ESPECIAL CAPA | Tradução literária: falando a sua língua para fazer a sua cabeça 08/05/2025 - 15:40
Por Isa Honório
"Eu não gosto de falar 'original". A tradução é um original também", opina Daniel Pellizzari. O tradutor e escritor, conhecido por seus trabalhos com literatura alternativa, é do tipo que traduz as entrelinhas. Para ele, toda essa originalidade da tradução vem da capacidade de transmitir não só a mensagem, mas também a voz do autor, suas intenções e o clima da história. O que Trainspotting (1994), de Irvine Welsh; Almoço Nu (1959), de William S. Burroughs; e Medo e Delírio em Las Vegas (1971), de Hunter S. Thompson, têm em comum? Fora o fato de serem clássicos da literatura entorpecente e experimental, todos foram traduzidos para o português por Daniel. São autores cheios de personalidade, e livros que inauguraram suas próprias linguagens. Ou seja, é um trampo.
O gosto pelo desafio – e pela angústia do processo – parece fazer parte do ofício. "A tradução só é legal para quem faz. Para quem vê de fora é só um cara sentado em uma sala sofrendo", conta Pellizzari. Assim como ele, Paulo Henriques Britto, tradutor e poeta que já está nessa há 50 anos, admite: "Nenhuma criança diz que quer ser tradutora quando crescer". Para os dois, a tradução apareceu aos poucos, unindo a afinidade com a língua inglesa e a paixão pela literatura. No caso de Paulo, o que chamou mais a atenção foi a poesia, que com menos palavras, exige ainda mais cuidado: "A tradução de poesia é uma tradução literária elevada à última potência, porque além de levar em conta todas as questões como sintaxe, ritmo e vocabulário, também tem as questões formais de versificação, métrica, rima".
Não tem outro jeito. É ficar na frente da tela encarando o texto por horas e horas. Pode ser cansativo, mas o resultado faz o esforço valer. Para a tradutora e professora de árabe da Universidade de São Paulo (USP), Safa Jubran, a tradução é uma missão pessoal. Nascida no Líbano, ela continuou vivendo sua língua materna através da leitura e sentia falta de autores árabes no cenário editorial brasileiro. A vontade de traduzir títulos clássicos e modernos para o português, sem o uso de línguas intermediárias, impulsionou seu trabalho. Em parceria com a editora Tabla, que publica autores do Oriente Médio no Brasil, Safa foi responsável por traduzir diversos títulos do mundo árabe. "Estou me dedicando à literatura contemporânea, porque acho que é o que falta no momento. Eu sei que talvez não seja muito, mas eu consegui disponibilizar algumas obras. Há dez anos não tinha quase nada", diz.
No único país lusófono do continente e que concentra cerca de 214 dos 260 milhões dos falantes de português, conforme dados do Instituto Camões, traduzir é preciso. Machado de Assis, Clarice Lispector, Augusto e Haroldo de Campos e Paulo Leminski são alguns dos que se arriscaram nessa tarefa. Haroldo foi, além de ícone da poesia concretista, o criador do termo "transcriação", uma forma de tradução que busca preservar a forma e o sentido. A ideia não é apenas tornar a obra legível para o leitor de outro idioma, mas também fazer com que o seu conteúdo seja relevante em outro contexto cultural.
Tradução x traição
E assim como os autores, cada tradutor tem um estilo. Pellizzari conta que mesmo antes de entrar no mercado da tradução, em 2003, já estava louco para trazer para o Brasil Trainspotting (1993), o cult escocês que fez sucesso em sua adaptação para o cinema dirigida por Danny Boyle. O livro é escrito parte em inglês formal, parte em scots, uma variedade linguística falada em algumas regiões da Escócia. Além disso, o uso pesado de gírias e expressões regionais e a troca frenética de narradores tornavam essa tarefa complicada. Quando Pellizzari e seu amigo-tradutor, Daniel Galera, ficaram sabendo que a editora Rocco tinha comprado os direitos do livro, a dupla caiu em cima e conseguiu o trabalho, que conquistou de cara a aprovação dos fãs e críticos.
"A trilogia Trainspotting é escrita com code switching, com falas formais ou informais. Foi muito divertido pensar em como recriar esse monte de registros diferentes em língua portuguesa brasileira de um jeito que parecesse uma coisa coloquial, mas que não seja de lugar nenhum, que não seja o Trainspotting gaúcho, paulistano ou carioca. Cada pessoa que lia achava que era de um lugar", conta. Ao mesmo tempo, o tradutor de primeira viagem produziu a versão em português de Almoço Nu, clássico romance da geração beatnik. "Foi legal por um lado, mas foi um pesadelo por outro, porque eu fiquei com a fama de ser alguém para passar os livros complicados".
O começo para Paulo Henriques Britto também foi meio caótico. Hoje, com 131 livros publicados, se tornou professor de tradução na PUC-Rio aos 26 anos, antes mesmo de se formar. Começou em 1987 na recém‐fundada Companhia das Letras e deu sorte. Seu primeiro livro, Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson, foi best-seller. Paulo trabalha com a editora até hoje e se tornou referência na área, assinando a tradução de obras de Henry James, William Faulkner, Elizabeth Bishop e Lord Byron.
O método de Paulo é prático: "O mais importante é o texto funcionar tal como o original. Se um texto é simples, a tradução tem que ser simples. Isso parece uma obviedade, mas não é". Britto fala com conhecimento. Em uma boa tradução, a experiência do leitor é tudo. Para Safa Jubran, o trabalho do tradutor literário é mais semelhante ao processo artístico do autor do que parece: "O tradutor é o escritor daquela obra nesta língua. Não só nessa língua, mas nessa cultura. Você precisa ser tão criativo quanto o escritor, até mais. Há obras que são melhor traduzidas do que no original. O processo criativo precisa de um estado de espírito pronto para isso".
Jubran também organiza o grupo de pesquisa Tarjama, sobre tradução árabe-português. Pesquisadora do assunto desde 1992, ela lembra que a dúvida eterna dos tradutores é em relação ao quanto de liberdade tomar no texto: "Há uma célebre frase que diz, em italiano 'tradutore, traitore' [tradutor, traidor]. Não se pode traduzir palavra por palavra, exatamente como um tradutor eletrônico. Você tem que entrar no texto, pedir licença e dizer 'agora você é meu". E para traduzir, você precisa ser traidor mesmo, e se sentir livre dentro do texto". Ela completa: "Sua tarefa é de desconstruir, com a finalidade de reconstruir. Tradução é esta arte, e tradutor é este artista".
Começa pedindo licença, e depois, vira aquela visita que já chega se sentindo em casa. E para curtir essa liberdade, Pellizzari fala também como escritor quando conta que prefere a distância do autor durante a tradução: "As minhas coisas que foram traduzidas para línguas que eu consigo ler, eu prefiro nem opinar muito. Eu não acho isso legal, deixa o tradutor. Têm tradutores que gostam de trabalhar junto com o autor quando ele é vivo, e mandar dúvidas. Eu nunca consultei um autor vivo, morto também não".
Já Safa e Paulo são do tipo que preferem a guarda compartilhada do texto. Faz parte da rotina trocar e-mails com o autor. A tradutora fez a versão em árabe de Dois Irmãos (2000), de Milton Hatoum, a convite do próprio autor e lembra: "Como esse livro de Milton é repleto de referências regionais, eu tive que pesquisar muito e sempre perguntava a ele. Posso dizer que a confiança que o Milton depositou em mim foi o que me levou a enfrentar outros textos mais tarde". Quando Henriques Britto traduziu seu livro mais difícil, O Arco-Íris da Gravidade (1973), de Thomas Pynchon, conversar com o autor também foi essencial.
Será que paga bem?
O ofício exige amplo conhecimento das línguas de partida e de chegada, repertório cultural e longas horas de trabalho, mas será que paga bem? Paulo Henriques Britto responde: "Dá para viver, mas daí você tem que trabalhar como um animal". Tanto os tradutores quanto as editoras sabem que quando o assunto é remuneração, aparecem dois problemas: os direitos autorais e o valor recebido por página traduzida. No Brasil, não existe nenhuma legislação que obrigue as editoras a pagarem royalties para o tradutor, e é difícil encontrar margem para negociação: "Esse é um problema velhíssimo. Eu comecei a trabalhar com tradução e já existia esse problema", conta Paulo. Somente após muitos anos de casa, o tradutor conseguiu um acordo com a Companhia das Letras: "Quando o autor já está em domínio público, como é o caso de Henry James, aí eu entro como autor e recebo os 10%. Quando o autor não está em domínio público aí não tem jeito, só sou pago por tarefa", diz.
Em editoras menores, a coisa pode ser um pouco diferente. A Tabla, por exemplo, trabalha com royalties para a tradução em casos de vendas especiais. Já nas curitibanas Arte & Letra e Telaranha, os tradutores recebem por serviço, sem porcentagem da venda dos livros. A Telaranha acaba de lançar seu primeiro título traduzido, Eu, de um Acidente ou de Amor (2025), de Loïc Demey, com tradução de Ronie Rodrigues e Sylvain Bureau, e a editora Bárbara Tanaka explica: "A gente não pagou royalties, porque precisamos pagá-los para o autor. Temos um contrato com a editora francesa em que pagamos uma porcentagem pelos direitos autorais, e para o tradutor pagamos por serviço, em uma média maior que a do mercado". Para se ter uma ideia, o valor de referência por página estabelecido pelo Sindicato Nacional dos Tradutores (Sintra) é de R$43,02 para textos traduzidos de uma língua estrangeira para o português, e R$58,07 para os traduzidos do português para línguas estrangeiras.
De acordo com Ana Beatriz Dinucci, presidente do Sintra, além da briga pela garantia legal dos direitos autorais para o tradutor, como já acontece na França, os profissionais também enfrentam outros problemas, como a ausência da categoria no sistema de Microempreendedor Individual (MEI), o que gera uma alta na tributação da atividade de tradução. Outra demanda é por reconhecimento: "Há muitos anos era comum ver livros publicados sem nenhuma referência ao tradutor. Com o tempo, algumas editoras começaram a colocar o nome do tradutor na capa, isso é bem legal", explica Ana Beatriz.
Aos poucos, a conta não fecha. Como a atividade demanda tempo e esforço, e o faturamento e reconhecimento são baixos, muitos profissionais são obrigados a deixar a tradução de lado: "Faz muitos anos que eu já não vivo mais de tradução, mas enquanto eu vivia era muito complicado, porque tradução literária não paga muito. Quando eu tive filhos ficou um pouco inviável, e eu tive que ir abandonando, não só a tradução literária, mas também os livros mais complexos. Seria muito legal viver de tradução, mas isso quase ninguém faz", desabafa Daniel Pellizzari.
Isa Honório (São José dos Campos∕SP, 2002) é formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Repórter do jornal Cândido, também é escritora e compositora. Na literatura, curte dos beatniks ao jornalismo gonzo. Na música, rock' n' roll à cumbia.