Capa | Literatura Experimental

Nos trilhos da ousadia

Sinônimo de efervescência, originalidade e não poucas vezes qualidade, a chamada literatura experimental é aquela que não aparece na lista dos livros mais vendidos, mas oxigena e aponta caminhos

Marcio Renato dos Santos

Reprodução

simone








 

Veronica Stigger e Simone Campos: apontadas como duas vozes experimentais da contemporaneidade.

Verônica Stigger. João Gilberto Noll. Simone Campos. Sérgio Fantini. Paulo Scott. Luci Collin. Elvira Vigna. Ricardo Corona. Douglas Diegues. Peter Esterházy. Gonçalo M. Tavares. António Lobo Antunes. Horacio Moya. Lars Iyer. Tao Lin e Alessandro Baricco. O que esses nomes têm comum? Em primeiro lugar, são escritores contemporâneos. Mais que isso, desenvolvem uma literatura que é considerada experimental.

Mas, enfim, o que é ou pode ser literatura experimental? “Toda a escrita é uma experiência com a linguagem”, diz a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dirce Waltrick do Amarante. Ela pondera que, evidentemente, nem todos os escritores — de fato — ousam.

Antes de definir a escrita experimentalista, a estudiosa teoriza, por contraste, sobre a literatura não experimental: “É a literatura que segue pelas veredas mais previsíveis, mais ordinárias. A marca do convencional é o tédio. Na literatura não experimental, a linguagem está ali, dada por inteiro ao leitor. Ele apenas acompanha o texto, não chega a se envolver com ele ou mesmo se resolver nele.”

Complicado?

Realmente, o experimentalismo na ficção não é fácil de praticar, nem de ser decifrado. O escritor Carlos Henrique Schroeder afirma que não existe literatura experimental. “É apenas um rótulo para aquilo que é produzido e não se enquadra nos padrões de mercado”, afirma. Ele observa que a literatura tem uma história, uma linha do tempo e — literariamente — tudo já foi realizado, de todas as formas. “Toda maneira de experimentar é na verdade uma maneira de representar uma escola estética do passado”, opina o catarinense, autor, entre outros, do livro de contos As certezas e as palavras, vencedor em 2010 do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional.


“Não existe literatura experimental. Isso é apenas um rótulo. Toda maneira de experimentar é na verdade uma maneira de representar uma escola estética do passado”

Carlos Henrique Schroeder, escritor e editor


Não basta escrever bem
André Conti, editor da Companhia das Letras, afirma: não basta experimentar. “O livro não pode ser apenas experimento. Tem de ser, acima de tudo, um livro, aberto, por mais que a prosa seja hermética”, diz. James Joyce e Thomas Pynchon, dois autores considerados experimentais, são publicados pela editora — uma das mais bem-sucedidas comercialmente no Brasil. Conti, porém, não os define apenas como experimentais.

“Apesar da dificuldade que o leitor pode encontrar durante a leitura de Ulysses, o livro não é apenas um exercício de estilo. James Joyce é um humanista”, analisa Conti. O mesmo raciocínio vale, na opinião do editor, para Pynchon — afinal, completa Conti, independentemente das tramas rocambolescas, dos inúmeros personagens e vozes, obras como Contra o dia e V tratam do ser humano. 

Fotos: Kraw Penas/Divulgação

Conti garante que é a qualidade literária que faz com que uma obra seja publicada pela Companhia das Letras. Portanto, argumenta, não basta, apenas, experimentar. Ele diz receber inéditos que flertam com o experimentalismo, mas que não o entusiasmam. “Recebo, por exemplo, muita prosa poética. O sujeito quer colocar a sua experiência, mas em geral são experiências não muito ricas. São propostas pretensiosas, mas pretensões que não se cumprem. Ulysses, de Joyce, é pretensioso, mas cumpre o que promete.”

O editor da Companhia das Letras vai além, e afirma: “Não basta nem escrever bem. Escrever bem não leva a nada, não faz de um texto uma grande obra literária.” O importante, completa, é o texto ter “algo a mais”. Lourenço Mutarelli, que transitou dos quadrinhos para a prosa, consegue —

Ousados e inclassificáveis: João Gilberto Noll, Carlos Henrique Schroeder e Elvira Vigna.

na opinião de Conti — realizar uma literatura experimental de qualidade e instigante. O editor considera, por exemplo, Dalton Trevisan um experimentalista supremo. “Há quem diga que o Dalton se repete, mas — na realidade — ele se parece apenas com ele mesmo. E basta uma linha para o leitor reconhecer que está diante de um conto do autor.”

Correr riscos

Mas nem todos autores experimentais conseguem ser editados por grandes editoras. Carlos Henrique Schroeder diz perceber uma “sutil” mudança na Companhia das Letras, na Rocco e na Alfaguara — “que estão se soltando e dando espaço para os novos e mais ousados também” —, mas, analisa, ainda é pouco. “Uma editora grande vai relutar em publicar um livro que ofereça riscos financeiros ou à sua imagem, e vai preferir que uma editora pequena teste e, se der certo, acaba contratando o autor, é sempre assim”, diz Schoereder.


“Não basta, apenas, experimentar. Não basta nem escrever bem. Escrever bem não leva a nada, não faz de um texto uma grande obra literária.”

André Conti, editor

Dirce Waltrick do Amarante, da UFSC, entende que o texto experimental é também um texto visceral, e diz respeito a uma ideologia estética profunda. “O autor que é de fato experimental não pode deixar de escrever assim sem mais nem menos só porque o mercado o exige. Ser experimental é crucial. O autor experimental tem mil razões para ser teimoso, e essa teimosia é uma postura ética, política, estética da maior relevância para a sobrevivência da arte”, argumenta, completando que a arte precisa da experimentação, “assim como talvez precise também da legião de autores acomodados ou oportunistas que todos conhecemos.”

Fotos: Divulgação
Schroeder concorda com o discurso da especialista da USFC. “O autor que quer correr riscos não pode reclamar de que não tem espaço na mídia comercial ou em editoras grandes, pois ele escolheu este caminho. É como você fazer cerveja e tentar vender como uísque para o vendedor de leite. Mas há muitos bons autores que seguem a linha do romance mais tradicional, e escrevem grandes livros”, afirma.

Além de autor, Schroeder dirige, em parceria com o poeta Manoel Ricardo de Lima, a Editora da Casa, selo que desde 2007 já viabilizou 50 títulos — a proposta é publicar o que as grandes editoras não publicam, incluindo poesia e conto. Para entender o modus operandi Da Casa, o editor comenta o lançamento do Livro da dança, de Gonçalo M. Tavares. “Não é um livro fácil e quando lançamos, em 2008, o Gonçalo ainda não era tão conhecido. É uma obra sobre a dança, sobre o movimento, sobre como dançamos o tempo todo, até quando morremos”, explica Schoereder. A tiragem esgotou em dois meses, houve procura, mas, ao invés da reedição, Lima e Schoereder optaram por investir em um outro autor com o lucro do livro do Gonçalo. “É assim que as coisas funcionam. Gostamos de apostar”, diz.
Eduardo Sterzi, Heitor Ferraz e Fabiano Calixto:
poetas contemporâneos que percorrem veredas
inéditas e se firmam como sinônimo de qualidade.

Efervescência

Enquanto escritor, Schoereder não se considera experimental, mas sim fiel às suas obsessões. “Gosto de me provocar e de ouvir o ruído do diálogo da literatura com a fotografia, com as artes visuais, com a música, com a internet, com o teatro.” Ele diz se estimular com a produção de criadores “transgêneros” como Tadeuzs Kantor ou Felisberto Hérnandez. E também com Mario Bellatin. “É o tipo de escritor que me interessa. Sua criação não termina na palavra, está sempre além. E, como gosto de mixar literatura e fotografia, e ele também, tenho acompanhado tudo que o Bellatin faz”, completa.

“O autor que é de fato experimental não pode deixar de escrever assim sem mais nem menos só porque o mercado o exige. Ser experimental é crucial. O autor experimental tem mil razões para ser teimoso, e essa teimosia é uma postura ética, política, estética da maior relevância para a sobrevivência da arte”

Dirce Waltrick do Amarante, professora de UFSC


Para quem está interessado em literatura experimental, Schoereder dá uma dica: o catálogo da editora 7Letras. “É tão rico e variado que poderíamos passar décadas lendo o que eles publicam. Poetas importantes estão lá: Carlito Azevedo, Eduardo Sterzi, Fabiano Calixto, Tarso de Melo, Heitor Ferraz e mais uma galera.” Ele também destaca o trabalho das editoras Patuá, Dobra, Cultura & Barbárie, Kafka Edições,
Arte & Letra, Medusa e Não Editora. “Todas têm cumprido um importante papel, que é o de manter o diálogo aberto.

A boa literatura está em toda parte, em todos os Estados.” Dirce Waltrick do Amarante acredita que texto experimental é sinônimo de texto efervescente. “Existe uma tradição antiga de textos efervescentes, da antiguidade até hoje. Então, temos clássicos efervescentes, alguns milenares, que nunca perderam as características explosivas. O experimental contemporâneo poderá ser às vezes precário, mas ainda assim efervescente, agitado, cheio de energia verbal e imagética.” A estudiosa entende que a efervescência é,
então, a marca do texto “bom”. “Por sua vez, o texto ‘ruim’ é um mero enunciado sem energia, logo, sem muito apelo estético. E essa fraqueza é fruto do comodismo do autor, ou do seu oportunismo”, argumenta Dirce. “Já um texto realmente experimental é ‘bom’, pois efervescente. Não dá para se enganar quanto a isso.”

estante