Um Escritor na Biblioteca | João Anzanello Carrascoza 31/07/2019 - 11:09

O escritor paulista João Anzanello Carrascoza vem de uma família ligada aos livros e à fabulação. Sua mãe, que foi professora do ensino fundamental, “sempre teve um livro na mão”. O pai, um comerciante de cereais, contava histórias para os filhos antes de dormir. Não foi à toa que ele se tornou, logo cedo, um “rato de biblioteca”. “Até meus 30 anos, praticamente, comprei poucos livros. Fui um leitor de biblioteca, por isso sou muito grato por elas existirem”, diz Carrascoza, convidado do quarto encontro da temporada 2019 do projeto Um Escritor na Biblioteca, mediado pelo jornalista Yuri Al’Hanati.

Quando a modesta coleção de livros da família foi inteiramente consumida, o autor de Aos 7 e Aos 40 (2013) devorou as bibliotecas das escolas de ensino fundamental e médio em que estudou, passou pelas bibliotecas públicas de Cravinhos — onde nasceu, em 1962 — e Ribeirão Preto e desembocou nas estantes da Universidade de São Paulo, onde estudou Publicidade e Propaganda.

Foi morando na capital paulista que Carrascoza escreveu seus primeiros contos, estreou na literatura infantojuvenil (com As Flores do Lado de Baixo, lançado em 1991), participou — com sucesso — de prêmios literários e aprendeu a vender histórias no dia a dia como publicitário. “A diferença da ficção para a publicidade é só que a ficção é visceral, é tua”, afirma.

Depois de transitar pelo conto, com livros como Hotel Solidão (1994) e O Vaso Azul (1998), e abandonar a vida de publicitário, o escritor passou a se dedicar também à narrativa de fôlego. Publicou, entre outros, os romances da “Trilogia do Adeus”: Caderno de um Ausente, Menina Escrevendo Com o Pai e A Pele da Terra, todos de 2016.

      Fotos: Murilo Ribas
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Descoberta
Minha carreira literária é por conta da leitura. Me apaixonei pela literatura sendo um leitor. Isso se deu na cidade de Cravinhos, onde nasci. Minha mãe foi professora de ensino fundamental e sempre teve um livro na mão. Isso me fez pensar no significado daquele objeto para ela. Ela tinha uma estante com muitos livros, dentro do possível de uma vida doméstica. Antes de aprender a ler, eu ficava perguntando: “O que tem aí nesses livros?”. E ela falava: “Histórias”. E eu: “São histórias que quero ouvir”. E eu ouvia muito dela, do meu pai e de outras pessoas da família. Depois de aprender a ler e escrever, li todos os livros dessa pequena biblioteca da casa. Alguns eram para adultos, mais complexos, então eu não tinha muito desejo de os ler. Não tinha compreensão, não queria mergulhar naquelas águas ainda. Talvez não estivesse pronto, não soubesse nadar naqueles livros, porque eles têm várias camadas, várias superfícies. Lembro que o primeiro que peguei era uma compilação d’As Mil e Uma Noites — algumas histórias, não o livro inteiro. Ali, vi que eu podia seguir para outro universo.

Influência familiar
Meu pai contava histórias, quando éramos crianças, na hora de dormir. Fui procurar as histórias que ele contava, e não achei em nenhum lugar. Como o pai tinha descendência espanhola, pensei em procurar em livros espanhóis. Perguntei para os meus tios e parentes mais velhos, ninguém sabia. Certamente ele inventou essas histórias. Então, ao fim e ao cabo, é como se eu estivesse realizando algo que ele já vinha fazendo. Sou muito grato ao destino por isso. Tem um poema do Vinicius de Moraes que cita o poeta Clodoaldo de Moraes — era o pai dele, um poeta menor. O Vinicius disse que talvez ele tenha sido um poeta porque foi exercitar e colocar na plenitude algo que já havia no esteio da família, e que uma hora ia explodir na mão de um. Da mesma forma, acho que o meu pai já tinha feito um caminho. Depois ainda fui saber que, antes dele, o bisavô da minha mãe, que veio da Itália, andava pela cidade fazendo poemas. Sinto que vim cumprir um caminho. Isso me agrada e me faz ser muito grato, também, porque eu trabalhei para que isso acontecesse — li, estudei, escrevi. E continuo aprendendo. Atuo como professor não porque acho que tenho um saber que quero partilhar, mas porque quero aprender. Quero aprender mais.

Vínculos amorosos
Na escola onde eu estudava, no ensino fundamental, tinha uma pequena biblioteca e comecei a frequentá-la, porque não tinham mais livros em casa. Depois de dois ou três anos, li todos os livros de lá. “Pô! Não tem mais livros. Como é que eu faço?” No quarteirão de cima tinha uma escola de ensino médio, com pessoal de mais idade estudando. Não queriam me deixar entrar, porque eu era criança e não estudava lá. Acabaram abrindo uma exceção, aí comecei a frequentar o colégio. Eu era pequenininho no meio dos adolescentes bem grandes. Tinha uma bibliotecária que era estudante, devia estar no que hoje é o segundo ou terceiro ano do ensino médio, e me dava dicas de livros. Depois de tanta relação, de conversar sobre livros, me apaixonei por ela. A literatura me levou a descobrir os vínculos amorosos.

Bibliotecas públicas
Quando me tornei aluno do ensino médio, nessa mesma escola que frequentava quando ainda era criança, já tinha lido todos os livros de lá. Por sorte abriu uma biblioteca pública na cidade de Cravinhos, um espaço até razoável do lado da prefeitura. Comecei a frequentar. A bibliotecária era minha prima, então ela ligava para minha mãe e dizia: “Chegaram livros novos”. Eu tinha 16 anos e li todos os livros dessa biblioteca. Tive que ir para Ribeirão Preto, que é uma cidade próxima. Lá comecei a frequentar uma biblioteca maior. Existia uma academia de escritores, a Academia Ribeirãopretana de Letras. Eu, com meus 16 anos, falei: “Vou abrir a Academia Cravinhense de Letras”. Comecei a fazer meus primeiros textos, que eram poéticos. Entrei na literatura como um poeta. Depois de ler tudo que tinha em Ribeirão Preto, inventei a Academia Cravinhense de Letras.

Debute poético
Esse negócio de Academia Cravinhense de Letras era uma brincadeira, mas encontrei algumas pessoas na cidade que escreviam e queriam se expor. A gente se reunia uma vez por semana na casa de um dos membros. Isso durou um ano, porque depois fui para São Paulo. Nessa época eu escrevia muita poesia. Cheguei até a publicar um livro do meu próprio bolso, Coração Mudo, guardando minhas “mesadinhas”. O diretor da minha escola, que tinha prometido uma bolsa de um cursinho de Ribeirão Preto para quem tivesse o melhor desempenho, falou: “Isso é coisa rara na cidade, um sujeito estar publicando um livro”. Aí ele fez uma festa na cidade, levou a minha mãe, a professora que me alfabetizou, a minha primeira professora de português. Foi emocionante. Mas, quando fui para São Paulo, percebi que aquilo tinha sido apenas um momento.

Vestibular
Meu pai morreu num acidente de automóvel quando eu tinha 14 anos. Fiquei pensando no que ia fazer da vida. Como gostava de literatura e de escrever, procurei e encontrei. Existia a Publicidade, uma profissão na qual você podia vender por meio da palavra. Depois, descobri que podia vender por meio das histórias também — um spot de radio, um comercial de televisão. Lembro que na minha família ninguém entendia. “Por que você vai fazer publicidade?” Nem eu entendia também. Quando eu estava no segundo ano do ensino médio, um professor de Ribeirão Preto falou: “Tem um cursinho que vai dar uma bolsa para o melhor aluno que participar das aulas junto com o último ano do ensino médio”. Ganhei a bolsa, estudei para caramba naquele ano. Fiz o terceiro colegial e o cursinho. Prestei vestibular na Escola de Comunicação e Artes em São Paulo e passei. Fui descobrir se essa cidade era o que eu imaginava mesmo. Morei na casa de uma tia, irmã de meu pai. Foi um período muito bom.

São Paulo
Aos 17 anos, fui para São Paulo estudar Comunicação. Morei numa rua na frente de uma Seção Circulante da Biblioteca Mário de Andrade, então podia retirar livros, já que na principal você tinha que fazer a leitura lá. Nos primeiros cinco, seis, sete anos da minha jornada em São Paulo, como estudante universitário, li nessa biblioteca. Quando fui estudar na Universidade de São Paulo, falaram: “Tem a biblioteca da Escola de Comunicação e Artes, onde você estuda, mas tem a da Letras, Filosofia e História também”. Aí fiquei louco, virei um frequentador muito contumaz. Até depois do meu primeiro emprego, que foi numa agência de propaganda na Avenida Paulista, eu atravessava a rua e tinha o prédio — ainda existe — da Fiesp. Existia uma biblioteca ali, e tinha uma coisa fantástica: um bloco para sugestões de livros. Eu lia nos jornais — Folha de S.Paulo, Estadão — os livros que estavam saindo, sugeria e uma semana depois eles estavam lá, registrados. Até meus 30 anos, praticamente, comprei poucos livros. Fui um leitor de biblioteca, por isso sou muito grato por elas existirem.

"Alumbramento"
Praticamente todo livro que eu lia, usando um termo do Manuel Bandeira, era um “alumbramento”. Por exemplo, As Mil e Uma Noites me levava para a Pérsia, viajando com Aladim e a lâmpada maravilhosa. Não é legal você ter uma lâmpada que te oferece desejos e tal? E depois, de repente, pegava outro livro e era um Balzac, então você estava na França de um certo século, com outras situações, vivenciando outros dramas e outros tipos de histórias.

Potência literária
O livro não é uma obrigação. O livro tem que ser uma ponte para você seguir efetivamente para um universo que pode te levar a um sentimento maior, a uma compreensão maior da sua existência. Mas pode ser uma diversão, uma viagem de levezas também. O livro não precisa só te levar para pontos sombrios da sua própria individualidade. Por outro lado, pode te levar para regiões mais solares do mundo e de si mesmo.

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Primeiras histórias
Em São Paulo, comecei a escrever minhas primeiras histórias, de um jeito que não queria expor só um “eu”. Queria que esse eu estivesse circulando por uma narrativa. Escrevi dois ou três contos curtos. Existiam muitos concursos de contos na época. Entrei num que era da cidade de Bauru, ali na minha região. Recebi a notícia da vitória por um telegrama. Aí fui para Bauru. Era um concurso em que você ganhava dinheiro e eles publicavam um livro junto com outros textos classificados. O júri foi composto por importantes acadêmicos e escritores — Ricardo Ramos, filho do Graciliano, a contista Márcia Denser, o Caio Porfírio Carneiro.

Prêmios em Curitiba
Depois de publicar o livro infantil As Flores do Lado de Baixo [1991], fiz uma oficina de literatura com o João Silvério Trevisan. Ele me orientou: “Você precisa de um projeto. Não tem que ficar fazendo conto avulso”. Então escrevi um livro de contos mais coeso, com narrativas que tinham ligação entre si, e o inscrevi no Concurso de Contos do Paraná, nos anos 1990. Venci com o livro Hotel Solidão, que inclusive foi publicado pela Biblioteca Pública. Tenho uma história muito feliz com Curitiba. Dois anos depois, voltei à cidade por causa de um concurso de literatura infantil. Eu tinha escrito De Papo com a Noite e mandei para esse concurso. Também venci. Pensei: “Curitiba é a cidade!”.

Para crianças
Uma pessoa que trabalhava comigo numa agência de publicidade, em São Paulo, me falou: “Por que você não vai numa escola contar histórias?”. Não aceitei a princípio, porque tem toda uma dinâmica para se contar histórias e eu era somente escritor, mas acabei indo. As pessoas gostaram e me pediram para voltar. Não queria voltar para contar histórias que não eram minhas, então escrevi uma, As Flores do Lado de Baixo, e fui contá-la. Tinha uma pessoa de livraria nesta leitura que me falou: “Faço feiras de livros em escolas, conheço todas as editoras e a sua história é muito legal. Você não quer me dar uma xerox? Quero mandar para umas editoras”. Um dia recebi uma carta da Melhoramentos, que era do Ziraldo, querendo publicar minha história. Então publiquei um livro infantil antes dos contos que já tinha escrito.

Romances juvenis
Antes de publicar Aos 7 e aos 40, que é considerado um romance adulto, eu tinha publicado quatro romances para jovens. Um deles é o Ladrões de Histórias, lançado há mais de uma década, antes dessa viagem da internet, que era meio como O Jogo da Amarelinha [de Julio Cortázar]. Você ia terminando os capítulos e tinha duas ou três opções para escolher como continuar. Então, por progressão aritmética, tinham 70 leituras diferentes do livro. Depois, publiquei O Jogo Secreto dos Alquimistas e A Lua do Futuro, que tinham um caminho mais tradicional, mais linear. Mas ninguém lembra.

Drummond
No colégio de ensino médio, onde eu pegava livros quando ainda era criança, achei um que foi iluminador — As Impurezas do Branco, do Carlos Drummond de Andrade. Não é um livro maior do Drummond, mas foi publicado nos anos 1970, por aí, e começava com um texto chamado “Ao Deus da Comunicação”. Ele vai falando sobre o dia que começa, escreve comunicação com “k”, de um jeito totalmente diferente, e vai trazendo o que acontece num dia, mostrando as diferenças e as incomunicabilidades humanas. Pensei: “Mas pode fazer um poema assim, que não tem rima, que o cara fala o que quiser? E que, ao mesmo tempo, traz assuntos meio prosaicos?”. Só depois fui entender que o Drummond fazia o jogo de uma voz elevada com uma voz mais do mundo da superfície, da lírica cotidiana. Esse livro me deslumbrou. Percebi que podia fazer literatura daquele jeito, e fui buscar outros livros do Drummond.

Raduan Nassar
Outro livro que foi uma luz para alguém da minha idade é Um Copo de Cólera, do Raduan Nassar. É um livro que tem uma prosa lírica, mistura o lírico com o épico. Foi outro alumbramento. Acho que esses livros, do Drummond e do Raduan, foram pautando um pouco o meu caminho. No tipo de história que escrevo, estou sempre preocupado com a linguagem. Ela pode dizer, iluminar, embelezar. Aprendi isso com o Raduan, que dizia: “Você vai usar uma metáfora para dizer algo mais rápido e mais bonito? Senão não precisa da metáfora”. Aí você acaba saindo do documental, do puro registro óbvio, para buscar uma palavra, um jeito, uma analogia, uma comparação.

Publicidade
Aprendi muito no dia a dia da publicidade. Tinha que fazer textos de dez linhas, anúncios de mídia impressa, escrever histórias para televisão. Escrevi muitos roteiros, fiz muitos filmes publicitários — tinha que ter personagens, contar histórias, e isso tem que acontecer muito rapidamente. Tem uma questão pragmática aí. Quando a gente escreve uma história, ela tem um porquê, uma demanda nossa. A diferença da ficção para a publicidade é só que ela é visceral, é tua. Como redador publicitário, ela é de outro. Você se coloca na posição de ser a voz desse outro, já que ele não consegue trabalhar com a linguagem da mesma forma que você. 

Estado de espírito
Embora gostasse de ler prosa, eu era um sujeito muito voltado para as questões íntimas. Isso aparece muito na literatura que faço, que é mais direcionada para a vida interior, para os laços afetivos, para as relações entre as pessoas, e não muito para a vida exterior, embora também traga toda uma substância social. São sempre histórias voltadas muito para o homem, seus embates com o tempo, a relação com o outro, e esse sujeito acaba precisando se posicionar diante do mundo, apesar da sua solidão, da máquina do mundo que ele não compreende direito. Então a poesia se tornou algo muito mais próximo do meu estado de espírito. Quando vou escrever uma história busco ritmos, como se estivesse vindo uma música, para compor a narrativa em si. Acho que isso vem do mundo da poesia.

Obra constituída
O Fernando Paixão, que foi meu amigo e um dos editores da Ática, me disse: “Você tem que fazer o seu livro circular. Tem que mandar para os escritores, para os críticos, para os jornais”. Eu não sabia como fazer isso, então ele me passou o nome de várias pessoas. Uma dessas se chamava Raduan Nassar. Eu tinha lido Um Copo de Cólera e Lavoura Arcaica. Um dia ele me ligou: “Recebi seu livro. Gostei muito. Encontrei consonâncias com o mundo que eu gosto, que tem o lírico, que tem a prosa. Consigo reconhecer o interior de São Paulo aqui”. Ele me convidou para ir à casa dele tomar um café e me falou dos contos, o que tinha gostado e tal. Nessa época eu já tinha acabado a oficina com o João Silvério e escrevi O Vaso Azul — até o dediquei para o Raduan, que foi meu leitor crítico. Olha que sorte, né? Depois desse livro, segui publicando uma variação entre o conto e a literatura infantojuvenil. Quando vi, já tinha uma obra constituída — ainda em progresso, obviamente, mas já com certa regularidade. Aí outras editoras começaram a ter interesse. Publiquei os livros de contos Duas Tardes, Dias Raros, A Vida Naquela Hora, Amores Mínimos, Espinhos e Alfinetes. Depois, por uma demanda mais íntima, vieram os romances. Saí da agência de propaganda em 2008, há pouco mais de dez anos, e quis me dedicar à narrativa longa.

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Método
Gosto sempre de fazer os capítulos com um núcleo narrativo, de modo que também possam ser lidos independentemente. Talvez este seja um defeito do meu lado contista, mas me interessa você ler só aquela parte. Quero que o leitor saia dizendo: “Estou lendo alguém, não estou lendo algo, um pedaço de alguma coisa. Estou lendo um texto que sai para outros universos, para outros vetores. Mas consigo perceber que ele tem uma densidade por si mesmo, que posso descer em camadas”. Os romances foram vindo desse jeito.

Aos 7 e aos 40
Me impus o objetivo de fazer uma história mais longa quando fui escrever Aos 7 e aos 40. Boa parte do que a gente faz na literatura é uma resposta à nossa posição de leitor — no meu caso, pelo menos, é. Sou aficionado pela obra do Graciliano Ramos, com ênfase em Vidas Secas. Quem conhece sabe que é um romance mal suturado, um monte de contos. O próprio Antonio Candido diz que o livro é uma rosácea, porque tem pétalas. Não é uma história linear, tradicional. Para mim, foi um modelo. Pensei que gostaria de fazer um livro em que cada capítulo fosse encerrado em si mesmo, mas também tivesse comunicação com os demais. Que irrigasse. Fosse um rio de histórias, não um único rio com uma única história. Aí eu pensei nessa história: uma de encanto, aos 7 anos, e o desencanto dos 40, que era uma época que eu estava vivendo. É como se fossem dois modelos, arcos reflexos que dialogam e com mudanças de foco narrativo do mesmo sujeito.

Tema
O tema não é uma bandeja que passa e você fala: “Ah! Vou pegar esse aqui”. Você é o tema. Você tem uma história. A Hannah Arendt dizia que cada um de nós tem uma história para contar, e vai ser essa história que a gente vai contar a vida inteira. É curioso que, quando você vai escrevendo muito, parece que você muda os personagens, mas no fundo tem um núcleo narrativo — a mesma história. A sua existência é para contar aquela história, porque existem outros que vão contar outras histórias e isso vai trazer a pluralidade. Você tem que se refinar, tem que buscar mais fundo ainda e tentar se aproximar dessa história. O fato de você não executá-la da forma que imaginava o leva a fazer de novo. É por isso que a gente continua escrevendo. No dia em que você ficar satisfeito com uma história, não tem mais por que escrever.

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Sentimento essencial
Não consigo escrever nada sem estar tocado. É preciso estar afetado pelo mundo ou por alguma situação, sentimento, som, aroma, alguma visão. Às vezes, alguma frase. Você tem que estar tomado, possuído. No romance isso tem que estar potente o tempo todo. No Caderno de um Ausente, por exemplo, um pai dá as boas-vindas para uma filha que vem ao mundo. É algo de muita responsabilidade, porque você está dando a morte também. É toda uma experiência de contentamento, desencanto, alegria, descobertas. É o encontro profundo com a condição humana. Se eu não estiver tocado, prefiro nem escrever. Agora, é claro que depois disso há todo um processo de atuação com a razão. A literatura é a reconstrução racional de uma emoção. É preciso ter uma escolha lexical, musicalidade, o nome dos personagens — tudo isso passa pela razão, pelo intelecto. Mas, sem o impulso de uma paixão, que pode vir da intranquilidade, da falta de calmaria, da dor, de peso e sofrimento, não dá para ir adiante.

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