Conto | Ana Maria Machado

Em nome do pai

A Carlos Moraes

Desde pequeno, padre Olímpio jogava futebol com o pai. Aprendeu a atacar e defender no quintal de casa. Depois, os dois brincaram com a bola na praça entre balanços e gangorras, jogaram pelada no campinho da várzea. Às vezes, na torcida, assistia ao jogo dos adultos, entusiasmado com os feitos do velho. Mais tarde, nos torneios entre as escolas da cidade, o menino sentia o peso da responsabilidade ao saber que o pai estava ali, sentado na arquibancada, apostando em cada uma de suas entradas na bola. Ficava feliz em algum lance de que o velho poderia se orgulhar. Ao final, esperava os comentários dele, analisando a partida e dando conselhos. Não de jogo, mas de vida:

— Tem de ter espírito de equipe. O bom jogador não pode pensar só em si mesmo. Nunca se deixa o outro na mão.

   Leo Gibran Ilustração
a


No tempo do seminário, quando vinha passar um dia em casa, quantas vezes os dois aproveitaram para irem juntos ao estádio... Ou assistiam à transmissão de jogos pela televisão, lado a lado, entre cervejas e tira-gostos.

Talvez por isso, agora que o padre estava preso, vivia cada oportunidade de bate-bola como um momento de estar também com o velho na memória. Juntos, um ao lado do outro, superavam os limites físicos. Passavam por cima dos muros do quartel em volta do filho, das paredes do hospital em torno ao pai. Venciam a distância entre o equipamento de soro na capital e as grades naquela guarnição de fronteira.

O fato era que padre Olímpio era um craque. Crescera como atleta ao longo do tempo. Jogava bem e com entusiasmo. Tanto que seu nome era sempre o primeiro a ser escolhido quando os prisioneiros iam formar os times na hora do banho de sol. Os soldados que os guardavam ficavam admirando. Acabavam até incentivando. De vez em quando até mesmo um oficial parava para assistir.

Também, devia ser uma distração para eles. O grupo de presos políticos era uma novidade. Quartel do exército não é prisão. No máximo, serve de punição disciplinar para a tropa. Ou, no caso de um lugar tão remoto como aquele, perdido no meio dos pampas, já quase no Uruguai, o velho forte não oferecia muita chance de distração. Podia até ser uma espécie de exílio para um ou outro oficial mais problemático que estivesse precisando de um corretivo ou houvesse incorrido na má vontade de um superior.

Aquela história de transformar os militares em carcereiros de presos políticos vindos de longe não era vista com bons olhos por todos. Cumpria-se o dever, sem dúvida. O regulamento era severo e a disciplina, rígida. Mas ao contrário do que podia acontecer em outros postos menos isolados, ali os militares não se sentiam combatendo um inimigo na pessoa daqueles magricelos fracotes, uns intelectuais barbudos e operários sofridos, entregues a seus cuidados. Dava para afrouxar um pouco com relação ao futebol — que era permitido todo dia. Assistir ao jogo dos presos era quase um momento de feriado.

Depois de uns dois meses dessa rotina, um dia padre Olímpio foi levado à presença do comandante. Ficou preocupado com a novidade. Desde sua chegada, nenhum dos presos tinha passado por isso naquela guarnição. Os interrogatórios, os maus-tratos, tudo tinha ficado para trás, na cidade, no tempo de antes de serem removidos. O que estaria à sua espera agora? Imaginava as piores coisas. Mas não dava para evitar algum lampejo de esperança — de um habeas-corpus, uma ordem de soltura. Tudo era tão arbitrário naquela prisão, jamais lhe tinham dito por que o levaram. As perguntas que lhe fizeram tinham sido tão aleatórias e absurdas que não dava para estabelecer um padrão claro. Tudo era possível.

Desta vez, de novo, as questões o surpreendiam. Não se referiam mais a seus sermões, às pessoas que conhecia, à comunidade onde vivera, a seu trabalho pastoral — como nas ocasiões anteriores. Mas envolviam sua formação no seminário, seus antecedentes esportivos. Quando deu por si, tinha baixado a guarda e estava falando sobre o pai, com carinho, com saudades, quase com um nó na garganta. Rapidamente se conteve e calou.

O comandante insistiu. Voltou à mistura de assuntos: o futebol e os compromissos sacerdotais. De repente, fez-lhe uma proposta surpreendente.

— Esperamos poder contar com seus préstimos.

Estava havendo um campeonato regional entre várias equipes amadoras. A final ia ser no domingo, em outra cidade. O time da guarnição iria disputá-la. Pela primeira vez em sua história. Mas havia um problema: o artilheiro tinha se contundido no último treino. E alguns oficiais tinham aventado a possibilidade de que padre Olímpio o substituísse. Já sairiam do forte em trajes esportivos, num caminhão do exército. Portanto, a rigor, ele não estaria usando uma farda indevidamente, o que seria um fato grave. Mas precisaria se comprometer a guardar segredo.

— A ordem é fechar o bico. Não estou lhe mandando mentir. Ninguém vai mesmo perguntar nada. É só não sair contando.

Olímpio achou divertido. Ia passar o dia fora do quartel, passear por outra cidade, jogar uma boa partida contra novos adversários. Novidades bem-vindas, dentro daquela rotina de prisão, confinada à cela, refeitório, banho de sol, pátio. Aceitar não tirava pedaço. De qualquer modo, não tinha escolha nem ilusões. Só o estavam levando porque jogava bem. E se não topasse, tinha certeza de que sua situação ia piorar muito no quartel.

Durante três dias treinou no time da guarnição, e não mais com os prisioneiros. Descobriu no cabo Pacheco um parceiro de qualidade. Um sujeito com excelente visão de jogo, rapidez de decisão, bom arranque, chute preciso. Juntos fizeram uma boa dobradinha, trocando passes rápidos, aproveitando oportunidades.

No domingo, dia do Senhor, padre Olímpio fez suas orações bem cedo, como sempre. Não lhe permitiam que celebrasse o sacrifício da missa na prisão, mas ele sempre procurava guardar o dia de forma especial, falava com os companheiros sobre o tempo litúrgico, rezava com quem quisesse acompanhá-lo. Dava a bênção aos que o cercavam: 

— Em nome do Pai...

Esse era o primeiro domingo do advento e ele disse algumas palavras sobre o significado desse momento de espera, de preparação para a vinda do Senhor a ser festejada no Natal, cumprimento da promessa divina feita aos homens, penhor da salvação.

Pouco depois, foi levado à presença do sargento. Deram-lhe uma roupa esportiva para vestir, igual à dos outros — calção, camisa, meias, chuteiras, uma calça larga, um blusão com zíper. Ao lado dos outros, ouviu a preleção sobre as responsabilidades daquela experiência. Depois entraram todos no caminhão do exército que os levaria pela estrada até a cidade em cujo estádio iriam jogar. Com ordens expressas para estarem de volta antes da chamada e do toque de recolher ou iriam em cana e nunca mais sairiam novamente para outras partidas.

Se depois perguntassem a ele como haviam sido os lances do jogo, não saberia dizer ao certo. Por mais que soubesse que continuava tão prisioneiro como antes, estava completamente dominado pela sensação de liberdade. Além dos companheiros da equipe, ninguém ali sabia quem era.

Ele mesmo esquecia. Corria, driblava, chutava, dava passes, disputava a bola, gritava, esmurrava o ar, punha as mãos na cabeça se falhava uma jogada, xingava, cuspia, ajeitava a meia.

Igual a todo mundo que não vivia atrás das grades. Igual aos jogadores a que sempre assistira em campo ao lado do velho. Igual a si mesmo em outros tempos, sem muros ou cadeados de prisão.

Só faltava o pai sentado na arquibancada, torcendo por ele. Ou não faltava? Talvez apenas não fosse visível. Mas até dava para ouvir o grito de incentivo:

— Vai, filho!

Ele foi. Pediu, teve preferência. Tão bem colocado, que a bola lhe chegou exata, ambos na velocidade certa para o encontro, uma breve corrida, a ginga, uma leve ajeitadinha, o chute preciso encobrindo o goleiro.

— Goooolllll!

Decisivo. Garantiu a vitória.

Foi carregado pelos companheiros de equipe. Celebrado por todos, elogiado pelo sargento, abraçado no vestiário. Só não fizeram uma batucada na volta, em sua homenagem, porque em caminhão do exército não dava mesmo pé. Nem o sargento ia deixar. Mas a festa estava no ar.

Até que o veículo deu um solavanco e parou de repente.

— O que foi? 

— Olha só o tamanho do buraco na estrada. 

— Uma cratera ... 

— Quebrou o eixo.

Não ia dar para consertar tão cedo. O sargento, rapidamente, deu as ordens. Mandou que fossem voltando de carona para o quartel, aos poucos, à medida que passassem carros naquela direção. De lá mandariam um mecânico, providenciariam um reboque. Mas era importante que todos estivessem de volta a postos, na hora de responder à chamada.

Dois num carro, três em outro, cinco numa caminhonete, todos se precipitando para as caronas e preocupados em não faltar à chamada. Aos poucos o grupo foi diminuindo. De repente, Padre Olímpio percebeu que só restavam ele e o caminhão vazio. Largados no meio da estrada.

No anoitecer que chegava, podia atravessar a pista, se afastar do caminhão abandonado, deixar para trás a volta à prisão, sumir no mundo. Sagrado direito de todo prisioneiro.

Deu uns passos, afastou-se do veículo. Depois da curva, já nem o via mais. Quando ergueu o braço para pedir carona a uma van que se aproximava, sentiu que tinha à sua frente todas as escolhas. Empolgado mas contido, disse apenas: 

— Obrigado, vou até onde vocês forem. Depois me viro.

Horas depois, ao adentrar o pátio do quartel, foi recebido pelo comandante da guarnição:

— Já pra sua cela. O sargento já foi punido. Foi um irresponsável. Não tinha nada que largar você assim, sozinho na estrada...

— Eu não fiquei sozinho. 

Diante do olhar espantado, completou: 

— Meu pai me obrigou a vir. Pra não deixar vocês na mão.


Ana Maria Machado nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. É escritora e tradutora. Escreveu mais de cem livros para crianças, publicados em dezessete países, e também obras para adultos. Em agosto de 2003, tomou posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupa a cadeira número 1. O texto publicado pelo Cândido integra o próximo livro de contos da autora, ainda sem título, que será publicado em 2018 pela editora Alfaguara.