Conto

Rua Quinze de Novembro, sem número


Deonísio da Silva
ilustra


1. Na agência de turismo
Li num almanaque que o primeiro agente de viagens foi Thomas Cook. Em 1841 fretou um trem para levar um grande número de pessoas que iam participar de um congresso de ex-alcoólatras na Inglaterra. E uma viagem de ex-revolucionários? Quantos trens seriam necessários hoje?

Agora há uma agência de turismo em cada esquina. Pois bem! Voltei de uma delas agora há pouco. Comprei bilhete para Montevidéu, estadia por um fim de semana, com traslado do aeroporto para o estábulo, digo, para o hotel, incluindo ração, digo, alimentação, não morrer de sede, isto é, água, enfim esses itens todos que, reunidos, são designados por pacote.

“Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês”, como Raul Seixas cantava quando eu era clandestino político, não tinha um Corcel 73, era um fusca azul 68, e namorava uma polaca de Curitiba de coxas fosforescentes, cobertas por meias sete oitavos, emendadas lá em cima, quase à altura dos seios, acho, com umas tiras muito sensuais chamadas ligas.

Comia pastel em lanchonetes de terceira categoria, mas saudáveis. E a dona da pensão vivia repetindo a quem me olhava com desconfiança: “Ele é pobre, mas é limpinho”.

Eu era pobre, mas era soberbo. Entrava naquelas lanchonetes com a minha noiva, loura esfuziante, e todos me invejavam, a mim, um magricelo, ao lado daquela miss tudo, bonita e gostosa, como diziam os meus colegas de universidade.

2. Meus passados
Tinha sido seminarista por longos anos, não tinha namorado ninguém, nem sequer um menino, como fizeram alguns colegas meus, e jamais tinha comido pastel em lanchonetes desarrumadas, sem menino ou com menino, onde todos podiam comer quando quisessem, em geral comidas gordurosas, com toucinho, capim e sebo, mas aos vinte anos quem se importa com isso?

No seminário, não. Havia disciplina, ordem e boa alimentação, convívio agradável, as refeições eram feitas na companhia de colegas, as mesas sendo organizadas de quatro a quatro, isto é, mesas quadradas, cada um no seu quadrado, quatro meninos por mesa, garantindo que a refeição era feita segundo a máxima corpore sano em mente sana, bordão sempre reiterado pelo padre Waltz, que dançou uma valsa meio atropelada, pois o bispo descobriu que ele tinha um caso com a empregada de antiga Casa Paroquial, em seu posto anterior, onde tinha sido vigário, num lugar retirado, lá para as bandas dos morros azuis.

Isso não era o mais grave, alguns padres acabavam rompendo o voto de castidade, sobretudo por ouvirem em confissões mulheres infiéis, que logo eram infiéis também com alguns confessores.

3. O filho do padre
O problema tinha sido outro. Padre Waltz criara o menino, colocara o rebento no seminário, ele já era clérigo, sem saber quem era seu pai, só conhecia a mãe, e ia ser ordenado padre também quando o bispo diocesano chamou o padre Waltz e perguntou para confirmar: “O menino, o Répobro, não sei por que foram dar este nome para a criança, é seu filho, não é?”.

O senhor bispo era tolerante. Queria apenas resolver os problemas do modo menos doloroso possível. Padre Waltz sabia disso e foi com certa melancolia que disse: “Eminência, o senhor sabe, esse menino chama-se Répobro porque este era o nome original de São Cristóvão, que trabalhava às margens dos rios, transportando as pessoas nos ombros, como não ignoramos!”.

“Sei, sei”, disse o bispo. “O povo, graças a nós, ignora muita coisa e, igualmente graças a nós, sabe de outras tantas. Quando os cruzados chegaram a Palestina se decepcionaram com a pequenez do rio Jordão. Estavam acostumados à grandeza dos rios Danúbio, Reno, Sena e outros, e deram de cara com um riacho chamado Jordão, que eles imaginavam maior e mais importante do que o Nilo ou o Amazonas”.

Pigarreou um pouco e completou: “Mas, me diga, padre Waltz, Répobro Cristóvão é seu filho, então?”. “Tu o disseste. Ele o é”, disse padre Waltz, que já tinha chegado às oito dezenas. “Eu não disse, eu perguntei”, disse o Bispo. “Perguntou afirmando”, disse padre Waltz.

4. Então, não pode
“Pois é”, disse o bispo, “então não vou ordená-lo sacerdote e avisarei aos colegas, para o caso de o senhor, ardiloso como é, recorrer de minha decisão. Vou avisar também o Núncio”. “Ardiloso, eu?”, perguntou padre Waltz. “Sim, pois se seduziu uma menina de dezesseis anos quando tinha mais de sessenta”. “O senhor, bem se vê, não entende de mulher para dizer que um celibatário de sessenta e poucos anos seduz uma mulher de dezesseis!”. “Mulher?”, disse o bispo, “mulher? Ela era uma menina!”. “Senhor bispo, toda adolescente, tão logo exale as primeiras fragrâncias, lançando no ar seus poderosos feromônios para despertar os machos das redondezas, é uma mulher! Nada lhe falta para ser uma mulher completa!”. “Falta, sim, falta a idade”, disse o bispo, desconcertado com o ar libidinoso com que o padre falara daqueles pecados vindos da mulher, “e é melhor o senhor ir moderando a linguagem porque pode piorar a sua situação se eu acrescentar em meu relatório que o senhor é pedófilo assumido.” “Senhor bispo! O senhor está caindo nas malhas do populacho que vê pecado em tudo. O cristianismo, a nossa religião, é dileta filha do judaísmo, onde a maioridade da menina dá-se aos doze anos, e para os meninos aos treze. Esqueceu-se da Bat Mitzvah para as garotas e da Bar Mitzvah para os garotos?”

O bispo olhou pela janela. Levantou-se. E, com ar paternal, pondo as mãos sobre os ombros de padre Waltz, disse: “Tutankamon casou-se aos dez anos. A noiva era da idade dele. Mas hoje não é mais assim e não estamos no antigo Egito! Também não estamos tratando de casamentos reais!”.

“Eu compreendo”, disse padre Waltz. “Mas lembro que no Brasil, já que o senhor se apega a procedimentos jurídicos, relação sexual com menina com mais de 14 anos não é mais pedofilia.”

“De todo modo, não vou ordenar sacerdote a seu filho padre. Ele não será padre.”

5. Fecho e Desfecho
Nunca mais vi ou ouvi o padre Waltz. Muitos anos depois soube que seu filho morrera em acidente de trânsito e que inclusive um escritor, também ele ex-seminarista, tinha colocado isso num romance. Padre Waltz morreu, disseram que de profundo desgosto, algum tempo depois.

Tornei-me clandestino num projeto que formava comunidades eclesiais de base, mas a verdadeira intenção era preparar o povo para a Revolução!

Lembro da última reunião que tivemos com nosso chefe, já com tarefas bem fixadas. O chefe disse, apontando para mim: “Você é o responsável por Montevidéu.”

Na hora nem me dei conta de que, a partir da semana entrante, eu seria o responsável por Montevidéu. E eu ainda não conhecia a cidade, a metrópole ou, como dizia nosso chefe, a megalópole.

Fomos todos presos no dia seguinte e eu não cheguei a controlar Montevidéu!

Estava pensando nesses meus passados, minha memória brotando sem parar, agora na volta da agência de viagens. Irei pela primeira vez a Montevidéu, a cidade que um dia ia ser minha!

Agora classe C também viaja de avião. Na última vez, indo para Buenos Aires, um casalzinho sentou-se a meu lado no avião. A gordinha era atendente de telemarketing numa empresa. Ele fazia consertos em internet sem fio. Novas profissões, novas viagens. E novos passageiros. Menos eu, que fui, sou e serei sempre o mesmo.

A gordinha sorriu para mim, pareceu a primeira mulher que eu tive na vida que, depois de ler uma fotonovela em que certa mocinha dizia ao namorado, “possua-me, possua-me”, resolveu me possuir, isto é, o contrário, que eu a possuísse. Ela estava realmente possuída. Gritava feito louca naquele hotelzinho de segunda categoria numa rua perto da rodoviária de Curitiba. Era o único que eu podia pagar.

Essa gordinha, não. Era uma donzela em estado puro, só tinha olhos e atenção para o marido, recém-casados que eram. Estavam em viagem de lua de mel para Buenos Aires!

No ônibus para a casa, vim lendo o jornal. Faleceu o bispo que um dia se recusara, sem necessidade, a ordenar padre o filho do padre. Padeceu de longa enfermidade e morreu ateu, mas disso eu vim a saber no romance de um escritor que muito aprecio.

Agora já estou em casa. Peguei o contrato, são dez prestações no cartão de crédito, incluindo traslado para o aeroporto, o café da manhã e uma refeição por dia.

Não sou mais um revolucionário, não espero mais Revolução alguma, não irei mais a Montevidéu a trabalho. Agora vou a passeio. Um dos maiores revolucionários de Montevidéu, um ex-guerrilheiro tupamaro, é o atual presidente do Uruguai.

Na agência, a moça fez o cadastro. Preenchi meu nome (“com letra legível, viu?”) e quase plagiei Groucho Marx que um dia escreveu numa ficha de hotel: “Nascido: sim; sexo: uma vez por semana”. No endereço, escrevi Rua Quinze de Novembro, sem número. E ela, ao revisar: “Sem número?”. E eu: “Eu moro num depósito de livro, o prédio não tem número! A lanchonete que eu frequento também não tem número.” Ela disse: “Vou indicar um número qualquer porque você deu de endereço para correspondência a caixa postal.”

Comprei o pacote de Montevidéu sem entrada. A primeira prestação só vencerá depois de eu voltar. A cidade de dois milhões de habitantes será minha por um fim de semana. Ela se chama assim porque um escrivão que acompanhava Fernando de Magalhães na viagem ao redor da Terra, ao passar por aquela região cheia de montes, escreveu, quando se aproximava da povoação, “MONTE VI, D E O”: era o sexto monte que ele avistava, indo de Leste a Oeste.

Estou pensando que, com tanta gente viajando, seria melhor eu ser agente de viagens. Fretaria veículos no atacado para levar ex-revolucionários a algum lugar do passado. Eu mesmo seria passageiro. Aliás, passageiros somos todos nós.

Deonísio da Silva é escritor e professor, Doutor em Letras pela USP, é autor de 34 livros, entre romances, contos e ensaios. Seu romance mais recente é Lotte & Zweig. Assina a coluna de “Etimologia”, na revista Caras e apresenta o programa “Sem papas na língua”, na Rádio Bandeirantes, com Ricardo Boechat. É Vice-reitor da Universidade Estácio de Sá. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração: Renato Faccini