Conto | André Cáceres

No futuro, nem o seguro morre de velho

I
Você nunca havia percebido o quão estreita é a mureta que separa os transeuntes do abismo. Balança, né? Nunca havia se atentado ao fato de que a estrutura de metal corroído e concreto opaco tremulava feito vara verde sob as solas dos sapatos dos pedestres em marcha? Não faz mal. Ninguém nota isso até escalar a grade de proteção do Viaduto Santa Ifigênia e, tentando manter o equilíbrio, olhar para baixo, para os carros autônomos que rasgavam o asfalto da Avenida Prestes Maia. Você só se deu conta desse balanço quando não conseguiu ficar em pé sobre a mureta. Confesso que já vi muitos suicidas convictos, mas nenhum jamais caiu tão rápido.

II
— Sim, senhor. Não, senhor. Compreendo, senhor. Perdão, senhor, mas seu seguro não cobre acidentes ocorridos especificamente durante orgias com dois ou mais robôs sexuais de gêneros distintos da W Corp. Exato, senhor. Se fossem três androides ou três ginoides, o senhor estaria coberto. Como havia um androide, uma ginoide e um robô não binário voyeur, o senhor terá de arcar com os custos da reconstrução de seu pênis, senhor. Sua apólice não prevê esse tipo de situação. Está nas letrinhas miúdas, senhor. A W Seguros agradece. 

Ao encerrar a ligação com uma sinapse captada pela sua lente, você percebe o quanto detesta seu trabalho. Mas em tempos de pânico generalizado, vender apólices de seguro é um negócio da Neochina. Ah, meu caro… Perdoe-me pela falta de educação. Meus circuitos já não são mais como antigamente, sabe. Esqueci de apresentá-lo a si mesmo. Você é Alberto C., identifica- ção 5151-F0, corretor de seguros, felizardo proprietário de um Toyota e com dívidas até o pescoço para pagar o financiamento de uma quitinete na República.

Ops, lá está você novamente trabalhando nesse emprego desprezível. 

— Sim, senhor. Seu seguro cobrirá invasões à sua residência perpetradas por cidadãos desprovidos de engenharia genética também. 

Por aí vai a conversa, até que a venda é fechada. E uma mensagem pipoca em sua lente. Parabéns, Alberto! Essa foi sua trigésima milésima apólice comercializada e, portanto, você será promovido. 

Seus exames de rotina denunciaram o colesterol elevado e as altas taxas de glicemia — pronuncia a voz grave do seu chefe, mas você só vê o maxilar rústico subindo e descendo. — Como nossa prioridade é prevenir, ele prossegue, leve de presente uma injeção de nanorrobôs que monitoram seu organismo. Isso é que é crescer na vida, hein?, e aperta sua mão. 

— O quê? Não vai querer ler todas essas letrinhas minúsculas, né, Alberto? Depois de trinta mil apólices, você deve saber isso tudo de cor e salteado. — Seu chefe coça a cabeça e olha para os lados, até que seu rosto se ilumina. — Quer saber de uma coisa? Concederemos umas férias. Você merece, rapaz! Tome aqui uma passagem para a Nova Zelândia, ou o que sobrou dela depois da Guerra do Pacífico Sul. 

III
No auge de sua ingenuidade, Alberto, você publicou em todas as suas redes sociais por anos a fio — e respondeu àqueles quizzes patéticos — dizendo que amava esportes radicais. Não foi por acaso que seu chefe o enviou para o que sobrou da Nova Zelândia. Com base em seus padrões de consumo e pesquisas online, era fácil prever que aproveitaria o rapel, o rafting, o bungee jump... Mas foi durante o salto de paraquedas que seu coração parou.  

Por sorte, a W Seguros tinha uma base médica montada no local do pouso. Certo, sorte não é exatamente a palavra. Noventa e seis ponto sete por cento. Isso, 96.7%. Era a chance de infarto durante a queda. Os nanorrobôs nos alertaram e imprimimos com antecedência um coração novinho em folha a partir de suas células armazenadas no RH.

É realmente uma pena o fato de sua apólice não cobrir infarto durante saltos de paraquedas com instrutores robóticos, não é mesmo? Puxa, se ao menos tivesse se atentado às letrinhas miúdas, Alberto… Mas acalme-se! Nós já tomamos sua quitinete — ou o que você saldou dela até agora — como parte do pagamento. O resto pode ser descontado de seu salário, não se preocupe. Em 112 anos, tudo estará quitado. Bem, esse parece um período um tanto extenso. Um coração novo é caro mesmo, Alberto. Já sei. Como os nanorrobôs têm acesso aos seus centros de fala, sistema nervoso e vias aéreas, oferecemos uma proposta. Nas oito horas do dia em que não dorme e nem trabalha, você fará publicidade boca-a-boca compulsória dos produtos da W Corp, que tal? Cinco anos e estaremos quites.

IV
Vejo-o em um bar, flertando com uma garota. Muito bem, Alberto. 

— Não brinca! — ela falou em um falsete, entre um gole e outro. — Eu também adoro esse filme! — e passou a mão pelas madeixas.

— E aquela cena em que... — você diz, ébrio e excitado. — Ei! — seu berro a assusta. — Não acredito que seu vestido não é da W Fashion! Ofertas imperdíveis só até amanhã! — A fala sai involuntariamente, como um soluço, um vômito. Fotos das peças de roupa piscam na lente dela, enviadas sem querer por você.

— O quê? — Ela parece indignada. — Então eu sou apenas mais uma cliente em potencial? Ridículo! Espero que sua comissão seja boa — esbravejou e tempesteou-se para outro canto do bar.

Agora você era um garganta profunda, Alberto, e os gargantas profundas não são lá muito bem vistos socialmente. Ela acabou trepando com outro cara naquela noite, um que não sugerisse promoções. No dia seguinte, porém, passou na W Store e comprou um vestido. 

V
Meses se passaram e você não conseguia mais manter relações sociais — muito menos sexuais. Os amigos afastaram-se, as garotas fugiam. Até sua família o jogou para escanteio. Seu salário era excelente, mas os descontos o transformaram quase em um mendigo. E então veio o baque: o W Bank enviou uma ordem de despejo. Ora, ora, mas era só o que lhe faltava, não é mesmo, Alberto? O Departamento de Controle de Suicídios da W Seguros entrou em alerta. Uma equipe foi rápida e eficientemente encaminhada ao seu encalço. Viaduto Santa Ifigênia. Todos a postos. Ajustaram suas lentes como se fossem binóculos para vê-lo à distância. 

Você caminhava pela passarela quando avistou um sujeito comprando um brinquedinho qualquer para o filho em um camelô. Encheu os pulmões e sugeriu ao homem que comprasse os novos bonecos de ação do Homem-Dinossauro. Todos ao seu redor o olharam, despejando o típico e indiferente mau humor urbano. Você sentiu-se humilhado mais uma vez, Alberto. Não sou apenas um garganta profunda! Eu tenho meu valor!, foi o que passou pela sua cabeça ao escalar a mureta do viaduto. E é assim que chegamos onde havíamos parado, Alberto. No asfalto quente da avenida, com o pneu de um ônibus amassando suas entranhas esparramadas feito espaguete. 

VI
Quem sou eu? É isso que quer saber, Alberto? Eu sou a dona do seu corpo agora. Sou a voz na sua cabeça. Suicídio não é coberto pelo seu seguro. Foi mais vantajoso para ambos torná-lo propriedade da W Corp. Uma cobaia ciborgue valiosa para nós. A única peça orgânica que sobrou foi seu seu cérebro. Você não precisa mais comer ou dormir. Vai trabalhar 24 horas por dia. 

Mas olhe pelo lado bom, Alberto: você é praticamente imortal. 


ANDRÉ CÁCERES é autor de Cela 108, coautor de Corações de asfalto e escreve sobre literatura no jornal O Estado de S.Paulo. Atualmente prepara seu próximo romance, Nebulosa. Vive em São Paulo (SP).