Cena Literária | Marilia Kubota

Questão de gênero (mas não só)

A partir de depoimentos de algumas das mais atuantes editoras do país, a poeta e curadora Marilia Kubota traça um breve painel da participação feminina à frente de publicações literárias

 

Para mulheres que editam, coeditam ou editaram publicações literárias no Brasil, a questão econômica vem antes da questão de gênero. A igualdade de gênero e abertura de espaço para mulheres aparecem recentemente — mais tímida a partir dos anos 2000 e mais politizada nos últimos anos. Mas um fato não pode ser apagado: sempre houve mulheres à frente de revistas, jornais, fanzines e dedicados à literatura

Criada por Jurema Barreto de Souza e Terezinha Sávio, em 1982, em Santo André (SP), sob forma de fanzine, A Cigarra era rodada em mimeógrafo, forma de reprodução que deu fama à Literatura Marginal, movimento de poesia dos anos 1970 que buscava divulgar autores marginalizados pelo mercado. Em 1994, o zine tornou-se revista, chegando a ter 500 correspondentes em todo o Brasil. As edições sempre foram modestas, entre 1,5 mil e 2 mil exemplares, com 42 números impressos publicados até 2007. Diante da necessidade de emergir no meio literário, a questão de gênero parecia secundária.

No mesmo espírito, a poeta Leila Miccolis criou, com o companheiro Urhacy Faustino, o jornal Blocos, em 1991, no Rio de Janeiro, minitabloide impresso de 12 páginas, com tiragem de mil exemplares e periodicidade mensal. O casal bancava todas as despesas de edição e impressão e envio. Depois de cinco anos, a publicação se tornou online

O Blocos virou, também, uma editora, e Leila foi das poucas mulheres a editar livros no país durante algum tempo. Na época, sentiu que as mulheres recebiam um tratamento diferente das gráficas: “Como Urhacy já tinha experiência na área e as gráficas (pelo menos as do Rio) não gostavam de ter contato com mulheres (algumas se negavam a lidar conosco), dividimos a tarefa para trabalhar mais à vontade: ele ficava com o contato com a gráfica, programação e diagramação, e eu com os contatos com autores, leitura, seleção de textos e copidesque. Revisão e a divulgação eram feitas por mim e pela Mônica Banderas (até hoje é assim)”.

Na era das revistas digitais, a Revista Pessoa, criada por Mirna Queiróz em 2010, é uma das que têm tido maior repercussão do meio literário. O fato de sua editora ser uma mulher não significa necessariamente que há maior envio ou seleção de trabalhos de autoras. Mas algumas desproporcionalidades são corrigidas. Na página de autores publicados ainda há mais homens (236) do que mulheres (171). Na seção Arca, de livros no prelo, há 19 mulheres e 26 homens.

Apesar da desvantagem feminina, Mirna assegura que a revista se preocupa com a paridade e representatividade e aponta um dos motivos para esta desvantagem: “Não publicamos textos porque foram escritos por mulheres. A seleção baseia- -se em pesquisa, no trabalho afinado de curadoria — atualmente formada por mulheres. Falha porque esbarra na questão financeira. Não há equipe fixa, uma redação, scouts em campo. Houve períodos em que a revista teve no time de colaboradores, principalmente colunistas, mais mulheres que homens. Isso flutua. É preciso considerar o contexto social, no qual escritoras têm intensa jornada de trabalho, conciliam carreira com maternidade e estudos. Nem sempre têm disponibilidade para escrever especialmente para a revista”. 

 

Bárbara Scarambone

Ilustração

 

 

Desencorajamento

Já a escritora Divanize Carbonieri, uma das três editoras ativas da revista Ruído Manifesto, criada em 2017 por Rodivaldo Ribeiro, diz que os editores (há mais três homens) têm preocupação de manter a representatividade de gênero para haver equilíbrio. Um dado importante é que, segundo ela, os homens jovens são os que mais se encorajam a enviar colaborações. “Os homens ainda têm mais autoconfiança como escritores. Mulheres escrevem, mas têm dificuldade de se reconhecerem como escritoras. É uma conquista quando diz: sou escritora.”

O desencorajamento das mulheres tem a ver com redes estabelecidas por homens. Segundo um estudo da professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), o perfil do escritor brasileiro (romancista) se manteve quase inalterável por 49 anos (1965- 2014). Homem, branco, de classe média, morador do eixo Rio-São Paulo. Neste período, houve um avanço de 12% a mais de escritoras no país.

“Os homens têm mais fácil o reconhecimento de outros homens, têm mais redes estabelecidas, um apoia o outro. Nós, mulheres, ainda estamos criando as nossas. Há poucas revistas que só publicam mulheres. E uma maneira de aumentar a divulgação de autoras é ter mais editoras mulheres e mulheres escrevendo sobre obras de mulheres, resenhas, ensaios”, opina Divanize.

Para a poeta Virna Teixeira, que mora em Londres, a criação de sua pequena editora, a Carnaval Press, e da revista Theodora foram gestos de ruptura com um mercado editorial (o brasileiro) bastante masculino. “A Theodora não publica apenas mulheres, também quero dar visibilidade a autores da comunidade LGBT. Faço a minha parte, publico e incentivo autoras. Como tradutora, tenho privilegiado mais o trabalho de autoras, de poetas e contistas.”

A poeta cita como exemplo de invisibilidade do trabalho de editoras um painel de revistas na bienal do Ceará realizado em 2019, em que mais de 90% dos convidados eram editores homens. “Quando contestei o curador do painel, ele afirmou que praticamente não há mulheres editando revistas, o que é uma inverdade.” De fato: em agosto de 2018, o coletivo feminista Mulherio das Letras fez um mapeamento informal de revistas editadas e coeditadas por mulheres e este número chegou a quase 50 veículos — entre sites, publicações digitais e tabloides em atuação.

Leila Andrade, do site Diversos Afins, criado em 2006 na Bahia, já detectou uma mudança: “As mulheres estão em evidência agora, diluindo esse cenário já construído como posição privilegiada do masculino. O ritmo é considerável. Observo que, nos eventos literários, cada vez mais, é notável a força da presença feminina, ela vem como um sopro, como um grito, como a consagração de um espaço natural que lhe pertence”, afirma. 


MARILIA KUBOTA é jornalista e poeta,autora de Diário da Vertigem (2015), micropolis (2014), Esperando as Bárbaras (2012) e curadora das antologias Um Girassol nos teus Cabelos — Poemas para Marielle Franco (2018), Blasfêmeas: Mulheres de Palavra (2016) e Retratos Japoneses no Brasil (2010).