POESIA | Trechos inéditos do livro "Espero pelo fim desde o início", de Ricardo Corona 05/05/2025 - 09:27

 

Poetas como vermes: fazedores de mundo

por Carlos Augusto Lima

 

Um punhado de animais que odiamos e tememos (ou aprendemos a fazê-lo), tais como vermes, larvas, colêmbolos, gorgulhos, piolhos-de-cobra, embuás; recicladores como fungos, ácaros e bactérias, donos do nosso pavor, a maioria seres ctônicos, que vem do grego antigo khthonios, da “terra”, e de khthôn, “terra”. Seres submersos, das profundezas, por isso, incontroláveis, já que a mitologia atribui ao homem o domínio de tudo que está sobre a terra, e não fala dos que estão sob. Debaixo dela é a profundeza, a obscuridade e o demoníaco. Seres ctônicos, por sua vez, são “fazedores de mundo”. Se alimentam dos restos de corpos, da matéria putrefeita, e nenhum miasma prejudicial à saúde se perpetua, nenhum cheiro pernicioso. E dessa matéria apodrecida que se alimentam, processam e excretam substâncias vitais para o solo, lugar onde vivem. Sem eles, não há terra, agricultura, comida.
Alguns poetas são como seres ctônicos. Calados, submersos no seu particular de projeto e mundo, recolhem aquilo que ninguém quer mais ler, o desimportante e resto onde se alimentam aqui e ali. Nas profundezas, ignoram a instrumentalização fácil de vozes que descambam para o folclórico e engendram a particularização hostil, em vez do acesso comum. Isso nem importa. Outra coisa importa. Ir mais fundo, cavucar a palavra, “roçar carapaças// de moluscos e crustáceos/ (...)” ou “(...) declarar os erros joias raras (...)”. Que seja. Desses raros, faz parte Ricardo Corona, hoje morador da mata, que ouve o inaudível da mata, vê o que não se mostra, busca refúgio nos restos de refúgios de um planeta perturbado, de um corpo perturbado, um coração perturbado e necrosado, quase poético esse dito. À noite, da varanda, Ricardo vê os últimos vaga-lumes e os imagina coquetéis molotov ainda, sonhando com bancos que “explodem pelos ares”. Dos últimos e raros poetas que acreditam na imaginação, comedor de um mundo apodrecido, que o renovam excretando lampejos rutilantes, esperando por esse fim desde o começo, apostando no “planeta/ enfim/ em breve/ sem nós/ nave mais viva// será a poesia/ que não/ vivemos”. 

 

 

Carlos Augusto Lima nasceu em Fortaleza, em 1973. É autor, entre outros, do manual de acrobacias n.1 (Ed. da Vila/Ed. da Casa, 2008), O Livro da Espera (Alpharrábio, 2011), Três poemas do lugar (La Barca, 2011) e Motociclista do globo da morte (1973 Edições, 2016). Publicou, ainda, dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui, em parceria com Tarso de Melo, pela Luna Parque (2018).  Depois vieram O livro de Carolina (7Letras, 2019) e A medida da luz (Alpharrábio, 2019).

 

O MUNDO ESTÁ CHEIO

 

tem mais poemas
do que pessoas
no mundo


mais pessoas
que nunca leram um poema
enchem o mundo


o mundo está cheio
de poesia
que o mundo viverá


quando
não vivermos
mais no mundo


o mundo
está cheio
de poesia


o mundo
está cheio
de nós

DUAL

 

tem uma
moeda
pro almoço
aí dentro
do mundo?

obrigado
deus lhe pague
que o mundo
aqui fora
mói dói

TÁ VIVA A LETRA

 

Dita, a palavra é Inês morta?
Imagina…
É aí que ela nasce e luta
feito uma menina.

 

Tradução-mutação do poema A word is dead / When it is said, / Some say. // I say it just / Begins to live / That day, de Emily Dickinson. O poema tem mais de 20 versões para o português e quis participar com a minha versão. O título é de Jardelina da Silva (1929-2004), artista popular que viveu em Bela Vista do Paraíso, no norte do Paraná.

 

MUNDO MÃE

 

Embora o mundo ande estranho,
girando silenciosamente pra fora do sonho,
em uma rota íntima que nos intima pela crença
e nota rítmica do princípio, meio
e fim.


Embora a ideia de que esse poderá ser o tempo do descarrilamento,
mesmo assim,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Embora andemos ordinariamente alheios e em transe.
Na zanga, na frieza, na euforia, no contentamento,
no trânsito, no atraso, no tumulto,
no olho no olho, na bílis, na benção, na delicadeza,
no dente por dente, no aperto, no apelo, no nó do peito,
no desespero, no apego, na aspereza,
ainda assim,
mais ainda,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Embora a ogiva, o ódio,
a ojeriza, a animosidade, a miudeza, a violência, a avareza
e tudo o mais
que é menos
e nos subtrai.
Por isso mesmo,
muito mais,
mais ainda,
eu peço,
mundo, seja mãe.
Apesar do insolúvel, do insensível, do intolerável,
do medo, da falta de razão, da mentira,
do míssil, da fome, da paranoia,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Apesar da ração diária da notícia que nos assombra e anestesia,
mesmo assim,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Pra fora, pro alto, introspectivamente.
No peito, na mente, individualmente, coletivamente,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Com quem e onde estiver,
com anônimos, amigos, parceiros, inimigos,
contidos, declarados, demasiados, posicionados,
no mundo da lua, no mundo real, na realidade virtual,
eu peço,
mundo, seja mãe.


Seja como for, vai,
por favor,
eu peço,
mundo, seja mãe.

 

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Corona nasceu em Pato Branco (PR), em 1962. Poeta e editor, atua nas áreas de tradução, poesia, poesia sonora, publicação de artista, edição, performance, ensaio e curadoria de literatura e artes visuais. É vencedor dos prêmios Reconhecimento de Trajetória (2020), Outras Palavras (2020) e finalista do Prêmio Jabuti (2012). É autor dos livros Cinemaginário (1999), Tortografia, com Eliana Borges (2003), Corpo sutil (2005) Curare (2011), Ahn? [Abominável homem das neves] (2012), Mandrágora (2016), Morada do vazio (2023) e Nuvens de bolso (2023).