Caminho Literário: Ilíada doméstica

Renovador do conto brasileiro, Dalton Trevisan é dono de uma trajetória literária de mais de 5
Novelas Dalton
0 anos


Guilherme Magalhães

Em 1945, enquanto as últimas bombas dos Aliados subjugam a Alemanha nazista e a guerra na Europa aproxima-se do fim, uma outra explosão, essa bem mais próxima, sacudiu os arredores da Rua Emiliano Perneta, em Curitiba, mais precisamente o número 476. Em onze de março de 1945, uma caldeira da fábrica de vidros e cerâmicas Trevisan explode. Entre os feridos, o filho do dono da fábrica e consultor jurídico da empresa, Dalton Jérson Trevisan, na época com 20 anos e estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná. Mais do que os trinta dias passados no hospital em decorrência do crânio fraturado, o acidente rendera a Trevisan uma mudança de perspectiva. Como o próprio autor certa vez confidenciou, “ali nascia o escritor”.

O autor, então, lança seu primeiro livro naquele mesmo ano, a novela Sonata ao luar, que juntamente com os contos de Sete anos de pastor (1946), seriam mais tarde renegados por Dalton e excluídos de qualquer bibliografia oficial do contista. Hoje, de fato, esmaecem à sombra de suas obras posteriores – e superiores.
Dalton, desde cedo, demonstrava apego às letras. Durante a adolescência, aos 15 anos, em 1940, fundou a revista Tingui. A revista circulou até 1943, ano em que Dalton é aprovado no vestibular de Direito da UFPR. Ele ainda trabalharia no jornal Diário do Paraná, como repórter policial e crítico de cinema. Nunca exerceu de fato a advocacia e, após o acidente na fábrica, passou a se dedicar mais e mais à literatura, editando a revista Joaquim e escrevendo contos e novelas. No início, em cadernos de cordel, com edição limitada de 200 exemplares, que enviava gratuitamente para escritores e amigos.

Reunindo contos e novelas, escritos ao longo de quase duas décadas de produção literária, Novelas nada exemplares é lançado em 1959 pela José Olympio, casa editorial dos grandes nomes da literatura da época, fato que prenunciava a estatura que Dalton Trevisan iria alcançar na literatura brasileira do século XX. O livro despertou a atenção do crítico literário Otto Maria Carpeaux, mas não de maneira muito positiva. Porém, como o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony bem escreve na orelha de Novelas, “o próprio fato de Carpeaux despencar em cima do estreante todo o peso de seu laboratório crítico já revelava alguma coisa”. Dalton nunca perdoou Carpeaux, referindo-se ao crítico sempre como “o gago”.

Vampiro descoberto

Em 1968 Trevisan vence o “I Concurso Nacional de Contos”, realizado pela Fundepar, órgão do governo do Estado do Paraná. Não foi o primeiro prêmio do contista, que em sua estreia oficial, com o já citado Novelas nada exemplares, levara o Jabuti de 1960. Cemitério de elefantes vence o mesmo prêmio na edição de 1965. Mas é com a vitória no “I Concurso Nacional de Contos” que Dalton Trevisan ganha grande visibilidade no cenário literário nacional. A qualidade de sua linguagem, marcada pela elipse e precisão foi, cada vez mais, reconhecida pela crítica ao longo das últimas cinco décadas. Dalton venceu quatro vezes o Prêmio Jabuti, todos na categoria “Contos/Crônicas”. Além de Novelas e Cemitério, seu Ah, é? levou em 1995 e Desgracida em 2011.

Logo na primeira edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em 2003, lá está Dalton Trevisan entre os vencedores, com Pico na veia, mais uma coletânea de curtas e secas espiadelas na vida mesquinha da urbe. Macho não ganha flor vence a mesma categoria na edição 2008 do prêmio. Sistematicamente traduzida para o inglês e, curiosamente, para o holandês, a obra do escritor acumulou críticas positivas de periódicos como The New York Times, Boston Globe e Los Angeles Times. Agora, em 2012, a ilíada doméstica — termo cunhado pelo próprio autor para descrever o dia a dia das suas personagens — é mais uma vez reverenciada, desta vez com o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa.

Reescrita rigorosa

O escritor catarinense radicado em Curitiba, Paulo Venturelli, não conhece os dois livros anteriores a Novelas na exemplares que foram renegados pelo Vampiro, mas vê com normalidade o fato de Dalton ter renegado seus primeiros passos na literatura. “É sinal de amadurecimento. Tais obras são do tempo em que ele ainda não encontrara sua voz, sua senda. Assim que estas são encontradas, ele cerra fileira com elas e joga o resto para o esquecimento. E este é um óbvio sinal de muito critério”, defende Venturelli, que é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para ele, isso está em falta na literatura atual. “Há muitos textos flácidos, gordurosos, que não deveriam ter saído da gaveta ou do computador. Dalton Trevisan espreme até a última gota para depois espremer mais uma vez”, diz.

A constante insatisfação do autor com seu texto é uma das marcas de sua sua obra, marcada pelo constante aprimoramento dos contos. Sempre há maneiras de se deixar a linguagem mais concisa. O próprio Dalton Trevisan já afirmou certa vez que “seu caminho será do conto para o soneto para o haicai”. O crítico Alcir Pécora destaca o extraordinário nível de acabamento da obra do contista curitibano. “Não há palavra, não há vírgula até que não esteja num lugar preciso. Desse ponto de vista, não é o inacabado, mas o superacabado que parece suscitar a reescritura. Como se a perfeição atingisse certo ponto de saturação e depois precisasse ser ferida, desarranjada, e então ser novamente buscada, numa nova situação, aparentemente desfavorável”, aponta Pécora.

Obras recentes do contista, como Desgracida (2010) e O anão e a ninfeta (2011), confirmam que o haicai já não está tão longe. O uso das reticências e das interrogações como resposta das personagens toma conta das já quase “pílulas do cotidiano”, reduzidas em tamanho, mas nunca na acidez de denunciar a degradação dos Joões e Marias.

Voz própria

Alcir Pécora cita o recente conto “Violetas e pavões”, no qual Dalton escreve que a “verdade não adianta”. Ela não tem uso, pois é sempre escorregadia. “O talento mais extraordinário de Dalton Trevisan é o de descobrir o viés sórdido na ação mais corriqueira, isto é, revelá-lo na mesma área semântica do pitoresco, do típico e do doméstico”, explica.

A singular voz literária do escritor talvez só tenha encontrado paralelo em outro grande contista, o russo Antón Tchekhov, uma das grandes paixões literárias do Vampiro. “Insistindo, porém, nessa questão de influências, diria que o fundo da literatura de Dalton Trevisan tem um impulso decadentista, perverso, muitas vezes associado a taras e neuroses, que remonta historicamente tanto a naturalistas como a simbolistas e parnasianos”, arrisca Pécora. Quanto aos prováveis sucessores, o professor Paulo Venturelli não hesita. “Acho que só ao longo de décadas é que isto estará evidenciado, mas não reconheço, pelo menos, nenhum escritor aqui que possa ser filiado à vertente que Dalton Trevisan criou.”

Trevisan nunca teorizou sobre a própria obra, mas defendeu a publicação de teses sobre seu trabalho, como Do vampiro ao cafajeste, de Berta Waldman, que assina ensaio sobre o escritor nesta edição do Cândido.

Contista por excelência

Em uma de suas raras entrevistas, concedida ao jornalista Luiz Vilela, no Jornal da Tarde, em 1968, Dalton Trevisan proclamou o conto como gênero literário da atualidade. Nas suas palavras, “o romance é um gênero decadente”. Esse pensamento se reflete na carreira literária do Vampiro, que conta com apenas um romance, que mantém o estilo fragmentado e elíptico de seus contos. Lançado em 1985, A polaquinha não abandona a linguagem econômica do contista, e nos apresenta um dos grandes personagens da trajetória do escritor. A menina pobre em sua jornada de descoberta do mundo masculino, em toda sua mediocridade e erotismo.

“Muitas linguagens, estilos e vozes entram na composição do romance. Sua arquitetura é mais larga, exige digressões, psicologia, detalhamento do cenário. Se Dalton se metesse nesta seara, perderia o impacto de sua concisão, o martelar numa única voz obsessiva que remexe com nossas entranhas”, argumenta Venturelli. Segundo o professor da UFPR, a intenção do contista é nos perturbar com o mundinho reles no qual os personagens seguem a compulsão sexual.

Alcir Pécora lembra que as personagens de Dalton são planas, sem alteração de caráter ao longo da trama. A graça está na identificação imediata, não no seu desenvolvimento. “Nada disso seria aconselhável num romance”, opina o crítico. Por falar em personagens, os tipos que permeiam a obra do Vampiro se repetem na comédia humana que é a vida urbana. Ele denuncia a sociedade em que vivemos na voz daqueles situados nos níveis mais baixos da pirâmide social. E a repetição de Curitiba como espaço para a ação de suas aventuras sexuais e causos do cotidiano nada tem de negativo, pelo contrário. A Curitiba de Dalton Trevisan poderia ser qualquer outra, sem caráter, provinciana, abrigo de vidas mesquinhas. Pécora acredita que o Vampiro poderia ser criado em qualquer grande cidade desalmada, na qual a vida humana acaba por se depositar, aglomerar e permanecer, sabe-se lá por quê.

7 ano de pastor
Sonata ao Luar Dalton



As verdadeiras obras de estreia de Dalton Trevisan hoje são renegadas pelo contista. Sonata ao luar, publicado em 1945, é, na verdade, uma novela e teve capa e ilustrações feitas pelo amigo pessoal de Dalton, o artista Guido Viaro. Sete anos de pastor é uma reunião de contos do escritor, que saiu em 1948 pela Edições Joaquim, na época, revista literária editada por Trevisan.






Novelas Dalton



O título remete ao Novelas exemplares, do espanhol Miguel de Cervantes. Estreia oficial de Dalton na literatura, essas Novelas nada exemplares foram publicadas em 1959 pela Livraria José Olympio, editora entre as grandes da época. O livro levou o Prêmio Jabuti de 1960 e recebeu duras críticas do crítico literário Otto Maria Carpeaux, que afirmou a competência de Dalton em descrever os ambientes da vida provinciana, mas que, no entanto, o contista “não se sente seguro dentro desse mundo porque, na realidade, não é o seu mundo”.


O vampiro de curitiba Dalton




Lançada em 1965, é a obra mais famosa do contista e origem da alcunha que Dalton Trevisan carrega até hoje. A tradução para o inglês lhe rendeu críticas acaloradas na imprensa americana, tendo o jornal The New York Times comparado o Vampiro a escritores como o mexicano Carlos Fuentes, destacando o papel de Dalton na renovação da literatura latino-americana.






Macho não ganha flor Dalton






Coletânea de 22 contos inéditos, lançado em 2006, Macho não ganha flor foi o segundo colocado do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2007. O universo da marginalidade urbana e o erotismo são dois grandes eixos que permeiam essa obra, que recentemente foi adaptada para os palcos pelo produtor João Luiz Fiani e esteve em cartaz no Festival de Teatro de Curitiba deste ano.





A polaquinha Dalton





Tendo lançado já 18 livros de contos, em 1985 Dalton publica seu primeiro romance, A polaquinha. As marcas da literatura daltônica, no entanto, como a tensão erótica e a concisão das palavras, restando o essencial, se fazem presentes nessa obra que o jornalista e escritor Otto Lara Resende classificou como “inesquecível”.






Pico na veia Dalton






Pico na veia
foi lançado em 2002. Nas miniestórias que compõem esse volume, Dalton reafirma ser um escritor comprometido com um retrato fidedigno da vida urbana, como quando coloca jovens fumando pedras de crack. O livro venceu a primeira edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em 2003, empatado com o romance Nove noites, de Bernardo Carvalho.








Guerra conjugal Dalton







As agruras dos relacionamentos dos Joões, Marias, Ritinhas e Andrés, que já aparecem espalhadas pela obra do contista curitibano, neste A guerra conjugal tornam-se o fio condutor das histórias. Publicado em 1968, o livro ganhou uma bem-sucedida adaptação para o cinema em 1975, juntamente com outros contos do escritor, pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade.










Desgracida Dalton





Dividido em duas partes distintas, miniestórias inéditas e cartas para amigos – como os escritores Otto Lara Resende e Pedro Nava –, Desgracida foi publicado em 2010 e mostrou que Dalton prossegue em sua busca pelo haicai e a palavra perfeita. A obra lhe rendeu, em 2011, o mais recente de seus quatro Prêmios Jabuti.