Artigo | Memória

Por uma poética das memórias literárias

As memórias, enquanto gênero literário,  aproximam-se do romance. Cada texto inaugura traços novos e específicos de acordo com o material que o discurso narrativo oferece


Tânia Regina Oliveira Ramos


esboços de proust


Como a memória se processa na literatura? Toda a minha reflexão, que resultou em uma tese de doutorado em Literatura, defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), intitulada: Memórias, uma oportunidade poética, parte do princípio da capacidade humana de recuperar pela linguagem as coisas vividas e da potencialidade do imaginário de verbalizar cenas e fatos.

Assim, as memórias literárias não passam só pela autoria, por aquele que lembra, mas por um narrador que traz para o texto um somatório de experiências e essas experiências são sempre revigoradas por possibilidades líricas. A expressão da temporalidade em um texto de caráter subjetivo, comprometido com a história de quem conta, extrapola o real vivido.

Aquilo que se convencionou chamar de realidade em relação ao passado, dificilmente pode ser definido ou isolado com precisão.

Não se pode confundir a realidade com aquilo que é contado, pois as memórias escritas dão ao texto certas garantias de realidade, mas ao mesmo tempo elas se escrevem e se constroem muito mais pelas possibilidades da invenção. Se há uma permuta entre o real e o imaginário, há muito mais espaço para a fantasia.

PedroNava
O sujeito que lembra, nas memórias escritas, é um controlador da autoria, da estruturação dos fatos, mas é muito mais um manipulador da função estética, dramática e lírica de todas as suas lembranças, em torno do desdobramento do sujeito que viveu, agora, seu personagem. O autor-escritor-narrador passa a ser muito mais o sujeito do verbo das lembranças: eu me lembro, recordo bem, ou passa ser objeto direto ou indireto de pessoas, coisas e fatos lembrados, pronome possessivo ou oblíquo.

Ilustro as minhas afirmações. “Lembro-me da pena de pato com que meu avô escrevia” (José Américo de Almeida, no livro Antes que me esqueça); “Hoje, passados tantos anos, eu o recordo com carinho e com saudade. Saudade do meu gato que, aliás, não era propriamente meu, mas sim de minha família. E seria ele, realmente, da família?” (Zélia Gattai, em Anarquistas, graças a Deus); “Minha mãe lia devagar” (Graciliano Ramos, fragmento de Infância) e “Educam-me na religião católica” (Murilo Mendes, na obra A idade do serrote).

Tal subjetividade desdobrada por meio de outros sujeitos nas histórias lembradas é a garantia da coerência interna do texto. O fato de ser a primeira pessoa a estruturar a narrativa, através de verbos rememorativos, garante o presente narrativo, estruturador e selecionador das lembranças, no que se pode chamar de tutela histórica.

Por outro lado, as memórias, enquanto gênero literário, aproximam-se do romance. Cada texto inaugura traços novos e específicos de acordo com o material que o discurso narrativo oferece.

As memórias sempre trabalham esteticamente com as lembranças de um sujeito que é exclusivo. Cada texto pode ter uma estrutura temática original, às vezes mais ricos do que as autobiografias, pois o diálogo com o presente atualiza o passado, permitindo a reconstituição da vida através da linguagem, onde as lembranças não serão uma realidade, mas interpretações das coisas findas e do próprio destino pessoal. Foi isto que fizeram, por exemplo, entre tantos, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Oswald de Andrade e, antologicamente, Pedro Nava, cuja obra memorialística, nos seus seis volumes, seria suficiente para a comprovação da especificidade do gênero.

É ele, Pedro Nava, médico de profissão, quem afirma, em Círio perfeito, o que seria uma poética das memórias: “Escrever memórias é libertar-se, é fugir. Temos dois temores: a lembrança do passado e o medo do futuro. Pelo menos um, a lembrança do passado, é anulada pela catarse de passá-la para o papel”. Aqui, em seu sexto e último volume de suas memórias, complementa o que anunciara em seu texto inaugural, Baú de ossos: “Existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética”.

Tânia Regina Oliveira Ramos nasceu em Lages (SC). Doutora em Literatura, leciona e coordena o núcleo Literatura e Memória da Universidade Federal de Santa Catarina (USFC). É editora da Revista Estudos Feministas. Vive em Florianópolis (SC).