ROMANCE | Karina Buhr 30/06/2022 - 10:41

Mainá

 

Argélia

 

A gente era pequeno na rua da Bica, do lado do Beco da Faca, por trás do morro do Cecílio. Eu devia ter uns seis ou sete anos.

A toalha da mesa da cozinha sempre era de flores, às vezes eu deixava ela suja e minha mãe reclamava, Etrusco, meu filho, de novo a toalha sebosa! Eu achava que tinha mudado, mas era a mesma da semana passada. Sempre tinha um cinzeiro e eu trocava por um açucareiro quando chegava visita. Não tinha problema um cinzeiro, mas era um cinzeiro com muita cinza, eu achava que não parecia uma cozinha normal.

Minha mãe usava batom e fumava, não tinha problema as fumadas, eu só achava feio o cinzeiro cheio de cinza e bituca de batom na mesa que a gente ia comer feijão e carne. Ela dizia que filho não mandava, mas eu não queria mandar, só trocara cinza pelo açúcar.

Depois a gente era pequeno ainda. Uns dezessete anos os dois juntos. Era ladeira todo dia, indo e voltando, mas a gente nem sentia, o objetivo era ir pra escola logo e cedo, pra não ter reclamação, e voltar o mais rápido possível pra encontrar os comparsas.

— Só tinha homem?

Você sempre pergunta se só tinha homem, que obsessão!

— É o contrário, minha gente, pode ver que a resposta de vocês sempre é sim. Se só tinha homem, só tinha homem, posso fazer nada, vocês sim.

— A gente pode fazer o quê, se o tempo já passou, Mainá?

— Mas o tempo volta sempre, ele faz a curva, é só esperar.

— É o vento que faz a curva, mulher!

— Ah, é. Mas, se reparar direito, o tempo faz também. Aquela mazela resolvida e enterrada, quando você menos espera ela volta pra puxar seu pé de noite.

— A gente pode terminar de contar?

— Sim, claro, já calei a boca, dr. Hermoso.

 

— Eu não me lembro de tudo, mas o que eu lembro é pra sempre. Teve um dia que a gente caiu da ladeira, todo mundo junto, todos os meninos da rua, em cima de um carrinho só. Não tinha como dar certo, mas a gente só entendeu isso quando se estabacou lá embaixo, joelho ralado, sangue plissado, parecia cena ruim de verdade mas nem era, o sangueiro foi porque Junio levou um corte pequeno na testa, e testa, que é perto do olho, diz que é sangria certa.

Seu Julião chegou correndo, nem ligou pra gente porque já sabia que sério não era, não sei como ele já sabia, mas ele sempre já sabia de tudo, principalmente sobre quedas de crianças amontoadas brincando. Ele já chegou correndo pelo meio da rua, como se a gente fosse da equipe de salvamento, mas a gente que precisava de salvação, pelo menos é o que a gente imaginava. Imaginar a gente sabia. Seu Julião: “Cooooorre, minha gente! Argélia vai ter menino!!”.

Foi um corre pra cá, corre pra lá, ninguém se lembrava mais de corte nem de arranhão, corre, menino! Estourou!

— Estourou o cano?

— O bucho de Argélia estourou!

— Meu deus!

— O bucho não, miserávi, a bolsa!

— Que bolsa? O que tem a ver bolsa com bucho?

— Tudo!

— Entendo mais nada, vou calar minha boca.

— Isso!!

Os meninos tudo suado, aquarela salgada com sangue escorrido, meio seco já, um nojo de sovaqueira pré-adolescente, não sei como conseguem arrumar tanto aroma.

A sala estava azul, uma coisa linda, a santa no meio, iluminada, misteriosa, um douradinho sutil nas sobrancelhas, parecia uma mulher de Vênus na porta de um disco voador, a mesa cheia de flores pequenas, na cabeceira floradas maiores, essas

todas brancas e azuis com um miolinho amarelo, todas feitas à mão pelas benzedeiras do bairro, tudo no silêncio completo.

Um silêncio leve, nunca tinha ouvido um silêncio assim.

As rezadeiras floristas estavam todas lá e foi boa essa sensação, de vê-las também num contexto de saúde e vida, até aquele dia a gente só encontrava com elas na doença e na última rezada. Até acho que foi ali que pela primeira vez eu percebi que elas eram bonitas, antes eu só enxergava a benza. Mariinha e Davina rezando baixinho, as duas de olhos fechados as duas fazendo um riso. Nunca vi um lugar tão bonito na minha vida, e olhe que aquela casa era feia, viu?! O silêncio foi se acabando sem planejamento, não sei se por nervoso de todo mundo, mas por que teria que ter nervoso pra nascer uma criança? Parece que tem água gelada ali no cantinho, mergulho no copo de alumínio, preciso de água gelada.

Argélia teve menino! Mas foi menina.

Dá no mesmo, é só porque querem inventar mais novidade e informação do que já é um nascimento de uma criança. Já tem tudo ali, um corpo com uma alma dentro, uma cabeça com cabelo ou sem, uma cara engelhada, roxinha, pretinha, rosinha, amarelinha, desdentada e muito amor de todo tamanho. Acho que ser humano é feito pra isso, pra quando nasce a gente ficar feliz — a própria pessoa nascida porém não fica, estava lá de boa, nadando no quentinho e de repente cai aqui nesse lugar — e aí depois tanto faz, pode ficar até bem triste, o principal já passou.

As vizinhas foram chegando, cada uma abraçando a outra, depois também alguns vizinhos e outros avulsos. A luz era linda demais e as músicas que começaram a cantar eu não me lembro direito, mas nunca vou me esquecer. Falavam de Maria, José e o menino, de um céu com uma estrela maior, da seiva, da rama e da flor. Não entendi a parte de Salvador.

O nome escolhido foi Mainá.

 

 

Karina Buhr nasceu em 1974, em Salvador, e aos oito anos mudou-se para Recife, onde iniciou sua carreira como cantora e compositora. Em 2000, entrou para a companhia Teatro Oficina, participando das montagens de As Bacantes e Os Sertões. Lançou os discos Eu Menti pra Você (2010), Longe de Onde (2011), Selvática (2015) e Desmanche (2019). É autora do livro de poemas Desperdiçando Rima (Rocco, 2015). O trecho publicado pelo Cândido é de Mainá (2022), seu primeiro romance, que será lançado pela Todavia em julho.