ROMANCE | João Lucas Dusi 30/11/2022 - 12:02

O diabo na rua

 

É preciso se dedicar a tudo com seriedade. Eu costumava odiar meu apelido de escola: Pingo. Baixo, desengonçado e rechonchudo. Murmurava palavras, quase incompreensíveis, igual ao pinguim do desenho. O pessoal não perdoava. Cambada de filho da puta. Adolescentes são protótipos maus de seres humanos. Não é que as pessoas fiquem boas quando envelhecem, só aprendem a dissimular melhor o ódio que trazem no peito. Um ódio primal. “A existência de Satã no cristianismo, mesmo para um ateu, serve muito bem para simbolizar determinados tipos de comportamentos”, explica Duncan Trussell, criador de um podcast intergaláctico. Em última instância, serve para simbolizar o que é a natureza do homem. Para driblar a morte, o desespero, a depressão e o alcoolismo, tratamos nossos iguais feito merda. Forjamos seitas em torno do próprio ego. Não sei o que será deste mundo. Minhas expectativas são baixas. Nulas, para ser sincero. E é ótimo que assim seja.

O gordo veio todo machão, durante o recreio, e me chamou de Pingo — de forma pejorativa, queria impressionar. E aí, Pingo? Ele estava com sua gangue, naquele tipo de situação caricata e triste de filme norte-americano, só faltava estar esperando que eu lhe desse o dinheiro da merenda, tudo bem cabível à escola elitista na qual estudei como bolsista. Uma gangue de gente branca, bem alimentada e abastada. Gente rosada. Só que eu estava vacinado no dia, cheio de cólera guerreira grega clássica. Deitei o exemplar de Pornopopéia e fiz-lhe uma proposta irrecusável: “Por que você não vai tomar no seu cu, baleia do caralho?”. Me deixaram em paz desde então. Nunca mais me dirigiram a palavra, muito menos olhares — não como os de outrora, ameaçadores. Antes eu me sentia vigiado a todo segundo, depois me senti sozinho contra todos. Quando me viam nos corredores, olhavam para baixo. Faziam comentários inaudíveis, abafados, desconfio que a propósito da minha insanidade. Fiquei contente e resolvi cultivar essa imagem. Acabei apaixonado pela ideia de ser louco. Eu é que passei a cuspir no chão e a olhar para eles com desprezo. Já não me sentia mais uma parte excluída daquele grupo de idiotas, pois era algo — sólido, confiante — à parte. Um algo desprezível em maturação, prestes a explodir com violência.

Acho que teve a ver com o tom de voz, com alguma coisa que já se insinuava em meu olhar. Com minha postura: sempre solitário e quieto, me arrastando pelos cantos com um livro. Sei que a imagem transborda arrogância. Eu mesmo jamais gostaria de me relacionar com alguém que desfila por todo lugar com um livro na mão, em uma manobra tosca para mostrar o quanto é inteligente. Quase um grito patético de socorro. Nessa mesma época, descobri que Miles Davis não tinha amigos e que Charlie Parker virou Bird depois que Jo Jones quase o decapitou com um prato de bateria, então deixei de lado o impulso — ingênuo — de tentar compreender a visão do próximo sobre mim. Deixei a indiferença tomar conta. Abri mão da empatia, um sentimento que jamais me fez sentido. Parei de fingir. O mundo da fantasia estava começando a me fisgar, e mais tarde eu perceberia que é um caminho sem volta. Dali a um tempo já não faria nenhum sentido interagir com meus iguais, meu mundo se tornaria outro. Chegaria um tempo em que o mero toque de um semelhante me causaria agonia, nojo. Só de alguém me olhar eu já sentiria o estômago embrulhar. No plano das ideias, enfim, tudo é possível — inclusive o impossível. E é nele que passei a habitar.

Naquele momento específico, porém, quando sugeri ao elefante que tomasse no cu obeso dele, ainda fiquei chateado com minha reação. Pensei depois que, justamente por ser superior, deveria deixá-lo seguir com a zombaria. Deixá-lo armar um circo para os amigos. Tenho certeza que ele sofria muito à noite, antes de fechar os olhos. Que chorava. Penso na postura de Cristo durante a crucificação: enxergar a humanidade com amor mesmo na iminência da morte, com requintes de crueldade, contorcendo-se de dor, cheio de furos gotejando sangue e uma coroa de espinhos na cabeça. Mas eu não tinha a opção de pedir ao meu pai para perdoá-los, porque não tenho pai. Quem tem a fabulação a seu favor não precisa se ocupar com essas besteiras.

Deu tudo certo. Quer dizer, depende do que você considera certo. É relativo. Os outros também acham que dei certo. Mas não vou esquecer de quando me chamavam de vagabundo e fracassado. De quando me olhavam com desconfiança e me espicaçavam pelas costas, em ridículos encontros familiares dominicais, naquele clima cristão de última ceia — mesa farta e o verbo correndo solto, venenoso como o de cobra peçonhenta. Encontros que serviam exclusivamente para praticarem o ódio, sentirem-se bem nas próprias peles. Jamais esqueça que pessoas que falam dos outros para você, apontando e julgando este ou aquele, também falam de você para os outros. Seja qualquer coisa nessa puta dessa vida do caralho, menos ingênuo.

Minha memória não é curta. Lembro exatamente de cada um dos nomes e de cada uma das situações; lembro, inclusive, de quem não estava lá — ele, que merece deste filho bastardo nada mais que repulsa, mas ainda é acolhido por um coração que não sabe o que faz. Aquelas pessoas todas, sempre muito certas de tudo, tentavam me arranjar emprego no shopping, bico de garçom, entregador de panfletos. Só não me mandaram chupar pau, vender crack ou comer o rabo de heterossexuais casados em esquinas pouco iluminadas de bairros precários. Pensavam em qualquer coisa inumana que justificasse minha existência, o homem só tem valor mediante o ofício que pratica. Dedicando-me a essas tarefas imundas, plenamente a contragosto e suicida, triste demais, ao menos eu seria um trabalhador. Uma pessoa de bem. Todo trabalho é honesto, afinal, e dignifica o homem. Minha vingança, hoje, será ignorá-los — os nomes e as situações. Porque se eu já não me importava antes, agora muito menos. Sou livre, e esta é minha história. Ela não acaba com um massacre ou suicídio. Sempre falei e pensei muito mais do que agi. A história é de sucesso. De um escritor que venceu, movido sempre por uma repugnância espetacular contra seus iguais e a vida como um todo.

 

Ai de mim, século 21, não quero ser obrigado a escrever ficção autoconsciente só porque os bonitões decidiram que as coisas do coração se tornaram obsoletas. Que o legal agora é ser durão e impassível, analítico, atento a uma forma literária disruptiva e a um conteúdo combativo, político. Uma ficção pretensamente inteligente, dialética, calcada em jogos metaficcionais e um narrador que se reconhece como tal. Acho que já me tornei refém da estética dita pós-moderna, infelizmente. Admitir isso acalma um pouco as coisas, não muda nada. Penso na diegese elaborada por John Williams e em como jamais serei capaz de atingir aquele nível sublime de sutileza. De parcimônia. Delicadeza. Penso no uso da palavra diegese e sinto nojo. Culpo minha formação acadêmica, à qual jamais precisei recorrer profissionalmente. Depois de ganhar um grande prêmio com meu segundo livro, enfiei o diploma no cu. Literalmente. A maior serventia para o canudo foi ter removido o excesso de fezes de meu ânus, em uma manhã particularmente agradável na qual eu tinha acabado de receber a notícia da vitória. Decidi: vou limpar o cu com meu diploma de professor de português. Dito e feito. Tomei café preto, fumei um cigarro e fui cagar, carregando o atestado de êxito comigo. Todo estudante de Letras é um retardado, um verme. Só não é mais desprezível que o aspirante a jornalista. Ou que o editor de livros e também de periódicos, que constituem a raça mais estúpida da Terra. A esta altura do campeonato, qualquer recurso literário é batido. É por isso que peço que me deixem em paz, por obséquio. Por gentileza. Pelo amor de Deus.

 

João Lucas Dusi é autor do livro de contos O Grito da Borboleta (2019). Foi redator do Cândido e do jornal Rascunho. O trecho publicado nesta edição faz parte de seu primeiro romance, O Diabo na Rua, a ser lançado pela editora Rua do Sabão.