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A implosão do romance

Depois de um período de glória e muita popularidade no século XIX, o romance adquire novos contornos nas mãos de escritores interessados na experimentação da linguagem

Luiz Rebinski Junior

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“Um romance para acabar com todos os romances”. Assim a crítica dos anos 1920 saudou Ulisses, do irlandês James Joyce. Escrito ao longo de quase uma década, o romance acompanha as 24 horas do dia 16 de junho de 1904 na vida de Leopold Bloom. Ele acorda, toma café, vai ao trabalho, comparece ao enterro de um amigo, vai a um bordel, ouve música em um pub e volta para casa. Um enredo é aparentemente banal para um livro que pretendia virar de pernas para o ar a tradição romanesca. Mas reside na forma, e não tanto no tema, o grande atrativo de Ulisses. Joyce consagraria com o livro o fluxo de consciência — estratégia que já aparece na obra de escritores como Fiodor Dostoiévski —, um recurso que
seria amplamente utilizado por romancistas de todo o mundo, como a inglesa Virgínia Woolf, outra escritora que ajudou a demolir as bases que sustentavam o romance no século XIX. Em Ulisses, segundo Antônio Houaiss, o primeiro tradutor do livro para o português, o “fluxo de cada vida é tão heroico ou vulgar
como o mito de Ulisses ou Ulisses mesmo”.

O fato é que se Ulisses não é de todo original, pois se apropria de recursos narrativos já utilizados anteriormente, o livro foi decisivo para que uma linhagem de autores interessados em experimentar novas formas narrativas surgissem. Beckett, amigo e colaborador de Joyce, foi um desses escritores. Apesar de sua obra mais famosa e difundida ser uma peça teatral, Esperando Godot, Beckett escreveu romances que dialogavam com a inquietação literária de seu mestre. A sua chamada “trilogia do pós-guerra”, formada pelos romances Molloy (1947), Malone morre (1948) e O inominável (1949), traz questionamentos modernos e o fim das certezas clássicas. Beckett trata da impossibilidade de comunicação em um mundo afetado por tantas barbáries (a Segunda Guerra Mundial, o nazifascismo, etc.), ou seja, a falência da linguagem em dar conta de uma realidade, digamos, inominável. Em um livro que o irlandês escreveu sobre Marcel Proust, Beckett diz que, para Proust, “a qualidade da linguagem é mais importante que qualquer sistema de ética ou estética. Na verdade, ele não faz nenhuma tentativa de dissociar forma de conteúdo”. A análise sobre o autor francês também pode servir como uma ótima explicação a respeito da obra beckttiana.

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David Foster Wallace, que se suicidou em 2008, é apontado pelo tradutor Caetano Galindo como um romancista inquieto.

Apesar não identificar na virada do século XIX para o XX um período de “ruptura” do romance, Caetano Galindo vê em Joyce e Proust duas figuras centrais de um processo contínuo e tipicamente romanesco de renovação permanente, sem destruição do que já existia. “Joyce e Proust são figuras completamente diferentes, com estilos completamente diferentes de lidar com problemas bastante similares. Joyce era o investigador da forma, o cara que estava determinado a pensar sempre ‘o que’ queria fazer e começar a pensar meio tabularrasamente nos ‘comos’ que teria que empregar. Uma figura muito beethoveniana. Luciferina. Prometeica. Proust, não. Ele era um pensador. A prosa romanesca dele é bem menos flexível, mas o que ele fez foi implodir precisamente as constrições formais e, a mesmo tempo, investir num aprofundamento e numa polemização da relação romance-realidade, romance-ensaio, etc.”

Do outro lado do Atlântico, mas também disposto a balançar as bases da literatura de seu país, o norte-americano William Faulkner conjugou como poucos forma e conteúdo. Com uma prosa polifônica, em que vários personagens se revezam na narrativa, Faulkner escreveu diversos romances em que ousadas técnicas narrativas se misturam a histórias humanas cativantes e fortes, tais como Luz em agosto, Palmeiras selvagens e Absalão, Absalão. Mas certamente O som e a fúria é seu livro mais radical, sendo a parte inicial contada por Benjamin, o deficiente mental da família Compson. Faulkner utiliza o fluxo de consciência como estratégia narrativa para falar da ruína do clã após o fim do modo escravista de produção. Ao trabalhar com espaço, tempo e linguagem, tendo a falência moral e econômica de parte dos Estados Unidos como mote, Faulkner se aproxima dos procedimentos literários de Joyce. Nos Estados Unidos, William Kennedy, décadas depois, se revelaria um dos principais discípulos de Faulkner, ao lançar livros seminais como Ironweed e O grande jogo de Billy Phelan.

Estilistas brasileiros

No Brasil, a primeira metade do século XX também representou um período fértil para a experimentação do romance. Em 1924 Oswald de Andrade, entorpecido pelo clima vanguardista da Europa, onde anos antes passou temporada, escreve as Memórias sentimentais de João Miramar, que nas palavras de Mário de Andrade foi uma “vitória da inteligência sobre o pensamento retrógrado que dominava a visão oficial das artes no Brasil”. Já entrando na década de 1930, quando o romance regionalista predominava, com Graciliano Ramos publicando seus mais célebres livros (Caetés, Vidas secas, São Bernardo e Angústia), Oswald lançou Serafim Ponte Grande, um romance completamente anárquico em que cabia tudo ali: teatro, poesia, colagem, paródia, relatos de memória, etc., tudo embalado por um tom picaresco que, setenta anos depois de sua publicação, exerceria grande influência em um livro ainda pouco lido e discutido, mas que desde já é um forte candidato a clássico da recente literatura brasileira, Pornopopéia, de Reinaldo Moraes. O Zeca, de Moraes, tem o DNA do Serafim, de Oswald.

Mas certamente um lugar especial entre os estilistas da literatura brasileira é reservado a João Guimarães
Rosa. A exuberância linguística de sua obra ainda hoje não foi superada por nenhum outro escritor nacional. Sua obra-prima, Grande sertão: veredas, publicada em 1956, está repleto de neologismos, arcaísmos recuperados, linguagem coloquial e regionalismo. O livro é um bloco de texto interiço, sem divisão de capítulos. Trata-se de uma verdadeira revolução na arte de contar “estórias”, que rendeu a Rosa diversos prêmios e lugar como um dos cem livros mais importantes de todos os tempos, de acordo com o prestigiado Círculo do Livro da Noruega. Rosa e seu Grande: sertão também influenciaram diversos escritores, tais como o paranaense Wilson Bueno e o pernambucano Osman Lins. Bueno se utilizou dos ensinamentos de Rosa para misturar catelhano, guarani e português em obras como Mar paraguayo. Já Osman Lins, assim como Campos de Carvalho, autor de O púcaro búlgaro, foi ainda mais longe e levou a experimentação linguística às ultimas consequências, por vezes fazendo uma obra de difícil leitura e compreensão. Avalovara, seu livro em que a preocupação com a forma atinge ponto máximo, representou, segundo o crítico Antonio Candido, “um momento de decisiva modernidade na ficção brasileira”.

Já Paulo Leminski, com seu Catatau, e Haroldo de Campos, com Galáxias, escreveram romances únicos na literatura brasileira. Influenciados por Joyce e o concretismo, utilizaram o romance como plataforma para um experimento barroco em que poesia e prosa se confundem.

Novos rumos

Assim como em diversas outras manifestações artísticas, a percepção de esgotamento da linguagem narrativa é algo comum para muitos críticos. “Parece que o romance anda careteando. Vejo a carreira do David Foster Wallace como uma grande luta contra a constatação de que as formas experimentais não tinham mais relevância. O [Jonathan] Franzen se acomodou. Ele queria entender isso. Queria encontrar um
jeito de ser novo, de novo, nesse mundo novo, em que inclusive era necessário reconhecer que talvez já seja velho ser novo à moda do Ulisses”, diz Caetano Galindo a respeito de dois dos mais festejados escritores americanos hoje.

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Outro nome da literatura contemporânea que se impõe entre os estilistas é o de Thomas Pynchon. O recluso escritor é dono de uma prosa anárquica, em que a história principal é encoberta por várias subtramas, com a participação de centenas de personagens. Seu livro O arco-íris da gravidade, publicado
em 1973, é considerado uma obra-prima a literatura do século XX. Pynchon também tem predileção por misturar gêneros literários em seus romances e por criar personagens caricatos e altamente excêntricos, como o rato que lê a bíblia em V, seu primeiro romance, e um cachorro fã de Henry James, um dos tipos que povoa as mais de mil páginas de Contra o dia, seu penúltimo livro.

“Pynchon é um romancista pleno, que aborda todo tipo de tema, que varia de registros e tons, que escreve obras imensas e imensamente ambiciosas e que encontrou, no seu retrato de paranoia, lirismo, piração e redenção pelo amor, o jeito mais interessante — e ridículo, tem que ser as duas coisas ao mesmo tempo — de retratar a cabeça dos Estados Unidos, que, quer a gente queira quer não, são o fenômeno mais presente e mais determinante do último século”, diz Galindo, tradutor de Vício inerente, mais recente romance do norte-americano.


Ilustrações: Allan Sieber