CRÔNICA | Os carrosséis 05/05/2025 - 09:51
por Luís Henrique Pellanda
1
O domingo amanhece e me encontra às margens do tanque do Passeio Público. São sete horas, e este será o último raio de sol do dia. Logo o céu estará fechado. Pode ser que chova, conferi a previsão do tempo antes de sair de casa, mas nem por isso os atletas faltarão com seu dever. Vieram todos, estão aqui. Caminho no contrafluxo dos corredores. Nunca trocam olhares comigo. Passam por mim ofegando, com ou sem fones de ouvido, conectados a uma linha de chegada que só eles podem divisar. Dentro de cada corredor há uma calculadora desgovernada, que nunca deixa de fazer contas. Quantas voltas me faltam. Quantos quilômetros já percorri. Quantas calorias queimei. Quantos gramas perdi. Quantos anos de vida ganhei. Quanta saúde, quantas chances, quanto amor me está reservado. O olhar dos corredores, aquele que nunca cruza com o nosso, tão bonito em sua eterna expressão de esforço, é sempre um olhar de desejo.
2
Os moradores de rua vêm chegando. Carregam suas camas de papelão e as espalham pelo parque, por seus locais de predileção e descanso. Depois se reúnem todos perto das jandaias e dos guarás, cumprimentam-se, discutem uma agenda incompreensível, desembolam notas de dez reais, juntam trocados, organizam rateios, tossem e escarram, xingam-se, abraçam-se, acusam-se, dividem o líquido amarelado que um deles trouxe numa garrafa pet. Ninguém mais se escandaliza com os despossuídos. Só se, de repente, começassem, também eles, a correr ao redor do parque, pela pista de asfalto, misturando-se aos atletas. Uma corrida de mendigos, isso sim seria um escândalo, um caso de polícia.
3
Tampouco as prostitutas daqui pensariam em correr. Apesar de calçarem tênis de corrida. As prostitutas do Passeio nunca usam salto alto. E nem poderiam. Estão exaustas. No máximo se mantêm de pé, escoradas na cerca ao redor de uma gaiola, ou no corrimão da rampa de acesso ao banheiro público. Uma delas cruza comigo, justo quando passamos por uma ponte. Ela me avalia da cabeça aos pés (também uso tênis de corrida). Acostumado àquela rotina, já espero pelo convite usual: Vamos? Mas não. O convite não vem. A mulher não se interessa por mim. Será que me despreza enquanto cliente? Ou será que me desdenha enquanto homem? E haverá diferença?
4
Também vem chegando ao Passeio aquela velha romaria de homens solitários que, na verdade, apesar de parecerem sempre os mesmos, se renovam dia após dia. Carregam mochilas de náilon estufadas, as alças descosturando-se, zíperes estourados, malas de viagem com rodinhas parcialmente travadas, que guincham como ratos. Pois esses homens aparecem, escolhem um banco e nele se abandonam ao tempo. Esperam. Pelo quê? Terão acabado de chegar à cidade? Vêm da rodoviária ou do Guadalupe? Terão algum compromisso marcado? Um encontro com um amigo, um parente, um conterrâneo de coração aberto que aqui se estabeleceu um ano atrás e que supostamente os acolherá em seu quartinho de pensão? Ou será que acabaram de sair de casa, abandonaram uma mãe idosa, uma esposa doente, uma família disfuncional, os filhos que os enchiam de vergonha? Será que avaliam a possibilidade de, a partir deste exato domingo, passarem, quem sabe, a dormir na rua? A malinha a tiracolo é a única coisa que ainda os liga a um passado mais ou menos decente de cidadão convencional, trabalhador relutante, pai ausente, menino sonhador. Um desses homens, ainda tão moço, me comove, posta-se diante da ilha dos macacos-aranha. Não se mexe. Observa os pulos de cada macaco, de um a outro galho. Eles se espreguiçam, se alongam, e pulam, pulam, pulam. Não sei se o moço nota, no entanto, que também é observado. Por mim e por um dos macacos, apenas um, que também se mantém imóvel, em pose contemplativa, e o investiga profundamente. Lança a ele um olhar de inteligência por sobre as águas escuras do tanque. Depois olha para mim e me encara do mesmo modo. Eu devolvo o olhar. E o sustento. Ao contrário do que acontece entre nós, humanos, é fácil encarar animais. Não sei o que o macaco pensa de mim ou deste moço calado que ambos observamos e cuja vida coube toda numa mala de bordo, mas de repente tenho uma certeza: o macaco já nos desvendou.
5
Num banco de madeira, encontro uma grande bíblia aberta. Suas margens são de ouro, mas de um dourado que não reluz. A bíblia está à sombra de um plátano, debaixo de um céu já carregado de nuvens, duplamente obscurecida. Me abaixo para lê-la, mas não tenho coragem de tocá-la. É uma arapuca, eu sei. Alguém a armou ontem à noite, na esperança de capturar os miseráveis que passeiam por entre estas árvores de manhã, recém-saídos de mais uma noite infernal. Se eu tocar nesta bíblia, sinto que ela se fechará sobre minha mão, prendendo-a entre suas páginas, como uma ratoeira faria com um ladrãozinho de queijo. Me aproximo, portanto, com prudência. Está aberta nos Salmos 91, 92, 93 e 94. Sussurro o primeiro versículo que me aparece diante dos olhos: Até quando os ímpios, Senhor, saltarão de prazer? Ao longe, um trovão ecoa a dúvida do salmista.
6
Um grande grupo de jovens tatuados, de cabelos coloridos, dispersou-se pelo parque. Procuram algo no oco das corticeiras e dos jacarandás, por entre as raízes das tipuanas e sibipirunas. Buscam frutos invisíveis na copa de árvores que jamais darão frutos. Vasculham as frondes das samambaias, os densos tapetes de hera, os vãos entre as rochas à beira dos cursos d’água. Estão ansiosos. Parecem gincaneiros, mas não vestem uniformes. Não creio que estejam procurando ovos de Páscoa, ainda estamos na Quaresma. Um rapaz forte, bem vestido, ostentando um moicano curto, empunha uma vara. Com ela, faz a varredura dos canteiros de cravos-de-defunto. Descuidado, pisoteia as flores. Sentado numa mesa de dominó, um mendigo se vira para mim e diz: Que cara idiota. Trocamos meios-sorrisos e meneios de cabeça. O cara idiota continua a bater com a vara nos cravos-de-defunto, decerto procurando algum tesouro que lhe compense tamanha idiotice. Tudo que consegue, porém, é desalojar, do canteiro dourado, uma ratazana revoltada. Ele, é claro, nem a percebe.
7
O carrossel do Passeio Público foi desmontado recentemente. Em seu lugar restou essa imensa clareira de pedrinhas brancas. Vou até o centro dela. Me posiciono sobre o quadradinho de concreto onde se erguia o eixo do carrossel. Penso em todas as crianças que já orbitaram aquele ponto ocupado, agora, pelo meu corpo. Penso inclusive nas minhas filhas, que também já brincaram no carrossel desaparecido. Penso, enfim, em todas elas, girando simultaneamente ao meu redor. E nos atletas dando voltas e mais voltas na pista do Passeio. E no trânsito que delimita o parque, nos veículos que circulam pelas ruas em torno dele, em todas as pessoas dentro de cada veículo, na circulação sanguínea de cada pessoa. E finalmente penso em mim, plantado no centro alucinatório do meu mundo.
8
Ouço mais um trovão e me lembro de Walt Disney. Assim como eu, ele tinha duas filhas. Era um homem muito ocupado, mas de vez em quando dava um jeito de levá-las ao Griffith Park, em Los Angeles, onde brincavam no carrossel de lá. Disney se acomodava num banco de praça, ao lado do brinquedo. Comia amendoins e se perdia em divagações. Sei como ele se sentia. Consigo me pôr em seu lugar. Vejo suas filhas girando diante de mim, para cima e para baixo. Uma, duas, dez vezes seguidas. Perseguem-se em frente ao pai, uma à outra, inutilmente, sem nunca se alcançarem. Observo as meninas e aqueles seus cavalinhos fixos, que jamais mudam realmente de posição, apenas sobem e descem, vão e voltam, incapazes de empreender uma única ultrapassagem. Olho para o carrossel e encho a boca de amendoins. Mastigo. Nem as crianças, nem os cavalinhos se movem. Quem os move, eu sei, todos sabem, é a máquina a que estão atrelados. Mastigo. Engulo. Começa a chover. Limpo os dentes com a língua, me levanto do banco, apanho minhas filhas na saída do carrossel. Agradeço ao operador do brinquedo. E tomo a decisão que mudará tudo: vou construir a Disneylândia.
Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba, em 1973. É escritor e jornalista, autor dos livros O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos, Na barriga do lobo, O caçador chegou tarde e A crônica não mata. Também organizou a antologia de crônicas inéditas de Carlos Drummond de Andrade A intensa palavra.