SÉRIE ESPECIAL | Mulheres contra a Ditadura 21/11/2024 - 11:53

Um pouco de história: lembrar para que não se repita

por Noemi Osna

 

Setembro de 1968. As palavras de ordem do movimento operário brasileiro e dos grupos que lutavam contra a Ditadura eram “Abaixo o arrocho salarial - 40 por cento ou greve”. Levantei bem antes de amanhecer e, empurrando uma barriga de 8 meses de gravidez, embarquei do centro de São Paulo em um ônibus lotado rumo à então fabril Zona Leste. Ia encontrar companheiros para a distribuição de panfletos contra a Di­tadura em frente à fábrica da São Paulo Alpargatas, no Brás.

Certo, eu sei que 1968 ficou marcado pelo movimento estudantil das grandes passeatas, da luta nas universidades brasileiras e os protestos contra a Guerra do Vietnã. Mas eu havia terminado o curso de Jornalismo no ano anterior e agora, aos 21 anos, como participante de uma organização de esquerda, o objetivo era me integrar às lutas operárias em São Paulo, lutas que renasciam apesar da repressão. Após o golpe de 1964, os sindicatos haviam sofrido intervenção. Lideranças dos trabalhadores e­ram perseguidas, presas e torturadas o tempo todo. 

Pois é. Naquele tempo, a gente casava e tinha filhos, mesmo na militância. E não havia gravidez ou filhos que impedissem ou diminuíssem aquele ímpeto por justiça social. Aquela vontade de ter um país solidário, sem exploração, sem entrega das nossas riquezas à avidez estrangeira. Se não tínhamos medo da re­pressão? Tínhamos e muito. Mas quando você é jovem, você acha que é imortal. Pode tudo. Então, ônibus lotado na ida e na volta. A barriga de oito meses de gravidez não resistiu ao aperto e a bolsa amniótica se rom­peu. Dois dias depois, nasceu meu primeiro filho, Rudá.

Um mês depois nos mudávamos para Osasco. Casa alugada em um bairro operário e a busca por emprego em alguma fábrica para que pudéssemos parti­cipar do movimento operário e, a partir dele, ajudar a derrubar a Ditadura Militar e a estabelecer a justiça social.

Janeiro de 1969. O capitão do Exército Carlos Lamarca deixa o 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna, Osasco. Leva consigo 63 fuzis, metralhadoras, munição, alguns soldados e uma kombi rumo ao Vale do Ribeira, para iniciar um núcleo guerrilheiro. Os órgãos de repressão, civis e militares, enlouquecem e passam a atacar com violência todo e qualquer movimento sus­peito. Afinal, estávamos sob a égide do AI-5, Ato Institucional que permitia todo tipo de barbárie contra o povo brasileiro, desde a proibição de reuniões até prisões sem justificativa.

Nada mais suspeito que uma casa da periferia habitada por gente com cara de estudante e com um entra e sai constante de outros jovens ou de professor universitário que havia participado da greve dos metalúrgicos de abril em Osasco. No caso, o companheiro “Joel”, nome de militância adotado por Clemens Schrage, professor de Química da USP, que estava sempre por lá. 

 

Noemi Osna e seus filhos
Noemi e seus filhos em Toronto, Canadá | Acervo pessoal/ Noemi Osna.

 

Fevereiro de 1969. Meu marido sai cedo para a fábrica de tecidos onde recém havia conseguido um trabalho. Uma hora depois, em frente de casa, encosta uma Veraneio, condução utilizada pelo Esquadrão da Morte. Dele saltam uns caras fortes, vestidos à paisana, cabelos em corte militar. Um deles bate na minha porta. Dois dias antes, eu havia sofrido um acidente e recebi pontos na cabeça. Abri a porta e um deles, parecendo muito educado, perguntou pelo Joel. Respondi que ele não morava lá. O que eu não sabia é que aquele companheiro já estava preso e sendo barbaramente torturado. 

Percebi, é claro, que se tratava da polícia. Rudá em seus 5 meses dormia no bercinho. E logo ao lado da porta, em uma mesa, uma máquina de escrever trazia o relatório de militância de uma companheira — essa sim, morava conosco. Senti a cabeça rodar e disse ao “visitante” que havia sido atropelada e que estava com tontura. Ele disse que estava sabendo pelos vizinhos e se ofereceu para me acompanhar até a cama. Agradeci e eles partiram. 
Deixei meu filhinho com uma vizinha e corri até a fábrica avisar o meu marido sobre a “visita”. Depois, era tirar de vista todos os documentos e papéis — eram centenas, pois estávamos “provisoriamente” funcionando como depósito da organização. O único lugar disponível era o forro da casa. Uma cadeira em cima da me­sa e, pelo alçapão, fui colocando a papelada. Quando terminei tudo e olhei para o teto, percebi que ele tinha ficado com uma protuberância, tal o peso do material.

Fim de tarde. Os policiais retornam em sua Veraneio e decidem vasculhar a casa. Tive sorte. Só olham um cômodo que ficava fora. Não encontram material subversivo, mas roupas e documentos de uma antiga colega de faculdade que estava se decidindo se iria ou não se juntar a nós na luta e, alguns dias na semana, dormia lá, pois de dia completava uma especialização em hepatologia no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Levam seu diploma de Medicina, documentos pessoais e se retiram. Ao sair, encontram e levam meu marido, que acabava de chegar em sua bicicleta, preocupa­do com a esposa recém acidentada. 

 

Noemi e filhos
Foto tirada no Exilio | Acervo pessoal/ Noemi Osna.
Noemi e filhos
Da esquerda para a direita, Aritanan, Maíra, Noemi e Rudá Osna Carriconde | Acervo pessoal/ Noemi Osna.

 

No dia seguinte, consigo fazer contato com a Organização e peço que envie alguém para retirar a papelada. Volto a subir no forro e tiro os documentos pe­los fundos da casa — havia um terreno baldio onde um carro foi encostado.

Com Rudá no colo, uma sacola com mamadeira, um pouco de leite em pó, algumas fraldas de pano e uma muda de roupa, vou ao encontro de um companheiro em São Paulo para ver o que fazer da vida. Durmo aquela noite em seu apartamento. Mas durante o dia, tive que sair, pois era um endereço conhecido do meu marido e a polícia poderia me procurar por lá. No final da tarde, voltamos a nos encontrar e ele me encaminha para outro lugar. 

Foi assim durante alguns dias. Durante o dia vagando com o bebê pelas ruas e à noite dormindo sempre em um endereço diferente. Residências de compa­nheiros e até de outros grupos que tinham medo, mas que não me recusaram abrigo.

Fui informada que o advogado Sérgio Motta, que mais tarde seria ministro de Fernando Henrique Cardoso, queria falar comigo. Pensei: “ele é advogado e pertenceu à Ação Católica, vai ver que vai me ajudar”. No encontro, ele me avisa que a polícia está atrás de mim e que se me pegar vai “enfiar um cassetete na vagina para eu contar tudo o que sei”. E foi embora, sem maiores conversas. 

Até que, finalmente, uma professora da rede pública de São Paulo, militante da Ação Católica, me concede “asilo” em sua residência no Sumaré. Ficamos lá por quase três meses, eu e o Rudá, desfrutando daque­le acolhimento.

Em maio de 1969 meu marido foi libertado. Afinal, ele não tinha nada a ver com Lamarca, nem com a Van­guarda Popular Revolucionária (VPR), nem com as organizações de ação direta contra a Ditadura. Éramos da Ação Popular (AP), partido clandestino voltado à organização popular contra a Ditadura Militar, contra o imperialismo americano e contra todas as formas de opressão. E portanto, segundo explicaram a ele, estava sendo “solto provisoriamente, pois a AP seria assunto a ser encarado num segundo momento”.

De São Paulo a Curitiba por dois dias. E de Curitiba rumo ao exílio no Uruguai onde engravidei do meu segundo filho, Aritanan, e depois ao Chile onde Aritanan nasceu em 1970. No Chile também nasceu a minha filha Maíra, em 1973. E de onde tivemos que fugir de Pinochet¹ e seus assassinos primeiro para o Panamá e depois para o Canadá. 

Regressamos ao Brasil no final de 1979 com a Anis­tia. Uma anistia bem diferente desta que querem aprovar no Congresso. Apesar de que aquela, a de 1979, também anistiou os torturadores. Mas isso é assunto para outra conversa.

 

¹Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006). General do exército chileno e ditador que governou como presidente do Chile de 1973 a 1990.

 

Noemi Osna Carriconde é jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Ciência Política pela Ottawa University, Canadá. Criadora em 1980 do jornal nanico Boca no Trombone, con­tra a Ditadura que ainda perdurava no país. Trabalhou em diversos jornais de Curitiba. De 1993 até 2021 foi produtora e apresentadora de programas radiofônicos voltados à música na Rádio Educativa do Paraná, entre eles “Choro Vivo”, “Música e Paladar” e “Grandes Maestros e suas Orquestras Maravilhosas”.