RETRANCA 21/11/2024 - 12:43

Nênia e outros poemas

por Rodrigo Garcia Lopes

 

O autor Rodrigo Garcia Lopes selecionou alguns poemas de Antonio Cicero publicados em suas redes sociais e no blog Acontecimentos. “Poemas que ele apreciava especialmente. Este primeiro resume bem como ele pensava sobre o tema da morte”, diz Garcia Lopes.
 

Nênia

A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.

CICERO, Antonio. "Nênia". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

 

O livro de sombras de Luciano Figueiredo

 

1

Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas sim atrás de mim.
Não será a saída um desvio
e o caminho o verdadeiro fim?

2

Não é hora de regressos
Não é hora

3

É certo que me perco em sombras
e que, isolado em minha ilha,
já não me atingem as notícias
dos jornais a falar de bolsas,
modas, cidades que soçobram,
crimes, imitações da vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias penelópicas
de horrores ou de maravilhas
que dia a dia se desfiam
e fiam sem princípio ou fim
novíssimas novas artísticas,
científicas, estatísticas...
E há na noite quente um jasmim.

4

É aqui, mais real que as notícias, na própria
matéria, na dobradura de uma folha
em que se refolha este meu coração
babilônico, na configuração
da mancha gráfica sobre a tessitura
do papel tensionado, ou onde se apura
o lusco-fusco produzido por linhas
e entrelinhas, entre o preto e o branco e o cinza,
onde cada ideia, cada ponto e vírgula
dos trabalhos e das noites se confunde
com miríades de pontos de retícula
e meios-tons de clichês, entre o passado
que jamais está passado e alguns volumes,
linhas e planos apenas esboçados,
que súbito os elementos mais dispersos
se articulam, claro-escuro filme negro,
entre a pura matemática, o acaso
e a arte (esta árvore já foi vestido
de mulher) onde o delírio é mais preciso,
transparece o meu jornal imaginário.

5

Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas sim atrás de mim.
Não será a saída um desvio
E o caminho o verdadeiro fim?

CICERO, Antonio. "O Livro de Sombras de Luciano Figueiredo". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

 

La Capricciosa

                                         In memoriam
                                        Roberto Correia Lima, meu irmão

 

É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranquila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.
Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.

CICERO, Antonio. "La Caprichosa". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

 

Hora

                                         Para Alex Varella

 

Ajax não pede a Zeus pela própria
vida mas sim que levante as trevas
e a névoa a cobri-lo e aos seus em Troia:
que tenha chegado a sua hora
sim! Mas não obscura: antes à plena
luz do dia e sua justa glória.

CICERO, Antonio. "Hora". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

 

Huis clos

 

Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem de paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosch
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo: por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que, em meio a fezes e urina
sangue e dor, nascemos para lendas
mares amores mortes serenas.

CICERO, Antonio. "Huis clos". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2012.
 

Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Seus últimos livros são O enigma das ondas (Iluminuras, 2020), Poemas coligidos (1983−2020) (Kotter, 2023) e a tradução Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire (Penguin-Companhia das Letras, Selo Clássicos, 2024).