Conto

O destino do Almirante Nolasco


Roberto Gomes

Após quinze dias de agonia — talvez fossem anos, séculos, perdera a noção de tempo desde que se entrevara naquela cama — e de delírios infindáveis, ocupados em viagens a universos distantes e a escuridões as mais tenebrosas, mergulhado em devaneios diversos, sonhos catastróficos, solfejando cantorias e murmurando frases quilométricas a respeito das barbaridades que praticara ao longo da vida e das patifarias que vira acontecer diante de seus olhos cansados, o Almirante Nolasco abriu por fim as pálpebras que mantivera serradas com a determinação de quem sabe o que quer e o que não quer ver, varrendo com algum desprezo o velório armado a sua volta com um olhar galhofeiro e disparando o que pensou ser um riso de mofa, mas que aos presentes pareceu um último esgar de moribundo. Conferiu o susto estampado nos rostos que o cercavam — filhos, noras, netos, vizinhos, duas amantes recentes, uma ex-amante que ele odiava e que não entendeu porque estava ali, o fornecedor de vinhos que o acompanhava há mais de trinta e cinco anos, o prefeito de São José das Águas com seu beiço esticado e frouxo, as sobrancelhas robustas expressando surpresa com tamanha resistência diante da morte mostrada pelo financiador de suas campanhas políticas e seu eleitor mais ilustre. Ao pé da cama, o padre Perquet com seu ridículo nariz interrogativo e o insuportável fedor de santidade. Diante de tais autoridades constituídas e criaturas familiares suspeitas, Nolasco declarou que estava cansado de ficar naquela cama, morrer era coisa muito mais difícil e ardilosa do que jamais imaginara, puta que o pariu, se afastem que vou me sentar, disse com voz roufenha.

Temerosos como se estivessem diante de um defunto que salta da tumba, todos se afastaram, menos a filha mais nova, que estendeu a mão para que o Almirante nela se apoiasse. Num primeiro momento, ele hesitou, tentando recusar a oferta, mas, ao se dar conta de que era Felícia quem lhe estendia a mão, sorriu, engasgou, gemeu, tossiu, e aceitou a ajuda, sentando-se com muita dificuldade depois de soltar vários puns e disparar rudes palavrões, curvado sobre seus ossos, que pareciam desconjuntados por debaixo da pele transparente.
Fernando, um de seus sobrinhos — mais um daqueles, como Nolasco dizia sempre, que viviam às suas custas — saiu correndo do quarto e foi buscar dona Ercília, há dois dias refugiada numa edícula aos fundos do terreno, não mais suportando ver o marido perdido naquele sofrimento inominável, naquela exposição vergonhosa. Na verdade, ela se desesperava com as façanhas indecentes que ele contava, alardeando as maldades que cometera em vida e fazendo relato das trapaças que testemunhara com seus olhos miúdos. Ela quase caiu de costas quando ele narrou com minúcias de ourives as roubalheiras do prefeito e amigo, Tenório Fraga, que estava ali a seu lado, boquiaberto, beiçola solta. O danado do seu marido riu ao dizer que o amigo prefeito, vindo da miséria, juntara mais dinheiro nos últimos dez anos do que ele próprio pudera amealhar no curso de sua longa vida. Não bastasse, Ercília teve que engolir em seco quando o Almirante seu marido murmurou para o travesseiro, com voz calculada de radialista de fim de madrugada, todas as bandalheiras que disse aos ouvidos de suas amantes, sem esquecer de declinar seus nomes, grossuras de coxas e maciez de pele, mesmo os cheiros mais íntimos, a cor e a consistência dos pentelhos, detalhes que ele fora capaz de guardar em sua robusta memória. A respeito de duas amantes, dona Ercília tinha conhecimento há muitos anos, uma por inconfidência de uma vizinha e, outra, quando o escândalo estourou em toda a cidade e não houve quem, mesmo surdo e cego, não soubesse o que se passara entre o Almirante e a “tremeluzente Roxana”, como ele repetia aos ouvidos do travesseiro. Mas o que fez com que Ercília se recolhesse à edícula foi a citação de outras amantes das quais jamais desconfiara, numa enfiada de nomes e datas e detalhes escabrosos a respeito das mais variadas possibilidades sexuais. Da lista que ouviu, Ercília guardou o nome de uma prima, vesga e gorda, que o Almirante brindou com um adjetivo que ela para sempre se recusaria a repetir, motivo pelo qual não é registrado aqui. Logo depois, ele teve um acesso de tosse que parecia fadado a levá-lo direto para o outro mundo — situado na mais profunda volta do inferno, ela calculou — mas foi apenas mais um susto. Pronto se recuperou e seguiu com a nomeação celerada de suas bandalheiras e só lá pelas seis da manhã voltou a falar de política, de trambiques, de gente covarde que sugara seu dinheiro, de patifes que se diziam amigos, mas que não passavam de uns “mentirosos torpes”, a mesma gente que o traíra quando da última eleição da qual participara como candidato a deputado, quando acabou rejeitado feito um cão leproso.
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Os que estavam a sua volta se olhavam suarentos e pensavam que era uma sorte que a voz dele fosse falha e
os beiços não lhe obedecessem direito na tarefa de dizer as palavras, motivo pelo qual muito do que dizia não se conseguia entender. Ainda bem, pensavam. Mesmo assim, todos — o filho mais velho, que num momento de fúria o Almirante chamou de sanguessuga, dona Ercília, e sobretudo o prefeito, com sua bota larga e dura — passaram a arrastar os pés no chão, a tossir, a mexer na cama do enfermo, a falar alto e a dar risadas fora de hora, tentando impedir que os relatos escabrosos do Almirante chegassem por inteiro aos ouvidos a seu redor. Mesmo assim, lá pelas tantas, seu Mirante Bastos, o vizinho, pegou dona Martinha, sua mulher, pelo braço e a arrastou porta afora, quando o Almirante começou a contar, entre risotas, a respeito de um estudante que por uns tempos parara na casa dos vizinhos para fazer o vestibular e que, numa noite de chuva em que Mirante Bastos ficara ilhado na fazenda, aceitara o convite de dona Martinha, vestida de camisola transparente, para tomar um chazinho, coisa que a cidade inteira sabia, não havia motivo para se ofender, e foi quando... O resto não se ouviu e nem podemos narrar aqui, já que não se guardou registro, pois neste momento dona Ercília deu um grito que calou o moribundo e foi se refugiar na edícula.

Agora, trazida pelo genro, dona Ercília estacionou ao lado do marido e não acreditou no que via. O marido, sentado na cama, embora murcho e amassado feito um lençol usado, fumava um cigarro que pedira ao prefeito.

— Vai te fazer mal, advertiu docemente dona Ercília.

— Que mal pode me fazer um cigarro?— Perguntou ele, piscando um olho, o esquerdo, sobre o qual ainda lhe restava algum controle e maestria.

E Nolasco, soltando uma baforada, que fez dona Ercília lagrimejar, pediu então ao amigo prefeito para tomar nota de algumas coisas que queria declarar antes de esticar as canelas. A referência ao iminente esticar das canelas do Almirante provocou soluços na filha Felícia e em dona Ercília, enquanto a determinação do moribundo em fazer declarações a respeito do que deveria ser feito depois de sua morte, fez com que parentes e amigos se juntassem para mais perto da cama, ouvidos atentos, momento solene em que até mesmo as botas duras e rudes do prefeito passaram a se mover com grande maciez contra o chão de tábuas largas, martirizadas pelo tempo e o uso descabido.

Começou enumerando suas propriedades, aquelas que tinha e as que um dia haviam sido suas ou pretendera que o fossem mas que, por isto ou por aquilo, não chegara a adquirir por culpa de alguns filhos da puta — insistiu: anote, Bastos, anote que são filhos da puta — que lhe estropiaram os caminhos dos negócios. Concluída a lista, que seria completada por outra devidamente guardada no sótão, dentro de uma lata de biscoitos, na qual relacionara os bens que um dia vendera a preço vil devido a perseguições políticas, ele disse que de nada adiantava a um cristão ter todas aquelas riquezas se não era mais capaz nem mesmo de governar o próprio rabo, motivo pelo qual ali estava soltando puns na cara de todos. Portanto, queria que suas propriedades materiais e espirituais, sobretudo as que jamais adquirira e que estavam incluídas em declarações que jamais fizera, fossem doadas para o hospital da cidade, embora aqueles putos daqueles médicos — anota direito, Bastos! — não tivessem conseguido lhe dar pelo menos mais uns dez anos de vida, o que ele bem que merecia.

Depois falou dos filhos, repreendeu mais uma vez cada um, embora misturando suas idades, características e importâncias. Colocou cabelos crespos em Jeruza, olhos macios e verdes em Antônio, insistiu que Manoela, sendo a mais velha — quando era a do meio — deveria cuidar dos negócios e que Túlio, sendo o mais jovem — quando era o mais velho — deveria sair de casa de uma vez, pois não estudava, não trabalhava, não produzia nada, além de ser um boquirroto miserável, sempre pronto a destratar tanto o pai quanto a mãe, além de já ter comido a filha do prefeito.

Foi quando se desencadeou um estrondoso pisotear de chinelos e sapatos, um frenesi de empurrar cadeiras, ataques de tosse, as botas duras e rombudas do prefeito raspando o madeirame com fúria singular. O Almirante deu uma última tragada no cigarro, disse puta que merda, estou cansado pra caralho, e estendeu a xepa ao prefeito, que a pinçou com dois dedos cautelosos.

Então, apoiado nos braços da filha Felícia, Nolasco se abandonou ao leito, com seu esqueleto miúdo exibindo uma quantidade assustadora de ossos por debaixo de suas peles espetadas por tanta magreza. Passou um olhar definitivo a sua volta e disse, com voz de quem se afasta ao longo de um corredor muito estreito e muito escuro, me perdoem, mas eu já estou cansado de tanto morrer, há mais de mês que eu não faço outra coisa senão morrer, puta que o pariu, não há quem aguente uma coisa dessas.

Foi quando, fechando os olhos, morreu para sempre.

Roberto Gomes é escritor, autor, entre outras obras, do romance O conhecimento de Anatol Kraft, recentemente lançado pelas editoras Insight e Criar. Também é colunista do jornal Gazeta do Povo. Vive em Curitiba (PR).