ROMANCE | Agnaldo de Assis Nascimento 28/01/2022 - 16:02

Marte em Áries

 

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O boteco é do tamanho de um banheiro forrado de azulejos portugueses. Duas coxinhas se decompõem na vitrine suja, não há ninguém nas ruas, não há chiado de batatas fritando no óleo velho. O balconista cochila no balcão e o garoto não se entende com a sua cerveja congelada. Eu peço mais uma garrafa. Ele usa um jeans rasgado nos joelhos e uma camiseta branca. Um James Dean sul-americano me dizendo que as malas estão prontas, que vai pra Madri. Eu penso que as malas estão sempre prontas, principalmente quando se é um garoto como ele e não entendo muito bem se ele vai estudar, trabalhar ou se prostituir. Digo que estou procurando alguém que desapareceu há algumas semanas, descrevo os traços físicos de Ravi como se ele estivesse sentado nessa mesma cadeira no lugar do garoto. Pergunto se ele não viu alguém assim nos lugares por onde andou. Ele diz que sim, que viu vários, e que todos desaparecem sem deixar vestígios uma hora ou outra. É o que você tá fazendo agora, sussurro, indo pra Madri, não é? Ele afirma balançando a cabeça. Um sorriso malicioso fica tatuado em sua cara. Me sinto estranho, um arrepio me percorre o corpo enquanto o garoto termina a sua cerveja. Embaixo da mesa de latão seus sapatos novos esbarram no meu tênis gasto e encharcado. Pago a conta e levamos uma porção de salame de coloração suspeita pra comer com pão. Dois quarteirões depois a carranca enferrujada de um portão se escancara enquanto o garoto abre passagem para que o meu corpo passe. Prédio baixo, três andares, ele mora num quarto nos fundos do apartamento de uma viúva. Sua mão quente agarra a minha enquanto atravessamos corredores escuros contendo o estardalhaço das nossas pisadas, um breu de morte nos envolve, totalmente oposto ao dos labirintos escuros da sauna embotada por gemidos e música eletrônica. Sou paranoico pra caralho e começo a imaginar coisas. Me pergunto se o garoto não me viu antes na sauna e se não estou sendo guiado pra algum tipo de enrascada, o apartamento decrépito da viúva seria mera fachada para uma dessas quadrilhas internacionais de tráfico de órgãos ou coisa parecida? A viúva, se é que existe de fato tal figura, seria a cabeça da gangue? Na certa o garoto iria para Madri, mas não para estudar ou trabalhar e sim para levar meus órgãos ao destino de um doente terminal ricaço que estaria esperando neste momento com uma mala forrada de euros. Poderia ser a filha mais nova do ricaço, na flor da idade, abatida por uma fatalidade. Foda-se, isso daria um filme ruim. A cerveja congelada não deve ter descido bem. Meu tênis molhado faz um barulho escroto a cada pisada, tento abafar o riso, mas percebo que não é meu o riso que cascateia nas trevas do apartamento, o garoto deixa escapar uma risada cheia de guizos que perfura o silêncio. Finalmente chegamos ao seu quarto, um esporro de luz explode na minha cara, o garoto põe o abajur no centro do quarto. Assim é melhor, ele murmura, como se estivesse falando sozinho enquanto arranca os sapatos e os atira num canto escuro do quarto. Pergunto se o barulho não acorda a viúva. Ele responde que com a porta trancada é difícil escutar qualquer coisa. Além do mais, as paredes são grossas. As luzes do abajur lançam fantasmas elétricos em todas as direções e no corpo do garoto. Tiro meu tênis e meias empapados de água da chuva, meus pés brancos parecem frágeis e estão enrugados por ficarem molhados por tanto tempo. Ele me estende uma toalha e indica a porta do banheiro. Tomo banho com a porta aberta, vendo o garoto só de cuecas andando pra lá e pra cá e ligando o rádio baixinho. Começa a dançar no centro do quarto, imerso em sua própria aura. A pele parece um fruto fresco sob a luz do abajur; meu pau fica duro, me enxugo devagar sentado na borda da cama. Jogado sobre o lençol, há um desses panos que vendem em lojas indianas com o desenho de um sol de rosto sereno. Ele senta no chão abraçando os joelhos dobrados, parece esperar algo, só então me dou conta do borbulhar e da fumaça. Num canto, há um fogão portátil de duas bocas. A água ferve, ele se levanta e prepara o café. Conforme o prometido, me diz, oferecendo uma xícara cheia. [...]

 

 

 

 

Marte em Áries — 1º lugar no Prêmio Biblioteca Digital 2021, categoria Romance

Em um fluxo poético e delirante, o romance narra a jornada de Ivan após o desaparecimento de seu companheiro, Ravi. Ao iniciar essa busca, o personagem passa a exorcizar alguns demônios interiores enquanto percorre um cenário urbano e noturno que reflete seu estado de espírito. A narrativa procura evocar o lado híbrido e fluido das relações humanas, ressoando sob o signo da noite. O livro completo está disponível para download em bpp.pr.gov.br.

 

 

Agnaldo de Assis Nascimento nasceu em Diadema (SP). É graduado em Letras e Jornalismo e vocalista da banda Versus Mare. Como escritor, teve contos premiados em edições da “Mostra de Artes de Diadema”. Publicou o romance Horses (2019), contemplado em edital da Prefeitura da São Paulo, e participou da antologia LGBTQIAP+ A Resistência dos Vaga-lumes (2020). Vive na capital paulista.

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