REPORTAGEM | Notas e letras 30/03/2022 - 15:21

Músicos consagrados do cenário pop nacional que também são escritores falam de suas experiências literárias e editoriais

Abonico Smith

 

Quem canta ou toca algum instrumento sabe muito bem o quanto é possível criar maravilhas com infinitas combinações de 12 notas musicais. Quem gosta de escrever e ler na língua portuguesa também tem, mesmo que intuitivamente, esta mesma noção de que tais infinitas criações fantásticas podem ser feitas com um universo um pouco maior de matéria-prima: apenas 26 letras. Agora imagine uma pessoa que domine estas duas habilidades e seja capaz de, ao mesmo tempo, compor canções e publicar livros…

O Cândido saiu em busca deste pequeno universo de convergência de dons artísticos e foi atrás de nomes conhecidos em todo o país que se dedicam a desenvolver de forma simultânea carreiras na música e na literatura, tendo a veia pop comum a ambas. Gente que, por ter começado na área dos concertos e registros fonográficos, fez primeiro seu nome por meio de versos, acordes e melodias e, aos poucos, foi experimentando a outra vertente e acomodando uma ocupação paralela em seu currículo.

O mais famoso nome dessa turma é com certeza Tony Bellotto. Guitarrista dos Titãs há quatro décadas, ele aproveitou uma grande pausa nas atividades da banda ocorrida em 1994 para mergulhar de cabeça no universo literário. Enquanto seus colegas se dividiam entre projetos solo, grupos paralelos e até mesmo a formação de um selo alternativo chamado Banguela, ele colocou no papel uma aventura do personagem Remo Bellini e publicou, no ano seguinte, o primeiro de uma série de livros centrado neste detetive à moda antiga, guiado muito pelo uso da intuição e mergulhado no mundo contemporâneo de internet e celulares, inspirado por grandes criações semelhantes como Miss Marple, Hercule Poirot e Sherlock Holmes.

 

Bellini e a Esfinge fez tanto sucesso que, duas temporadas depois, veio uma segunda trama, Bellini e o Demônio. Foi o suficiente para dar empurrão a uma trajetória paralela que hoje já contabiliza uma dúzia de títulos nas livrarias e três adaptações para o audiovisual — os dois Bellinis iniciais para o cinema e o título mais recente, Dom (2020), para uma série de streaming.

Quanto às suas principais influências, Bellotto é enfático. “Adoro a literatura americana. A prosa seca obsessiva de Hemingway sempre me instigou demais, a sua premissa do essencial, do objetivo, do direto. Ele corta todos os adjetivos, por exemplo. Também admiro muito as histórias de não ficção de Truman Capote e Don deLillo. O que fizeram em A Sangue Frio e Libra é algo incrível”, diz. Sobre a veia brasileira, ele destaca a predileção pela era regionalista dos anos 1960 e também pelas obras de Rubem Fonseca. “Ele transformou nossa literatura em algo urbano.”

A urbanidade está bastante presente em Dom, possivelmente o principal sucesso entre os títulos escritos pelo guitarrista até aqui. Tanto que chegou às prateleiras em 2020 e não levou sequer um ano para ganhar versão audiovisual, em série de nove episódios disponível na plataforma de streaming Amazon Prime. A trama — uma ficção baseada em fatos verídicos, nos moldes de Capote e DeLillo — gira em torno de um policial que se dedica à luta contra as drogas e seu filho, que passa de jovem usuário de cocaína a um dos mais procurados traficantes do Rio de Janeiro.

Dom é um caso particular em minha trajetória. Nasceu como um roteiro de filme. No meio do caminho decidi fazer um romance. Daí despertei de novo a vontade no Breno Silveira, que seria o diretor do longa-metragem e acabou fazendo a série. Só que a história não é só minha. Vem da minha visão sobre os acontecimentos, do outro livro escrito pelo Vítor, que foi a pessoa que me procurou para que eu pudesse contar a história de seu filho, e do que o Breno ouviu do Vítor junto comigo”, conta Belotto.

edfgaf
Tony Bellotto. Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação

 

O fato de Dom já ter nascido com os DNAs das linguagens e formatos (filme, série, livro) praticamente juntos é um sinal de que Tony, ao contrário de muitos outros escritores, não torce o nariz quando se faz alguma adaptação das páginas para as telas. “Gosto muito da visibilidade que um título ganha no mercado quando ele é transformado. Tenho aquele prazer pessoal em ver como o diretor acaba transpondo a obra para sua visão particular, como os personagens ganham vida de acordo com a interpretação dos atores. Também entendi logo cedo, quando era só um leitor, que filmes e livros são coisas bem diferentes. Já tomava como exemplo disso o que Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock faziam no cinema. Filmes costumam se fixar somente em uma determinada parte do livro. Dou esse desconto por causa do limite de tempo nas telas.”

 

Variedade estilística 

Quem também possui extensa carreira como autor literário é Thedy Corrêa, que há três décadas e meia é o frontman da banda Nenhum de Nós. O número de títulos publicados pelo baixista e vocalista gaúcho já chega a cinco e o que chama a atenção nesta trajetória é a variedade estilística. O primeiro, Bruto, de 2006, é composto por poemas / canções e pensamentos que parecem ter saído de um diário íntimo e pessoal. De lá para cá vieram reflexões acerca de fatos e curiosidades espalhados por toda a sua vida, textos que complementam ilustrações produzidas para uma exposição de arte, diálogos diretos com o leitor insone das madrugadas e ainda o roteiro de uma história em quadrinhos.

O que abastece a produtividade da literatura feita por Thedy é exatamente o mesmo combustível das letras do Nenhum de Nós: histórias baseadas em ideias, ações e personagens comuns do cotidiano. “Sempre busquei isso nos meus versos: a contemplação da natureza humana. É uma coisa que vem desde cedo, quando os livros que lia quando jovem me jogavam para esse tipo de universo. Lia autores como Jung, Fante, Bukowski, o pessoal beat. Até encontrar em Caio Fernando Abreu um novo pilar, aquela coisa crua, dissecada e aprofundada em camadas. Além de sempre costumar evitar jogos de palavras ou frases feitas, gosto quando consigo criar com as palavras uma conexão com alguma imagem. Várias faixas do Nenhum de Nós são assim desde o início”, explica o autor do hit “Camila, Camila”, talvez um dos seus maiores exemplos da convergência entre o textual e o imaginário.

 

Raul Krebs / Divulgação
Thedy Corrêa. Foto: Raul Krebs / Divulgação

Boa parte de sua paixão pelas imagens, claro, vem do grande consumo de HQs. “Sempre li, desde pequeno. Nos últimos anos até reencontrei algumas coisas que desenhei quando garoto, personagens que eu mesmo criei. Meu sonho, aliás, era ser desenhista. Tanto que cheguei a publicar charges em um jornal gaúcho antes de seguir profissionalmente com a música”, relembra.

Esse processo de reaproximação com os quadrinhos rendeu a abertura de uma escola de desenhos em Porto Alegre e ainda o lançamento dos dois títulos mais recentes dele. Na HQ O Segredo da Floresta (2016), ele e o desenhista Felipe Nunes contam a história de um casal de irmãos “postiços” que contrastam em desejos e sentimentos quando a nova família acaba unida — ela não se adapta à chegada de novos integrantes ao seu núcleo, enquanto ele está louco para desbravar as novas possibilidades e estabelecer novas conexões. Já em Imersão (2020), Thedy assina as histórias de suspense inspiradas nas gigantes pinturas de Renato Guedes e, de forma curta, quase como uma legenda, atiçam o leitor a procurar ligações entre os personagens separados por várias décadas.

Paralelamente ao aceno às imagens, Corrêa continuou próximo da paixão literária de outras formas. Para o amigo e diretor teatral Zé Adão Barbosa, criou a trilha sonora para o musical O Apanhador, com personagens e histórias baseadas no universo do escritor J.D. Salinger, mais precisamente sua obra mais famosa, O Apanhador no Campo de Centeio. Ao vivo, uma banda formada especialmente para o espetáculo comandava as canções. Na gravação das dez faixas em estúdio, que estão disponíveis no Spotify, ele se juntou ao mesmo time de jovens instrumentistas porto-alegrenses.

Ainda no terreno musical, Thedy é um dos vértices do trio paralelo Venus in the Sky, mais voltado para as sonoridades do indie pop e do eletrônico, que vem soltando aos poucos suas músicas em plataformas de streaming de áudio com respetivos vídeos na página oficial do YouTube. Uma destas canções chama-se “John Fante’s Head” e seus versos questionam — e tentam desvendar — o que estaria por trás da mente criativa do cultuado escritor norte-americano.

 

“Também estou ensaiando umas novidades no universo do livro”, antecipa o múltiplo escritor e músico. “Uma destas novas obras virá espelhada na minha experiência como palestrante, quando falo desde a história da música até a possibilidade de melhorar com ela o ambiente de trabalho. Aqui eu fiz uma imersão em estudos acadêmicos para me aprofundar nos assuntos. Também quero muito escrever algo na linha do thriller. Sempre fui muito fã de mistérios. Nos tempos de colégio eu devorava autores como Lovecraft e Poe e romances policiais. Ultimamente, por sugestão de um grande amigo editor gaúcho, venho mergulhando no universo de Stephen King. Gosto muito da maneira que ele aborda a irrealidade e os extremos do comportamento humano.”

 

Quase por acaso 

Outro nome com bastante experiência na arte de se dividir entre palavras impressas e outras cantadas é Fernanda Takai. A mineira, lançada há 30 anos junto ao grupo Pato Fu (que continua em plena atividade, aliás) e que mantém trabalho solo em paralelo, começou quase que por acaso sua trajetória literária. “Volta e meia eu era chamada por alguma revista para escrever um texto. Publiquei na Marie Claire, Pais & Filhos, Quatro Rodas, Playboy e até mesmo na Globo Rural. O pessoal do Estado de Minas, atento a essa movimentação, fez um convite para eu escrever contos e crônicas no jornal. Daí para saltar aos livros foi um pulo”, relembra. Hoje ela contabiliza quatro título lançados: as coletâneas Nunca Subestime uma Mulherzinha (2007) e A Mulher que não Queria Acreditar (2011) e outros dois direcionados ao público infantil, A Gueixa e o Panda Vermelho (2013) e O Cabelo da Menina (2016).

Para Fernanda, a atividade da escrita começou como uma possibilidade de escape da carreira pela qual ficou conhecida em todo o país. “Quando escrevia as colunas, quase nunca colocava a música como elemento principal. Sempre foquei mais na vida ordinária, nas outras coisas que também acontecem comigo ou como as percebo. Temas como viagens, comida, problemas do consumidor”, explica. “Claro que uma vez ou outra falei sobre personagens da música, mas não sobre ela em si. Quando aconteceu o acidente com o Herbert Vianna, escrevi sobre o ocorrido, não sobre os Paralamas e a carreira deles. Fiz outro sobre a Amy Winehouse e a vontade de dar a mão a ela quando estava morrendo. Não é só o lado bom de ser alguém do meio musical. Quero que quem esteja lendo chegue ao fim de um texto meu por causa do texto em si, não pelo fato de eu ser cantora.”

Claro que a experiência da maternidade — Fernanda é mãe de Nina, hoje uma jovem de 18 anos prestes a entrar na universidade e que já ilustrou a capa do último livro publicado pelo avô (o pai de John Ulhôa, marido de Takai e também cofundador do Pato Fu) — inspirou-a a enveredar às obras infantis. O Cabelo da Menina, segundo ela, veio explicitamente da relação cotidiana das duas. “Muitos fatos narrados ali são verídicos, mas com desfecho diferente. Na verdade, a mãe acaba sendo mais liberal no livro. Foi uma forma de tentar me redimir”, brinca, afirmando ser uma tentativa de se modificar com o livro. “Ali estão várias revelações do meu modo de pensar que veio com a maternidade. E a relação com a mãe que eu também tenho. Assumo totalmente isso, o que é muito maluco. São as coisas misteriosas da arte.”

Takai está preparando agora uma novidade que chegará em breve às livrarias. “São escritos curtos que estão em negociação”, adianta, sem querer entrar muito em detalhes mais específicos. “Procuro escrever um pouco todos dias, sem parar de fazer isso. Quero exercitar aqui meu bom humor e um senso que é crítico, mas não muito ácido.”

Exercício constante — desta vez de leitura — também foi o que lhe garantiu o repertório variado. “É técnica que se aprende. São fundamentos que vão sendo conquistados. Isso forma o prazer de ser leitor. A mesma pluralidade que procuro ter na música também acontece como leitura. Começou nas prateleiras dos meus pais. Minas já tem aquela tradição de grandes cronistas do dia a dia. Aliás, em geral, a literatura brasileira é muito boa”, sustenta a fã de nomes como Clarice Lispector (“já li quase tudo o que ela fez”), Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado e Antonio Callado. E uma prova de sua diversidade são as duas obras à qual ela dedica sua atenção neste momento: O Livro do Travesseiro, clássico da literatura japonesa escrito no final do século X, e um mangá de terror com a assinatura do também nipônico Junji Ito, presente dado por Nina.

 

svasva
Fernanda Takai. Foto: Weber Pádua / Divulgação

 

Primeira viagem 

Neste seleto grupo de músicos-escritores também encontram-se marinheiros de primeira viagem. Dois deles, por sinal, estão gostando tanto da experiência que já confessam em alto e bom som já estarem se preparando para mais lançamentos literários em breve.

Vocalista e criador do hoje trio Vanguart, Helio Flanders finalizou o texto de sua obra de estreia em 2018, durante um tempo de autoexílio passado em solo italiano. “Nunca tinha feito um processo semelhante a este, de mudar toda a minha rotina. Acordava entre 10 da manhã e meio-dia, escovava os dentes e aproveitava a cabeça vazia do dia para escrever. Muitas vezes até mesmo para fazer trechos desconexos com o livro no processo de feitura dele”, conta.

Manual para Sonhar de Olhos Abertos saiu durante a pandemia, já em 2021. Segundo o autor, é uma obra híbrida. “Pode se considerar um romance, mas nada tradicional. São reflexões do protagonista, algumas horas misturadas com poemas. Diria ser mais um ‘romance sentimental’, daqueles em que o texto não quer dizer muita coisa do exterior. O que acontece importa menos do que aquilo se sente.”

Flanders garante que o personagem Pipico de seu livro não o representa, mas sim “o mundo ao meu redor. Como, por exemplo, gostar de ouvir a banda Charme Chulo”. Muito do que está ali traduz experiências vividas na cidade de São Paulo, onde reside há quase duas décadas, e de suas viagens — principalmente um mochilão feito aos 18 anos de idade na Bolívia e que durou cerca de nove meses. “Tudo isso ganha vida nos personagens, não pertence somente a mim”, esclarece. “Não tinha vontade de fazer algo que não fosse ficção, que ficasse restrito somente a uma compilação de poemas ou memórias.”

O parto do trabalho de estreia, para ele, foi “muito gostoso”, justamente pelo fato de tirar de si o peso de justificar a sua própria vida. “Claro que no início do processo eu não escapei de passar por aqueles questionamentos de vaidade, de me perguntar se alguém iria gostar lá no final. Quando cheguei à conclusão de que não deveria escrever tendo ninguém ou nenhum tipo de leitor em mente, e sim me dedicar àquilo que eu mesmo gostaria de ler, me soltei e me diverti de verdade. Descobri a nova ocupação e me permiti passear como músico”, complementa.

Para fazer Manual para Sonhar de Olhos Abertos, Helio levou dois anos no total. “Escrever foi fácil, saiu tudo muito rápido. O que levou mais tempo depois foi ficar aparando as arestas.” Por isso, ele projeta para 2023 o lançamento do próximo livro, que, muito provavelmente, será o miolo de uma trilogia.

 

Metabiografia 

Quem também quis fugir de uma narrativa convencional de memórias da carreira profissional foi o músico e ator gaúcho Hique Gomez, mais conhecido do grande público como o violinista Kraunus Sang do espetáculo Tangos & Tragédias, apresentado ininterruptamente por 29 anos — até a inesperada morte do seu companheiro de cena Nico Nicolaiewsky, o acordeonista Maestro Pletskaya, aos 57 anos de idade, por causa de uma leucemia descoberta semanas antes.

Sua estreia literária poderia ser uma mera história do Tangos & Tragédias ou mesmo algo mais extensivo, pegando sua carreira profissional como um todo, desde antes da formação até depois da partida do parceiro. Contudo, Para Além da Sbornia (2019) é uma metabiografia. “Explico o teatro hiperbólico através de teorias da psiquiatria, por meio do círculo de Jung”, conta. “Além do teatro hiperbólico tem o eu fracassado, aquele que sempre revela os nossos traços que teimamos em querer esconder sempre. Tudo aquilo que nós, como sujeitos, reprimimos e não queremos externar. Por exemplo, o ridículo e a mágoa. Então esse teatro da sombra acaba ligado às práticas da construção de um clown pessoal. Todos nós temos um clown. Kraunus Sang é o meu.”

 

rtyujer
Helio Flanders. Foto: Nina Bruno / Divulgação

Hique continua discorrendo sobre o alterego. “Toda essa carga de informação eu construí quando fazia terapia. Coloquei muito em prática isso quando eu e Nico fazíamos longas temporadas do espetáculo, sobretudo em São Paulo. Muitas vezes era um nível grande de demanda diária. Todo dia a gente acordava, escovava os dentes e já colocava a roupa do personagem para sair. Ficava o dia inteiro assim porque tinha de ir não sei onde para dar entrevista, aparecer na televisão… Era performance como Kraunus Sang o dia todo, até terminar o espetáculo à noite.”

Para ele, a principal dúvida foi como colocar tudo isso no papel. Como manter na escrita o mesmo traço espontâneo do espetáculo que o tornou famoso em todo o país? A solução, então, foi recorrer à base milenar da transmissão das narrativas: a tradição oral. “Muitas pessoas que leram o livro me disseram que pareciam que escutavam eu falando e discursando sobre as coisas.” A técnica, entrega, foi aprendida usando o próprio DNA — Gomez é pai da autora Clara Averbuck. “Ela que é mesmo a escritora da família. Sempre fez essa coisa de misturar coisas de si com os personagens das histórias, desde a adolescência. Aprendi a falar sobre mim mesmo com a Clara.”

 

Para futuras publicações, há opções sendo traçadas pelo músico. “Tenho algumas possibilidades literárias em desenvolvimento. Há várias histórias em construção. Uma se chama A Árvore dos Violinos, que conta a história de um advogado que encontra documentos ligados a uma sociedade de músicos, que, quando crianças, receberam sementes que cresceram ao mesmo tempo que se desenvolviam como violinos, dando aquela madeira espetacular. Aqui o discurso trará não só música, mas também elementos da filosofia e do estudo da cabala, que pratico há muito tempo. Outra ideia é fazer um livro menor em cima de uma palestra que costumo dar, que terá a ótica da psicologia e da psiquiatria em cima da história da Sbórnia. Enfim, como a gente viveu muito junto esse tempo todo, mantendo um traço tênue de ligação entre nós dois.”

Por falar em Kraunus e Pletskaya, será que ambos não renderiam ainda personagens para novos livros? “Para Além da Sbornia já poderia se transformar em um bom roteiro de uma segunda animação com os personagens. Existe também uma websérie no YouTube que conta a história da Sbórnia. Mas, sim, acho que é possível sim que sejam criadas outras histórias de ficção, desta vez em livros, envolvendo os dois”, conclui.

 

Movimentação no mercado

A reportagem do Cândido entrevistou apenas cinco bons exemplos de músicos de ofício que passaram a se aventurar simultaneamente em experiências literárias. No pop verde-e-amarelo há ainda outros bons exemplos desta dicotomia artística. Os rappers Emicida e Gabriel, O Pensador já têm até prêmios recebidos por publicações voltadas a leitores infantis. Humberto Gessinger (ex-Engenheiros do Hawaii), Otto (ex-mundo livre s/a), Marcelo Yuka (produtor, baterista e letrista de bandas como F.UR.T.O. e O Rappa, já falecido), Carlos Lopes (Dorsal Atlântica), Rodrigo Carneiro (Mickey Junkies) e Leonardo Panço (que tocou nas bandas underground cariocas Soutien Xiita e Jason, além de ter criado o selo Tamborete, por onde lançou a carreira da cantora Pitty) também colocaram em páginas impressas um misto de pensamentos, poesias, sentimentos, diários de viagens e até mesmo quadrinhos, fotografias, trilhas sonoras e artes gráficas.

Nilson Paes, que há cinco anos criou ao lado do radialista, escritor e ex-VJ da MTV Brasil Fabio Massari a editora independente paulista Terreno Estranho, vê com excelentes olhos esta movimentação no mercado das letras nacionais. Para ele, é natural que esta tendência seja incorporada no Brasil também. Afinal, de uma década para cá, o terreno das notas musicais vem se mostrando pequeno para a vontade de criar e se expressar destes autores. “O leque é muito grande na área literária. E o músico está cada vez mais com vontade de mostrar que não carrega apenas aquela imagem de popstar. Ele também é um ser humano comum, com passagens da vida diferentes daqueles momentos de glória em cima do palco.”

Tem quem domine a ficção com perfeição, como é o caso de Nick Cave e Gibby Haynes (Butthole Surfers). Outros, como Lee Ranaldo, guitarrista de Nova York que fez história com o Sonic Youth, prefere colocar no papel suas impressões durante determinados momentos de bastidores de turnês. Já Mark Lanegan (que morreu no final de fevereiro) e Bobby Gillespie (o gênio escocês por trás do codinome Primal Scream) preferem focar no âmago de um determinado momento de sua própria biografia e dilacerar aquilo em parágrafos e capítulos. Por sinal, todos esses autores pertencem ao catálogo de publicações traduzidas e que já foram ou ainda serão lançadas em breve pela Terreno Estranho.

“Outro fator interessante é que, através destas publicações, estes ídolos fazem com que seus fãs retomem ou criem a força e a vontade de ler. Existe até um pessoal mais íntimo do universo literário que sobe no pedestal e torce o nariz para quem vem do mundo da música. O que é bom também, porque este nicho pop acaba criando uma forte subcultura jovem”, aponta, de maneira taxativa. Tal qual acontecera, aliás, durante o nascimento do rock’n’roll lá nos anos 1950, que ajudou a formatar o conceito de adolescência que não existia antes. E essa mistura frenética dos dois foi dar no que conhecemos hoje como música pop.

 

 

Abonico Smith é jornalista especializado em arte, cultura e comportamento, com 35 anos de atuação ininterrupta na área. Criou em 2002 e edita desde então o website Mondo Bacana e já publicou e atuou em diversos veículos de circulação no Paraná e no Brasil. Também atua como professor de Comunicação.