TRECHO INÉDITO | Vítimas perfeitas e a política do apelo 22/10/2025 - 16:18

Por Mohammed El-Kurd


Tradução Rogerio W. Galindo
Editora Tabla

 

O jornal Cândido publica um trecho inédito do livro Vítimas perfeitas e a política do apelo, de Mohammed El-Kurd. Nascido em Jerusalém em 1998, o autor é poeta, ensaísta e jornalista. Aos 27 anos, destaca-se como uma voz central do pensamento contemporâneo. 

Sua escrita une lirismo e contundência política, alcançando leitores em diferentes países. Em 2021, El-Kurd foi nomeado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista TIME.

O livro foi lançado no Brasil pela editora Tabla e traduzido pelo jornalista Rogério W. Galindo. Confira um trecho do primeiro capítulo: 

 

 

1 Não há sangue nas mãos do atirador

 

Sobre desumanização
E os homens são homens e as mulheres são homens
E as crianças são homens!
Padraic Fiacc¹

 

Nós morremos muito. Morremos em manchetes efêmeras, entre suspiros. Nossa morte é tão cotidiana que os jornalistas a noticiam como se estivessem falando do tempo: Céu nublado, chuvas leves, e três mil palestinos mortos nos últimos dez dias. E assim como no caso do tempo, o único responsável é Deus, e não os colonos israelenses armados, não os ataques direcionados de drones.

Não prestamos atenção a cadáveres nos nossos campos. Sua existência é monótona, previsível. O morticínio é a tal ponto implacável que é quase esperado — antecipado — por aqueles que logo serão abatidos. Seus pulsos, grandes e diminutos, presos às costas por algemas em viaturas policiais. A morte está em toda parte. Até a metáfora é vítima da guerra.

O figurativo se tornou dolorosamente literal: barbas cobertas de sangue, móveis em árvores, um membro dependurado num ventilador de teto, mulheres dando à luz no concreto. Et cetera. Será que estamos acostumados demais com o horror? O que antes era horripilante, o que um dia foi presságio de um desastre, hoje faz parte da paisagem; a morte agora é um espantalho que já não assusta. Mesmo quando os corvos crocitam mais alto, seu ruído atinge apenas ouvidos desinteressados. Não restou nenhuma santidade à morte. Nenhuma divindade vem ao resgate. Morremos esquecidos. Morremos muito e em completo abandono.

Nossos massacres só são interrompidos por intervalos comerciais. Juízes os legalizam. Correspondentes nos matam com voz passiva. Se tivermos sorte, diplomatas dirão que nossa morte é causa de preocupação, porém, eles jamais mencionam os culpados, muito me­nos os condenam. Políticos, inertes, ineptos ou cúmplices, financiam nossa morte, depois fingem empatia, quando muito. Acadêmicos não se mexem. Quer dizer, isso até que a poeira baixe; depois eles escreverão livros sobre como tudo deveria ter sido. Cunharão termos e coisas do gênero. Lecionarão no pretérito. E os abutres, mesmo em meio a nós, farão passeios por mu­seus, glorificando, romantizando aquilo que um dia condenaram, aquilo que não se dignaram a defender — a nossa resistência —, mistificando, despolitizando, comercializando. Os abutres farão esculturas de nossa carne.²

¹FIACC, Padraic. The Selected Padraic Fiacc. Belfast: Blackstaff Press, 1979.
 ²Trechos dessa passagem apareceram em "Are we indeed all Palestinians?" (El-Kurd, 2024c).

 

 

Mohammed El-Kurd
Mohammed El-Kurd

 

Sobre o autor

Mohammed El-Kurd é poeta, escritor e jornalista, nascido em Jerusalém, em 1998. Em 2021, foi nomeado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista TIME.  Atualmente, vive em Nova York. Rifqa, sua coletânea de poesias de estreia, publicada originalmente em 2021, foi nomeada "uma obra­-prima" pelo The New Arab.

 

Sobre o tradutor

Rogerio Galindo nasceu em 1975 em Curitiba. É jor­nalista, vencedor do prêmio Esso e um dos fundadores do jornal Plural. Traduziu mais de 50 livros de autores como George Orwell, Herman Melville, Samuel Beckett e Paul Beatty. Finalista do Jabuti 2016 na categoria Tra­dução. É o tradutor de Vítimas perfeitas e a política do apelo.

 

Sobre a editora Tabla

A editora Tabla tem como foco a publicação de autores do Oriente Médio e do Norte da África, estejam eles em sua terra ou na diáspora. O objetivo é dar voz a literaturas sub-representadas no Brasil, estabelecendo pontes diretas num eixo sul-sul. O catálogo busca representar a diversidade cultural, étnica, linguística e religiosa dessa parte do mundo, contribuindo para o combate a estereótipos e preconceitos amplamente difundidos.

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