado no hospital e achei que ia morrer e tive uma encefalite e achei que nunca mais eu ia poder mais comer as comidas que eu gosto, que eu nunca mais ia ser feliz e trabalhar normalmente e ganhar dinheiro, que é a coisa mais importante que existe, que é a coisa que eu mais detesto.

Quando eu saí do hospital e voltei para minha casa em São Paulo, todo magrelo, os vizinhos achando que eu estava com AIDS, todo torto tonto, por causa da encefalite, foi aí que eu percebi que eu não sabia mais tocar contrabaixo e eu escrevi um romance, de quase quinhentas páginas, que falava do Muhammad André apanhando dos colegas na escola, jogando futebol, vivendo em Berlin, e de um músico que não sabia mais tocar, o Mané, personagem do André, cometendo um atentado terrorista contra si mesmo, e o hospital e sobre o medo da morte.

Eu escrevi também um livro chamado Inverdades, com umas histórias de gente importante, de músicas, onde eu conto histórias do Jimi Hendrix, do João Gilberto, do Miles Davis com o Duke Ellington, no cemitério em Nova York, e dos Beatles fumando maconha no banheiro do palácio da Rainha da Inglaterra, o Mick Jagger, o Roberto Carlos, o Erasmo e o Tim Maia.

E o último livro foi O Brasil é bom, que é um livro para reclamar que o Brasil que o Andrezinho Glauber Rocha, com os amigos dele lá no Posto 9, achava que ia acontecer — a revolução eztetyka do Glauber Rocha, a nova cultura afro-índia-europeia do Darcy Ribeiro, o bim bom do João Gilberto, Hermeto tocando flauta para os passarinhos, não vai acontecer. Uma tristeza só.

E a literatura eu não sei. Eu não sou George Harrison na verdade, mas eu até voltei a fazer uns shows de música muito loucos experimentais transgressores de vanguarda e escrevo peças de teatro e gosto de ir ao palco, faço performances muito loucas experimentais transgressoras de vanguarda, escrevo livros difíceis de serem classificados por gênero, e já não sofro tanto por não ser o contrabaixista que ficaria bonito eu ser, porque eu sou George Harrison, eu escrevo poemas, eu sei babar, grunhir e gemer no palco, e danço balé, coreografias muito loucas experimentais transgressoras de vanguarda, eu toco todos os instrumentos, mesmo não sabendo tocar nenhum e o jornal me chama de escritor, mesmo eu não sendo.


André Sant’Anna é autor dos livros O paraíso é bem bacana (2006) e Sexo e amizade (2007), entre outros. Além de escritor, é roteirista, publicitário e músico. Vive em São Paulo (SP).