Capa | Ciência e poesia

Pai de todos os ensaístas, Michel de Montaigne (1533- 1592) elegeu como dístico a pergunta “Que sei eu?”, inscrita justamente ao lado de uma balança. Nesta questão se embutem tanto a humildade em relação a um assunto em particular quanto a perspectiva subjetiva. Cada ensaio de Montaigne é um espelho onde ele pinta um autorretrato de sua consciência aguda. Segundo o ensaísta Jean Starobinski, Montaigne “não nos oferece nem um diário íntimo nem uma autobiografia. Ele se pinta olhando-se no espelho (…), exprimindo sua opinião sobre a presunção, a vaidade, o arrependimento, a experiência, a razão de Estado, o massacre de indígenas, as confissões obtidas sob tortura (…). No ensaio segundo Montaigne, o exercício da reflexão interna é inseparável da inspeção da realidade exterior. É só depois de ter abordado as grandes questões morais, escutado a sentença dos autores clássicos, deparado com os dilaceramentos do mundo presente que, buscando comunicar suas cogitações, ele se descobre consubstancial a seu livro, oferecendo de si mesmo uma representação indireta, que só pede para ser complementada e enriquecida: ‘A matéria-prima do meu livro sou eu mesmo’.”

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O francês Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o “pai do ensaio”.

Starobinski lembra que, para Montaigne, escrever é ensaiar de novo, com forças sempre jovens, num impulso sempre primeiro e espontâneo, tocar o leitor na carne, arrastá-lo a pensar e sentir mais intensamente. “E às vezes também surpreendê-lo, escandalizá-lo e incitá-lo à réplica.” Montaigne dizia: “a fala é metade o que fala e metade o que escuta”. Starobinski sugere ao ensaísta contemporâneo identificar-se com a liberdade de Montaigne, que fugia à linguagem impessoal hoje vigente nos ensaios das ciências humanas, e encontrar a sua própria voz usando todo corpo de saber disponível. “Trata-se de tirar o melhor partido dessas disciplinas e então tomar a dianteira sobre elas, uma dianteira de reflexão e liberdade, em sua própria defesa e a nossa (…) A partir de uma liberdade que escolhe seus objetos e inventa sua linguagem e seus métodos, o ensaio deveria aliar ciência e poesia.”


RONALDO BRESSANE é escritor, jornalista e professor de escrita criativa. Entre seus livros estão os romances Escalpo (Reformatório), Mnemomáquina (Demônio Negro) e os romances gráficos V.I.S.H.N.U. (Companhia das Letras) e Sandiliche (Cosac Naify)