PENSATA | Eustace Tilley comemora 100 anos 06/05/2025 - 11:48

Por Cintia S. da Conceição

 

Um homem branco de cartola com semblante plácido, nariz empinado e olhos semicerrados voltados para uma borboleta, a qual ele olha através do monóculo. Se chama Eustace Tilley e comemora 100 anos em 2025, junto com a revista The New Yorker.

 

Capa da primeira edição da The New Yorker
Capa da primeira edição da The New Yorker

 

Tilley foi uma criação de Rea Irvin, artista gráfico e cartunista americano, e se tornou uma espécie de mascote da revista idealizada pelos jovens jornalistas Harold Ross e Jane Grant – sim, havia uma mulher na fundação da The New Yorker – que se conheceram enquanto ambos trabalhavam em Paris.

A revista lançada em fevereiro de 1925 tinha inspiração nas revistas europeias. Deveria ser um semanário bem-humorado e informal, uma revista elegante, com capricho gráfico e editorial, destinada ao sofisticado público de Manhattan. No manifesto de lançamento é possível ler que a The New Yorker manteria compromisso com a seriedade, mas, ao mesmo tempo: “Seu tom geral será de alegria, sátira e presença de espírito, será uma revista tão divertida e informativa que se tornará uma necessidade”.

Harold Ross comandou a revista por 25 anos – até sua morte em 1951 – e apesar de seu ímpeto conservador, se mostrou um comandante intuitivo e aberto ao diálogo. Um bom exemplo se deu quando William Shawn – que seria o sucessor de Ross – por volta dos anos 1940, convenceu o comandante a contratar a jovem jornalista Lillian Ross para escrever no The Talk of the Town, espaço dedicado a resumir os temas do momento em crônicas, perfis e reportagens. Harold não era afeito a ter mulheres na redação, um ambiente masculino naquele período, mas com o início da II Guerra Mundial os homens da redação estavam sendo convocados um após o outro e era necessário diversificar. Anos depois, Lillian Ross seria um dos grandes nomes do jornalismo americano, teria sua história marcada pelas inúmeras reportagens que escreveu para a revista e seria mais uma das jornalistas que ajudaram a construir a fama da The New Yorker.

Outro momento em que o diálogo funcionou foi quando John Hersey entregou 150 páginas de uma reportagem sobre seis sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima. Em vez de fatiar o texto em várias edições, William Shawn queria publicá-lo completo, preenchendo uma edição inteira da New Yorker. Utilizando o próprio manifesto de lançamento da revista como argumento, Shawn provou a Ross que aquela história merecia um espaço especial. Os 300 mil exemplares da edição de 31 de agosto de 1946 se esgotaram rapidamente e os exemplares vendido por 15 cents nas bancas eram revendidos por 20 dólares dias depois.

Hiroshima entrou para a história do jornalismo por sua profundidade e estilo de escrita – apesar de o New Journalism americano estar demarcado entre os anos 1950/1960 –, já carregava tom o jornalístico literário que se tornou uma das marcas da publicação. No decorrer dos anos, vários dos jornalistas que estiveram presentes na redação adotaram o modo de escrita que utiliza de técnicas dos textos de ficção para contar histórias reais.

 

Hiroshima
A capa da edição veio com uma cinta indicando que aquela edição seria dedicada ao texto Hiroshima

 

Com o tempo, The New Yorker se tornou sinônimo de qualidade. Publicou textos de romancistas consagrados e abriu espaço para as experimentações daqueles que atualmente são cânones do bom jornalismo. Indo de nomes mais sérios como Joseph Mitchell, Janet Malcolm e Lillian Ross, até o controverso Truman Capote – que trabalhou como contínuo e apontador lápis no departamento de arte da revista até 1944, quando Ross o demite por supostamente dormir enquanto o poeta Robert Frost fazia uma leitura – autor de A Sangue Frio, que foi publicado de maneira seriada em quatro edições da The New Yorker.

É claro que a revista não agradou a todos. Em 1965 a The New Yorker estava fazendo 40 anos, e Tom Wolf, expoente do New Journalism americano, utilizava as páginas da revista dominical New York Herald Tribune para publicar o texto “Múmias Minúsculas: A Verdadeira História da Terra dos Mortos-Vivos da Rua 43” – a redação da The New Yorker estava nesse endereço. Na época, Wolf foi lido como uma criança terrível que só queria causar confusão, mas, egos feridos à parte, tanto Wolf quanto a revista estão no hall da fama do jornalismo.

 

A longevidade de Eustace Tilley

 

São tempos difíceis para os sonhadores, já diria Amélie Poulain, mas mesmo em um cenário no qual o papel da imprensa se torna cada vez mais nebuloso, The New Yorker continuou sendo um dos mais sólidos bastiões do jornalismo de qualidade. Desde 1925, ela está religiosamente nas bancas – cada vez mais raras –, e atualmente são publicadas 47 edições impressas por ano.

Em 2001, Eustace Tilley passou a ser encontrado em forma de pixels no site da revista, que foi reformulado e ampliado em 2014. Hoje a The New Yorker tem uma presença on-line significativa e produz conteúdo exclusivo para  as plataformas digitais.

Pode-se dizer que a longevidade de Eustace Tilley reside justamente nessa capacidade de adaptação. O distinto cavalheiro branco de nariz empinado já se tornou muitos outros desde que Robert Crumb fez uma reinterpretação do mascote para a capa de fevereiro de 1994, quando Tina Brown era editora da publicação.

 

Elvis Tilley
“Elvis Tilley”, de R. Crumb

 

 

A capa deu início a uma tradição: a cada novo aniversário da The New Yorker artistas são convocados para Tilley, que já deixou de mirar a borboleta pois estava vidrado no celular (capa 1), foi um homem negro que prefere fotografar a borboleta (capa 2), foi punk, soldado, hippie e hipster (capa 3). Em 2025, foi uma mulher latino-americana (capa 4), desenhada por Camila Rosa, artista brasileira.

 

Capa 1
Capa 1: Carter Goodrich

 

 

Capa 2: Kadir Nelson
Capa 2: Kadir Nelson

 

Capa 3: Barry Blitt
Capa 3: Barry Blitt

 

 

Capa 4: Camila Rosa
Capa 4: Camila Rosa

 

The New Yorker foi criada para se tornar necessidade e, com sua visão crítica e jornalismo comprometido, se tornou além de necessária, relevante. Impossível saber o que os próximos 100 anos reservam para a revista – ou para a humanidade – mas os votos são de que Eustace Tilley continue a comemorar muitos anos de existência.

 

Cintia S. da Conceição é jornalista e pesquisadora. Formada em Comunicação Social, mestra e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).