SÉRIE ESPECIAL | Mulheres contra a Ditadura 26/04/2024 - 03:34

Na seção “Mulheres contra a Ditadura”, a perfilada da vez é Elza Aparecida de Oliveira Filha, jornalista e professora do curso de Comunicação Organizacional na Universidade Federal Tecnológica do Paraná. Elza foi estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná na década de 1970, fez parte do movimento estudantil e, depois de formada, trabalhou nas redações d’O Estado de São Paulo e O Globo. Na vida política, militou contra a ditadura, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores no Paraná e recebeu ameaças do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas.

 

Coração

Histórias do jornalismo curitibano e outras coisas

 

Francisco Camolezi

 

Ela não queria vir. Quase, por pouco, não botaram uma Marli, Sueli, no lugar. Mas Elza, em um mundo de Juninhos, Netos e Filhos, fez história na oposição. É Elza Aparecida de Oliveira Filha. A família vinha de uma sequência decimal de abortos involuntários por conta de uma cesariana malsucedida no parto da última irmã. “O útero se aderiu com não sei o que”, explica Elza. A mãe, Elza, precisou passar por uma reconstrução para poder gestar novamente. Após a cirurgia, o médico avisou: nada de gravidez nos próximos meses. Pra quê? Passados 60 dias, claro, Elza Mãe já estava grávida. A gestação foi conturbada e o parto dramático. Era 1955 e, a pedido do médico, Seu João, o pai, precisou escolher entre a vida das Elzas. A mãe sobreviveu, mas Elza, a filha, nasceu mesmo assim. E veio com vida de sobra.  

É por isso que, na contramão do comum, Elza Aparecida de Oliveira é Filha. Uma homenagem de João à mãe que correu o risco de perder a vida para passá-la adiante. Além de Filha, Elza é de Bom Sucesso, cidade pequena no centro-norte do Paraná. É também jornalista, professora, militou no movimento estudantil, sindicato e, hoje, gosta muito de música, cinema e literatura. Também curte cantar, dançar — Elza integra um grupo de dança circular —, mexer no jardim e bordar para os netos.  

 

Falências e infância

João, pai de Elza, era uma vítima do azar. Mudou-se para Bom Sucesso em 1952, nos primórdios do desenvolvimento da estrutura agrária e urbana do norte do Paraná. Foi vereador democrata-cristão — a religião acompanha Elza desde o berço —, teve um pequeno armazém, um escritório de contabilidade e demais negócios. Nada deu certo, quebrou diversas vezes. Pensando na educação das filhas, migrou a família para Londrina. Lá, depois da segunda falência, entrou em crise. “Eu trabalho pra caramba, não bebo, fumo, não tenho ‘mulherada’. Por que que eu não consigo sustentar minha família de maneira decente?”, queixava-se. 

A data é incerta, mas era época de Ditadura Militar (1964-1985). Foi na porta ao lado que Seu João se descobriu vítima, na verdade, do sistema, e não de um desalinhamento cósmico-arcano-moral-religioso. O vizinho da família era membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro, e ofereceu ao pai de Elza uma outra visão sobre suas próprias falências. Ao invés de culpar o espírito do azar, por que não reparar no fato de que as vendas da mercearia decaíram após o surgimento do grande supermercado na cidade? Aqui, João tirou o chapéu para o anticapitalismo. Agora, tanto o vizinho, que posteriormente veio a ser preso, como a irmã mais velha de Elza, que já estudava Medicina Veterinária em Curitiba, militante do Movimento Estudantil e chegou a viver na clandestinidade durante a ditadura, passaram a influenciar a leitura socialista do mundo de João.  

Na mesma época, o jornal se tornou protagonista na vida de Elza. Ela se recorda de ansiar a chegada dos domingos e ler Os Lusíadas com seu pai nas folhas do Estadão. Também chamavam a atenção de Elza as reportagens da guerra do Vietnã e das manifestações estadunidenses contra a guerra. O mundo parecia menor. Elza entendeu a importância da comunicação e da informação. Decidida, queria fazer parte daquilo. Queria ser jornalista.   

 

O jornalismo

Elza entrou para a universidade em 1973, antes mesmo do curso de Jornalismo da UFPR completar 10 anos de existência. De acordo com a estudante, o cerceamento militar na universidade era forte. Foi comum, durante a ditadura, aparecer em aula a figura de um homem de terno, misterioso — apesar de todos saberem do que se tratava —, no canto da sala. Era o serviço de informação do governo, ligado à reitoria da universidade. Impedida de acontecer por meio do ensino, a mobilização política ganhava espaço no movimento estudantil. Lá, dizem as boas línguas, Elza ganhou fama de marrenta. De acordo com a jornalista, “era preciso estar atento... e forte”, como na música de Gal Costa.  

Apesar do envolvimento durante sua graduação, que durou até 1976, Elza julga que viveu um período "calmo'' do movimento estudantil. Começou a trabalhar com o jornalismo cedo, antes mesmo de terminar o curso, o que a afastou da militância nos seus últimos anos de graduação. Mas o anseio pela mudança é inerente à Elza, e foi ele que a lançou na cena do jornalismo curitibano.

Durante o 16º Congresso Nacional dos Jornalistas Profissionais, Elza e Ruth Bolognese, colegas de trabalho na redação d’O Estado do Paraná, apresentaram o trabalho intitulado “Escolas de Comunicação Social no Paraná ou o distanciamento entre a formação profissional do jornalista e o mercado de trabalho”. Na ocasião, estavam presentes delegados do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo que saíram para tomar uma cerveja com Elza e Ruth após o evento. No bar, onde as palavras saem mais fácil, Elza acaba expondo o esquema de Mussa José Assis, diretor de redação d’O Estado do Paraná e correspondente d’O Estado de São Paulo que, após uma breve “penteada”, simplesmente enviava as matérias das repórteres recém-iniciadas para o jornal paulista, sem remunerá-las. Neste esquema, desavisada, Elza chegou até a dar manchete no Estadão em 1975, quando a Geada Negra vitimou plantações de café paranaenses.

Hoje, a história arranca risadas, mas, na época, foi motivo de burburinho interestadual. Na delegação do sindicato de São Paulo, onde a fofoca correu solta, três jornalistas que trabalhavam no Estadão, entre eles Dirceu Martins Pio, fizeram pressão para que o jornal reconhecesse que, ao não remunerar as repórteres que faziam seu trabalho de correspondente, Mussa pecava em ética. Isso, somado ao fato de que o estado ganhava cada vez mais destaque no cenário nacional, fizeram com que o jornal paulista abrisse uma sucursal no Paraná, chefiada por Dirceu, onde Elza foi trabalhar. Ruth foi para a sucursal do Jornal do Brasil.

Foi na sucursal do Estadão que Elza conheceu Carlos Ruggi, fotógrafo, que veio de São Paulo para abrir a redação no Paraná. Hoje, o casal comemora “40 e nem sei quantos anos” de casamento. Dados da própria Elza. “Não temos um dia para comemorar como o dia do casamento. Mas temos uma relação bastante sólida, estável, bastante cercada de amor que resultou em três filhas, três mulheres”. Elza é coração.  

Um ano depois de se conhecerem, Elza e Carlão passam a morar juntos. Alugaram o sótão na casa de ninguém mais ninguém menos que Teresa Urban, uma das grandes jornalistas paranaenses, ativista e pioneira do jornalismo ambiental no Brasil. Os três trabalhavam na sucursal do Estadão, moravam juntos e, ironicamente, foram demitidos também juntos da redação do jornal em 1977. Hoje, Elza conta a história entre risadas e saudades de Teresa, que faleceu em 2016.

 

A casa

A relação de Elza e Teresa é anterior ao jornalismo. Teresa militava no mesmo partido clandestino que a irmã mais velha de Elza, o Partido Operário Comunista. Politicamente perseguido pela ditadura, o partido foi dissolvido em 1970, levando Teresa a se exilar no Chile e a irmã de Elza à clandestinidade. 

O reencontro de Elza com Teresa se deu no final de sua graduação. Juntas, foram trabalhar na sucursal do Estado de São Paulo. O sobrado onde moravam — que ficava na rua Coronel Dulcídio, próximo a onde hoje é o shopping Novo Batel — era um centro de discussão intelectual e organização política em Curitiba. Lá se reuniram as primeiras mobilizações em torno da oposição sindical, editaram o jornal Documento Zero, que falava sobre a situação do jornalismo paranaense, participaram de reuniões do movimento da anistia, dos primeiros movimentos ambientalistas no Paraná e, inclusive, da fundação do Partido dos Trabalhadores no estado. Foi lá também que Elza, Teresa e Carlão receberam as famosas cartas do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC. 

Também moravam na casa quatro cachorros, dois gatos, “não sei quantos passarinhos” e dois filhos pequenos de Teresa, Gunther e Lupe.   

 

Esquerda nas escolas

Depois da caótica demissão tripla em agosto de 77 no Estadão, Elza trabalhou por dois meses na Folha de Londrina. Em janeiro de 78, foi convidada por Moura Reis, chefe da sucursal paulistana d’O Globo, para trabalhar no jornal, na sucursal curitibana. “Eu vou te convidar para trabalhar muito, para ganhar pouco, para não ter nenhuma infraestrutura, mas eu prometo que se você tiver um desempenho legal a gente vai melhorar as condições de trabalho em breve”. A proposta, que mais parecia desanimadora, encantou Elza. O pouco que O Globo pagaria já era maior do que a Folha de Londrina e, além disso, acabava a cobertura do rame-rame provinciano. Elza gostava de trabalhar em jornais de abrangência nacional por isso: o perrengue é da metrópole.  

Elza começou n’O Globo em janeiro, mesmo mês em que foi convidada. Logo em seguida, aconteceu um dos mais esquisitos e toscos escândalos da Ditadura Militar no Paraná: a Operação Pequeno Príncipe. Elza chama o episódio de “a prisão do pessoal das escolinhas”. No caso, foram presos Édesio Passos, Zélia Passos, Luiz Manfredini, entre outras pessoas, pais e professores das pré-escolas Oficina e Oca, acusados de ensinar marxismo para crianças de 0 a 6 anos de idade. Nem todos os aliados da Ditadura foram capazes de defender o absurdo, como a família Marinho, do Grupo Globo, o que acabou abrindo espaço para Elza escrever sobre as prisões no jornal. Além disso, o chefe de redação do Globo já tinha trabalhado com Edésio Passos no jornal Última Hora, de Samuel Weiner, o que acabava por gerar uma simpatia do jornal com os presos na operação. Em maio de 78, Elza foi registrada n’O Globo. A cobertura do caso das prisões nas escolinhas foi muito bem recebida pelo público e pela redação do jornal.  

Em outubro de 1998, Elza foi demitida. Mas ela não podia parar. Tinha três filhas para, ao lado de Carlão, dar o que comer. Em novembro do mesmo ano, sai, na Universidade Federal do Paraná, um edital de seleção para professor substituto para atuar em disciplinas de Redação Jornalística. Convidada por Rosa Maria Cardoso Dalla Costa, primeiramente, Elza recusou o convite. Sobrava medo e faltava interesse pela sala de aula. Felizmente, o edital não teve nenhum inscrito. Foi realizada outra chamada e, dessa vez, Elza decidiu se inscrever. Passou e, a partir dali, mudou sutilmente e para sempre os rumos da vida.  

No primeiro dia,“entrei na sala de aula assim. Com as pernas parecendo uma gelatina de tanto medo e tanta insegurança”, relata. De qualquer forma, não demorou muito e Elza estava apaixonada pela docência. Fez muito bem a ela estar entre a juventude, na universidade, nos movimentos, de novo. No ano 2000, escreveu seu projeto de mestrado. Tornou-se mestre em janeiro de 2002 e logo engatou o doutorado, concluído em 2006. Trabalhou como professora nas instituições de ensino superior Unibrasil, Tuiuti do Paraná e Positivo. Hoje, é professora no Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde mantém pesquisas e um grupo de estudos na área de educação midiática e fake news. 

Na universidade, Elza é querida. Chama todo mundo pelo mesmo nome: Coração. Assina seus e-mails com “beijos beijos”, “beijos mil”, e marca de forma ímpar a vida de todos os seus estudantes, sejam pelas tortuosas provas de Teoria da Comunicação II ou pelo afeto e carisma, nos quais Elza é especialista. 

Quando perguntada se aquela Elza militante ainda vive, a professora assume que, no decorrer da idade, perdeu o pique. “Eu já tive momentos em que me jogava na militância, passava madrugadas escrevendo. Hoje acho que já não tenho mais toda essa disposição”. No entanto, isso é mero detalhe. Para Elza, seria impossível perder o compromisso com a construção de um mundo melhor, “por uma sociedade menos desigual, menos privada de preconceitos, onde as pessoas sejam mais respeitadas nas suas essências, nas suas escolhas”. Ainda sobre a militância, direcionada a uma turma universitária de calouros em jornalismo que a perfilavam, Elza diz: “Acho que devem surgir novas gerações aí que venham assumindo esses postos”. Tá no ar, que pegue quem quiser.