Capa | Newton Sampaio

Um outsider na província

Autor de uma prosa inovadora e singular, Newton Sampaio também foi um crítico mordaz dos escritores de sua geração, mas teve sua obra interrompida pela morte precoce, aos 24 anos

Luiz Rebinski Junior




osvalter

Qualquer escritor que tenha se dedicado a protagonistas literários, em livros metanarrativos, certamente daria alguns anos de sua vida para ter criado um personagem como Newton Sampaio. Sim, Sampaio foi um escritor, mas também uma figura das mais interessantes. Qualquer personagem-escritor de Phillip Roth, o grande autor americano, parece mero rascunho quando comparado à trajetória pessoal do escritor paranaense. Sampaio, ilustremente desconhecido mesmo em seu Estado de origem, não é somente o primeiro autor moderno do Paraná, como vaticinou Wilson Martins, mas também o outsider número um das letras locais — o primeiro de uma linhagem que ainda teria nomes como Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Jamil Snege e Manoel Carlos Karam.

Nascido em setembro de 1913 em Tomazina, um município minúsculo do Norte paranaense, o autor não publicou nenhum livro em vida, mas ganhou, postumamente, um prêmio da Academia Brasileira de Letras por uma coletânea de contos que ninguém sabe ao certo como chegou à ABL. Sua produção literária nunca foi editada comercialmente e seus trabalhos póstumos foram todos “achados” em periódicos do Paraná e do Rio de Janeiro, os dois Estados em que Sampaio morou e publicou até morrer, aos 24 anos, em um sanatório da Lapa, a 60 quilômetros de Curitiba. Ainda assim, relegado a um ostracismo permanente, Sampaio foi, nas palavras de Dalton Trevisan, “o maior contista do Paraná”.

Talvez mais que “talento”, “precoce” é o adjetivo que cabe melhor ao escritor. Filho de um agricultor, o pequeno Newton foi enviado à capital paranaense aos 13 anos para estudar no Internato do Ginásio Paranaense. Em 1929, entra em cena o personagem que estaria com o escritor até o final de sua vida. Brasílio Araújo, um tio abastado, assume parte das despesas do sobrinho na capital. Ainda com a ajuda do parente, o futuro escritor começa a se virar sozinho, lecionando precocemente no próprio Ginásio Paranaense onde era interno, também começando sua carreira na imprensa, em jornais como O Dia, de Curitiba, e O Jornal, de Siqueira Campos. Em 1932 ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). No final de 1934 vai para o Rio de Janeiro, onde estuda na Faculdade de Medicina de Niterói. Após se formar, em dezembro de 1937, recebe o diploma de médico, atividade que nunca exerceria profissionalmente por conta de uma tuberculose que o mataria quatro meses depois de formado.

A atividade literária foi desenvolvida de forma contínua entre esses eventos biográficos, que só puderam ser contados por meio de documentos, cartas e recortes de jornais. Isso inclui a produção literária, quase toda juntada como um mosaico que daria forma à obra de Sampaio após sua morte.

“Ninguém nunca vai contar a história do Newton totalmente, será sempre uma incógnita”, diz Lilian Guinski, autora da dissertação de mestrado A obra de Newton Sampaio — O resgate do Paraná do século XX na ótica do século XXI, que junto com O brejo das almas: O intelectual na ficção de Newton Sampaio, do escritor Marcio Renato dos Santos, é um dos únicos estudos acadêmicos sobre o escritor paranaense. “Tem muita lacuna a ser preenchida. Como ele viveu em Tomazina, Curitiba, Niterói e morreu na Lapa, e como esteve envolvido em tantos ambientes culturais, tem muito ainda a ser pesquisado”, explica Lilian, que neste mês lança a biografia Newton Sampaio: vida, obra e silêncio.

Com nove irmãos, Sampaio, no entanto, praticamente perdeu o contato com a família após se mudar para o Rio de Janeiro. Nilo Sampaio, que em 1936 tinha 19 anos e se mudou para o Rio para estudar, foi o irmão mais próximo do escritor, tornando-se, na sequência, seu herdeiro literário.

No entanto foi Neusa Sampaio, uma das irmãs do escritor, quem reuniu documentos a respeito do irmão, que no final dos anos 1970 teve sua primeira “redescoberta”, quando a Fundação Cultural de Curitiba reeditou Uma visão literária dos anos 30, com artigos críticos de Sampaio publicados na imprensa, e Irmandade, o livro póstumo premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1938. Na sequência, Sampaio e sua obra teriam outros momentos de visibilidade, um deles quando Miguel Sanches Neto, então diretor da Imprensa Oficial do Paraná, edita, em um único volume, os textos de Irmandade e de Contos do sertão paranaense, intitulado Contos reunidos. A coletânea foi um sucesso editorial, o que forçou a Imprensa Oficial a fazer uma segunda tiragem, que igualmente se esgotou rapidamente. Diante da boa aceitação, Sanches Neto pede ao professor Luís Bueno, da UFPR, para fazer uma pesquisa a respeito dos textos de ficção de Sampaio publicados apenas em jornais e que se mantinham inéditos em livro. O resultado do trabalho foi Remorso: ficção dispersa, que traz inúmeros contos e dois projetos de ficção de fôlego que Sampaio não concluiu.

Foto: Kraw Penas

Original de Newton Sampaio, arquivado pelo irmão do escritor.

Kafka do Paraná

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No plano biográfico, Neusa foi durante muitos anos a curadora do acervo do irmão. Se Franz Kafka teve seu legado literário salvo pela perspicácia de Max Brod, que contrariou o pedido do amigo para que queimasse toda a obra do autor de A metamorfose, o mesmo não aconteceu com o escritor paranaense. “Neusa queimou vários documentos sobre a vida dos dois irmãos, Nilo e Newton, com medo de contrair tuberculose”, diz Lilian Guinski.

O material que sobrou, foi parar com Pedro Sampaio, irmão mais novo que, em 1938, quando o escritor faleceu, tinha nove anos. “Minha irmã tinha muito cuidado com as coisas do Newton, então antes de queimar os originais, tirou cópia de tudo”, explica Pedro, que hoje cuida do acervo do irmão, que consiste em 12 volumes encadernados. Praticamente tudo que se escreveu sobre a vida de Newton Sampaio saiu desse pequeno acervo. E, na prática, a biografia do escritor passou apenas pelo crivo da irmã Neusa, que ia contando fatos da vida do irmão em pequenos bilhetes que escrevia à mão e depois datilografava na máquina de escrever.

“Quando minha irmã morreu, em 2002, juntei esses fragmentos escritos por ela, com alguns originais do próprio Newton, com a letra dele, como atas de reuniões que ele participava”, diz Pedro. Lapa O escritor Tasso da Silveira, segundo Lilian Guinski, foi a pessoa que ajudou Sampaio a conseguir vários empregos em seu período no Rio. Dedicado à crítica literária de seu tempo, o autor paranaense escreveu muito sobre seus pares de geração em jornais do Rio de Janeiro e do Paraná. De José Lins do Rego a Andrade Muricy, Sampaio foi um observador privilegiado — e extremamente crítico — de um período (os anos 1930) que se confirmaria pródigo em grandes escritores e obras. Parte dessa produção foi compilada na coletânea Uma visão literária dos anos 30, editada pela Fundação Cultural de Curitiba em 1979.

Outra figura de destaque na trajetória de Sampaio foi Manoel de Oliveira Franco, que, um ano após a morte do escritor paranaense, em 1939, organiza os Contos do sertão paranaense, que trazem textos mais longos do que aqueles contidos em Irmandade e com temática mais “rural”. Oliveira Franco era paranaense, mas o livro, em sua primeira edição, traz a informação de que foi rodado em uma editora de São Paulo. 

Além das críticas literárias que escrevia diariamente, Sampaio dividia seu tempo com a faculdade de medicina, estágios em hospitais e, claro, a escrita de sua própria ficção. “O Newton não tinha tempo nem para as coisas, digamos, mais comezinhas, como se alimentar. O Manoel de Oliveira Franco me disse que ele atravessava a barca Rio/Niterói estudando medicina e escrevendo contos”, diz Pedro. Para o irmão, essa rotina acabou deteriorando a saúde do escritor.

Logo após se formar, em dezembro de 1937, já bastante debilitado, Sampaio teria sido levado pelo tio Brasílio de Araújo para repousar em uma fazenda próxima a Londrina. Depois, seguiria para um sanatório na Lapa, onde acabou morrendo, em 12 de julho de 1939, de tuberculose. O escritor foi enterrado na Lapa, mas ao que consta, apenas o tio e um primo estavam presentes quando ele morreu. A informação sobre o local exato de onde Sampaio foi enterrado nunca veio à tona. Brasílio de Araújo faleceu em 1948 e nem Neusa e nem Pedro conseguiram obter essa informação.

Para Lilian Guinski, Sampaio foi vítima de seu próprio talento, pois tinha tantas ideias que não conseguiu colocar tudo em prática, levando em consideração também que teve uma vida breve. “Newton Sampaio é um escritor que nasceu em um momento errado, mas produziu muita coisa boa e que ainda está em busca do leitor”, diz Lilian.

Ilustração: Osvalter Urbinati