As muitas Marinas de Marina Colasanti 05/12/2017 - 12:30

A ensaísta e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marisa Lajolo analisa a trajetória da escritora que acaba de completar 80 anos, muitos dos quais dedicados ao fazer literário, que se espalha por diversos gêneros e linguagens


Livros novos, reedições, lançamentos, entrevistas, festas. Viva! Marina Colasanti faz anos e os leitores ganham presentes. Seguindo a lição de Manuel Bandeira, mafuás, novenas & cavalhadas para celebrar esta escritora que tece histórias, como linhas e agulhas tecem bordados.

O resultado são leitores enfeitiçados. Enredos e versos que os fazem visitar ora territórios insólitos de fantasia e imaginação, ora o dia a dia concreto da vida cotidiana, ora os dois ao mesmo tempo.

Mergulhar nas águas fundas da fantasia mais pura — e, por isso, radical e arrebatadora — é uma das experiências que os livros de Marina proporcionam. Através de seus textos, tal ­ vez os adultos esqueçam que não acreditam em fadas. E, esquecidos da descrença, talvez revivam o encantamento da infância. E se lembrem de que princesas, alaúdes e unicórnios povoavam as esquinas de sonhos e pesadelos.

Revivendo o encantamento, os leitores se reinventam. Ainda que por segundos. Mas vale a pena...

Num desdobramento deste universo fantástico mais tradicional que acolhe alguns textos de Marina, por vezes o insólito se transfigura e se entrelaça a situações e paisagens cotidianas, e caseiras. Num parágrafo, a imaginação campeia por linhas e entrelinhas que imergem leitores em momentos de espanto e assombro. No parágrafo seguinte, o leitor se identifica com a personagem que cruza uma grande avenida, outra que toma ônibus e aquela que empurra um carrinho de bebê.

De repente, quem lê Marina compartilha indagações a estrelas que, quando respondidas, já foram esquecidas. Ou fica conhecendo o pianista cego que não enxerga as teclas, mas vê os sons. Ou encontra o carneiro que provoca a insônia do homem ao lado da folha que nasce no vaso pintado na parede.

Nas páginas de seus muitos livros, o mundo se revela a seus leitores como enigma e mistério. Mistério e enigma que, embora indecifráveis — talvez justamente por isso? — criam um laço de solidariedade entre nossa humanidade e a (apenas?) vislumbrada compreensão (efêmera?) da alteridade das coisas e situações miúdas que nos cercam e que vivemos.

                 Kraw Penas
Marina Colasanti


Mas, talvez nada seja miúdo... Não será isso que sugerem textos de Marina?

Na vida nossa de cada dia, não nos surpreendemos que o vendedor no sinal do trânsito venda líquido para fazer bolas de sabão; ou que quem chega em casa tire a roupa do trabalho; ou que um homem tatue uma cascavel no braço. Mas... e se as bolhas de sabão estilhaçam para-brisas dos carros? E se o homem quando se despe, despe a tatuagem e a cascavel tatuada tilinta os chocalhos?

Assombro. Puro assombro.

Estes textos, percorridos por um ambiente fantástico naturalizado no dia a dia, podem fecundar o cotidiano mais trivial apontando para o além dele.

Num prosaico shopping center, um estacionamento transfigurado:

“Irmãos de raça
como os tubarões
noturna metálica pele
focinho adiantado e silêncio­
os carros deslizam vorazes
à cata de vagas
no aquário cinzento do estacionamento"1

Os cenários que desenham o fantástico nem sempre são urbanos de carros e estacionamentos. Uma paisagem de casuarinas compõe uma história em que as árvores se transfiguram:

(... )
Cinco casuarinas
à beira da estrada

Cinco ramas
cinco fadas
sobre o abismo debruçadas
cinco damas condenadas
a não sair do lugar 2

Esta presença do insólito não é novidade na obra de Marina. Ao contrário, vem de longe.

Em um de seus primeiros livros, Uma ideia toda azul (1979), claramente editado para o público infantil, Marina se antecipa a uma tendência até hoje bastante forte: o retorno às histórias de reis, castelos, torres, princesas e rainhas.

Mas mesmo as personagens que habitam estes contos mais antigos de Marina não são exatamente as mesmas das his­tórias tradicionais. São outras.

É como se, tendo lido as histórias de suas predecessoras— nos clássicos — as princesas tivessem aprendido. Aprendi­do e se modificado. Agora sábias, desmancham ponto a ponto o bordado do príncipe indesejado. 

Ou seja, esta vertente da obra de Marina — como que preparando e anunciando seus textos mais recentes — tan­to retoma temas e personagens originais, como também su­gere (com a leveza de uma varinha mágica ) a contestação desta tradição. 

Mas, ainda que contestando e renovando a tradição, a fantasia continua falando de solidão, medo, morte e amor.

Talvez por conta desta permanência e, simultaneamente,transformação, que a literatura de Marina é tão difícil de classi­ficar. Espalha­-se por diversos gêneros e vale-­se de diferentes su­portes. E por isso encanta diferentes leitores.

A Moça Tecelã
Breve história de um pequeno amor [Jabuti 2014]
Eu sei mas não devia
Passageira em trânsito


Conto e crônica

Além de poemas e contos, Marina também assina crôni­cas. Seus textos chegam regularmente a seus leitores nas páginas de jornais e revistas. E hoje, também em sites e blogs. Às vezes,depois de circularem na mídia, são recolhidos em livros, antolo­gias de crônicas, onde cada leitor pode reencontrar seus textos preferidos e revisitá-­los no tempo de seu tempo.

Crônicas são textos geralmente curtos, e muito livres. Li­bérrimos, na verdade. Podem falar de tudo. Supõem um escritor envolvido com o mundo que o cerca e para o qual arrasta seus leitores. No caso as crônicas de Marina, são muitas as páginas que falam dos mundos femininos. Outras falam de filmes, ou­tras de viagens. Outras ainda de livros e de leituras. As crônicas de Marina trazem para o nosso lado mundos vivos: de gente, de bichos e de plantas.

Qualquer que seja o assunto de suas crônicas, o resulta­do são novos olhos para olharmos o que vemos todos os dias. Por isso saímos da leitura renovados; às vezes com um sorriso nos lábios ainda que seja um sorriso leve, de surpresa e de compreensão.

Compreensão do que nos surpreendeu: 

(...) Erni e Carla Elisa acompanhados dos respectivos advogados, compareceram diante do juiz da Comarca de Can­delária , no Rio Grande do Sul, para efetivar sua separação.

O fato, tão pequeno, não teria chamado a atenção de ninguém , e muito menos ocupado espaço na imprensa em plena Rio 92, não fosse a reivindicação de Carla Elisa. Que abriu mão da pensão alimentícia e não pediu divisão dos bens,porque bens não possuíam. Mas exigiu que a foto do casa­mento fosse cortada em dois, ficando cada qual com a parte em que aparecia.3

Dentre os vários gêneros que Marina cultiva, os contos— sobretudo os mais recentes — revelam uma progressiva de­cantação de linguagem. Evitando excessos, com a linguagem restrita ao mínimo, alguns de seus contos não se estendem para além de meia dúzia de linhas. Às vezes nem tanto:

Debaixo da aba

Tirou o chapéu para cumprimentar aquela dama. E a ca­beça foi junto.4

Em dois de seus livros mais recentes — romances? — o mundo em que se movem as histórias é o mundo dos animais,tão presentes em tantas das crônicas de Marina.

Um pombo, chamado Tom, sobrevoa a Breve história de um pequeno amor: editado pela FTD, o livro ganhou o prêmio Jabuti em 2014. E em Um amigo para sempre — lançamento da mesma FTD neste ano de 2017 — um humilde pardal sem nome é um dos protagonistas da história, que se passa numa prisão. Presídio verdadeiro, que encarcerava o escritor José Luandino Vieira, pre­so por sua militância pela independência de Angola.

Nos dois livros, pássaros contracenam com pessoas que os amam e, na reciprocidade do amor, dão sentido à vida dos humanos — o narrador (no feminino) de Breve história de um pequeno amor, e o prisioneiro em Um amigo para sempre.


Marina Colasanti


Em ambas as histórias, a identificação do voo de pássaros com liberdade — tópico tradicionalíssimo na literatura — ga­nha uma contra partida no sofrimento que a partida dos pássaros, no exercício de sua liberdade, causa aos humanos que a eles se afeiçoaram.

Ou seja, nas duas histórias, o mundo animal e o mundo humano se entrelaçam. Mas apenas por curtos períodos; perío­dos de intenso significado, sim. Mas só para os humanos...

O aspecto material de ambos os livros, bem como sua fi­cha catalográfica, os identificam como “literatura infantojuve­nil”. Com certeza, eles fazem a delícia de leitura de jovens. Mas não só de jovens. De gente de todas as idades.

Por isso a literatura de Marina — como, aliás, todo bom livro de literatura — é tão difícil de classificar: para crianças ou para adultos — ou para todo mundo? Conto? Crônica? Poema em prosa?

Só sabemos que seus livros são sempre ótimos!

Livros ótimos, que se tecem por procedimentos narrati­vos densos e concentrados, o que parece constituir marca forte da literatura brasileira mais contemporânea. O máximo no mí­nimo. O eterno no instantâneo. Tanto naquilo que narra, como na forma pela qual narra o que narra.

Em entrevista recente a Maria Fernanda Rodrigues, pub­licada em O Estado de S. Paulo em 30 Setembro 2017, Marina conta de si: “A minha relação com a vida é através da escrita. O que quero é emocionar, fazer pensar, deixar coisas em aber­to, surpreender".

E, nesse seu aniversário, que seu presente seja a certeza de que seu desejo é atendido: sua literatura surpreende e emo­ciona deixando a vida de seus leitores mais aberta, iluminada!


1Poesia em 4 tempos. Global 5a. reimpres­são 2017. P. 43
2Id. P. 29
3Colasanti, M. “Até que a tesoura nos separe. Melhores crônicas. SP: Global.2016. P. 108
4Colasanti, M. Hora de alimentar serpentes. SP: Global.2013. p 289


Marisa Lajolo é ensaísta, pesquisadora, crítica literária, autora de literatura juvenil e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora colaboradora da Unicamp. Especialista na obra de Monteiro Lobato, tem uma carreira acadêmica voltada para a teoria literária e literatura brasileira. Nasceu e vive em São Paulo (SP).

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