REPORTAGEM | Brasil de dentro 28/06/2021 - 13:02

Cenário de clássicos, o interior do país continua sendo uma fonte de inspiração para autores contemporâneos

Hiago Rizzi

“No sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoiévski, Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem ser separados”, disse Guimarães Rosa, em 1965. A linguagem inovadora fez de Grande Sertão: Veredas (1956) um dos romances mais importantes da literatura brasileira. Experimental, Rosa desloca a narrativa regionalista, muitas vezes de uma visão sobre os personagens, para a voz do jagunço Riobaldo, em primeira pessoa. É uma verdadeira enciclopédia do sertão, como apontou o escritor Miguel Sanches Neto ao incluí-lo em sua lista dos 10 livros mais importantes da literatura brasileira, publicada na Revista Bula.

Antes e depois de Grande Sertão, muitos autores se debruçaram sobre os interiores do país. Os exemplos são numerosos, mas pela diversidade cultural própria à extensão e formação do Brasil é preciso resistir à tentação de colocar todos num mesmo panteão, ou arredondar a fórmula a uma “literatura do interior”. Para Sanches Neto, professor e reitor na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o regionalismo não é uma saída literária ou estética. “A questão que se coloca para o escritor não é o espaço onde aparece o seu livro, mas como consegue transformar suas experiências naquele espaço em uma linguagem e com uma estrutura simbólica que faça o leitor ler além do espaço: ler o ser humano de maneira completa”, assinala. 

Nesse sentido, ele próprio é um escritor do interior, numa relação ambígua de rejeição e afirmação. Natural de Peabiru, cidade com cerca de 15 mil habitantes, Sanches Neto se formou como leitor em bibliotecas públicas — foi nessa fase que a ida para um grande centro se tornou um projeto de vida. O retorno ao interior do Paraná, em Ponta Grossa, virou uma temática para a literatura: “Foi no interior que eu passei a infância e a juventude, que são os dois momentos mais importantes da vida de qualquer pessoa”. A autoficção Chove Sobre Minha Infância (2000) e outros livros são memórias desses “espaços primeiros”.

A cena literária paranaense a que pertence Sanches Neto (1965), Domingos Pellegrini (1949), e até mesmo Paulo Leminski (1945-1989), que vai a São Paulo mas retorna a Curitiba, é marcada pela permanência dos escritores no Paraná. “O que é interessante é uma literatura com denominação de origem, que de alguma forma se vincula a um espaço, mas não para ficar preso a ele — é sempre em confronto com o resto do mundo”, completa o autor, numa ideia de universalização que pode ser associada a uma fala de João Cabral de Melo Neto: “O homem só é completamente homem quando é regional”.

Outros fenômenos, observados em várias áreas de conhecimento, se unem ao debate sobre esses espaços de produção e seus desdobramentos: a diáspora, a desterritorialização, a globalização e o advento da internet, para citar alguns. Fato é que autores contemporâneos ainda se voltam ao interior, e garantem lugar na crítica. O romance rural Torto Arado (2019), por exemplo, rendeu ao baiano Itamar Vieira Junior os prêmios Leya, Jabuti e Oceanos. [Leia a entrevista com autor aqui]


Onde o real passa por cima
 
Quando a pesquisadora Juliana Veloso Mendes de Freitas defendeu sua dissertação de mestrado sobre o Romanceiro da Dona Beja (1979) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2015, o nome Maria Lúcia Alvim já era tomado mais como memória do que pelo tempo presente. O poeta Ricardo Domeneck pensou se tratar de um engano ao ler o nome em uma mensagem do colega Guilherme Gontijo Flores, que deveria estar se referindo à Maria Ângela Alvim. Não era um equívoco.

A surpresa dos dois com o conteúdo de Vivenda (1959-1989) aumentou com o rastreio da própria Maria Lúcia, vivendo em Juiz de Fora. Em fevereiro de 2020, Domeneck foi encontrá-la. No início de março, foi homenageada por autores em uma livraria do Rio de Janeiro. No evento, o escritor carioca Paulo Henriques Britto revelou ao amigo que tinha um inédito da poeta em mãos, instruído a publicar somente após sua morte. Então começou o trabalho para a publicação do livro escrito em 1982 — Batendo Pasto saiu em junho do mesmo ano, pela Relicário Edições.

Batendo Pasto é escrito à rés do chão, no cotidiano da roça. A linguagem empregada por Maria Lúcia, entretanto, é de uma dicção elevada. “Na poesia dela não há uma concorrência entre forma e conteúdo'', destaca Juliana. O Romanceiro, lançado 25 anos depois do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, narra a saga da cortesã Dona Beja, personagem mítica ligada à formação do Triângulo Mineiro. Nas obras, transita entre o verso livre e a métrica, termos interioranos e palavras em outros idiomas, além da referenciação e ironia: “É uma leitura de camadas. Os livros dela trazem uma biblioteca, mas as estantes não estão na frente dos poemas. É possível reler, fruir e caminhar com o texto, daí o frescor”, aponta a pesquisadora.
 

Maria Lúcia Alvim lê “Manhã sem rusga”, de Batendo Pasto (2020). Créditos: Revista Escamandro


Publicado pela coleção Claro Enigma, de Augusto Massi, Vivenda reuniu, além do Romanceiro de Dona Beja, outros quatro títulos anteriores lançados a partir de 1959. São várias as explicações para o aparente desaparecimento de Maria Lúcia Alvim, explicitadas nos paratextos do último lançamento. Primeiro, é uma dos irmãos Alvim — a mais nova de Francisco, ícone da geração mimeógrafo, e Maria Ângela, o que pode ter gerado uma sombra perante os leitores e a imprensa. Ao contrário dos irmãos, não foi marginal, modernista ou concreta, ainda que bebendo de todas as fontes. Por fim, a própria personalidade arredia. Deixou Araxá e viveu o Rio na década de 1950, como poeta, artista plástica e tradutora, e voltou para Minas no fim dos anos 1970. Isolamento que o carioca Leonardo Fróes, que vem sendo revisitado, também buscou para a escrita e tradução.

Em entrevista à Tribuna de Minas, no ano passado, Maria Lúcia disse ver Batendo Pasto como um filho distante, e respondeu sobre a imagem do campo naquele momento: “Eu me sinto segura no chão dos matos, da natureza, não no chão das cidades. [longe do chão] É como se eu estivesse sozinha, comigo mesma. Ele, então, passa a ser eu”. A escritora morreu em fevereiro, aos 88 anos, vítima da Covid-19. Domeneck e Gontijo Flores trabalham na reedição das obras da autora, e em dois inéditos.


Cartografias para um não-estado

Marcelo Labes, 37, arrisca um palpite para o lugar onde nasceu, vive e de onde escreve: “Santa Catarina é um não-estado que precisa muito se conhecer. É doloroso, a gente descobre isso na terapia. Enquanto continuar se negando e negando a própria história — e esse é o pior sintoma que poderíamos ter aqui — vamos continuar navegando sem leme, num mar revolto. Só lidando com essa história é que se pode mudar de rota, e tem muita gente interessada em que ela não mude.”

A declaração pode soar como ressentimento, e talvez o seja. Pela literatura, porém, o escritor rejeita o rótulo de “fascistoides” delegado com frequência aos catarinenses. Desde 2018, publica um livro por ano com um cenário comum. É na cidade de Blumenau, no Vale do Itajaí, mais exatamente no bairro Progresso, que os poemas de Enclave (Patuá, 2018) se inscrevem. O romance Paraízo-Paraguay (2019), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e que teve um capítulo publicado no Cândido, também toca feridas profundas da cidade lembrada pela Oktoberfest. 

Depois de anos rondando a morte, deitada numa cama e sem se comunicar, a oma (avó, em alemão) de uma família que mora no fictício bairro Paraízo, desata a falar. E nada impede que Olga quebre o silêncio, um dos pactos invisíveis dos interiores. Conta, ao longo de dias, sobre a história da família, que é a história da própria cidade e da indústria têxtil em Blumenau. Inconveniências que muitos preferem manter na clausura da memória: a colonização, a Guerra do Paraguai, a proibição da língua alemã durante a Era Vargas e, enfim, a ditadura militar.

A seguir vieram Três Porcos (2020) e Amor de Bicho (2021). Ainda em 2021 saem os poemas de Alfredo Labes, em homenagem ao pai falecido neste ano, e vem sendo escrito um novo romance histórico para 2022 — todos pela Caiaponte, selo do autor desde Paraízo-Paraguay. Se para Cida Pedrosa, vencedora do Jabuti com Solo Para Vialejo (2019), “há uma tendência de achar que tudo que se escreve no Sul-Sudeste é projeto de Nação, e tudo o que é escrito a partir do Nordeste é regional” (como disse ao Suplemento Pernambuco), Labes desafia a visão de riqueza e prosperidade espalhada aos quatro ventos sobre estas terras.

Para o autor, a capital Florianópolis, onde vive hoje, é uma ilha geográfica e simbólica (“saí de um enclave e entrei em outro”), o que influencia a constituição de uma cena literária profissional não-consolidada no estado, ao contrário dos vizinhos. “SC nunca teve uma capital no sentido estrito, para aglutinar e espargir a cultura produzida aqui”, ressalta. As colônias, ao longo do território, se mantiveram distantes. Mesmo assim, é capaz de listar em poucos minutos quase dez autores, de leste a oeste, como Carlos Henrique Schroeder, em Jaraguá do Sul, e o chapecoense Gustavo Matte.

Se há o infortúnio do ‘não-estado’, as relações são reais: “Não preciso abraçar e elogiar compadres — todos são bons”, garante. O mesmo se estende aos colegas de profissão que conheceu pelo resto do país. Os prêmios abriram portas para Labes, que não tem seus títulos em livrarias físicas. Ele recorre ao geógrafo Milton Santos, e a tecnologia na mão das pessoas, para pensar como a internet pode quebrar as barreiras do eixo Rio-São Paulo. 
 
Para ler mais

Os entrevistados para esta reportagem foram convidados a indicar autores e leituras que falem sobre o interior ou a partir dele.

Miguel Sanches Neto recomenda O Homem Vermelho, Os Meninos Não Crescem e Paixões, livros de contos do londrinense Domingos Pellegrini, e a obra do mineiro Luiz Vilela. 

Juliana Veloso Mendes de Freitas lembrou dos autores Adão Ventura (MG), Max Martins (PA), Leonardo Fróes (RJ), Mário Faustino (PI) e Rodrigo Lobo Damasceno (BA).

Marcelo Labes indica os catarinenses Nuvem Colona e Demo Via, Let's Go, de Gustavo Matte; Domingo, de Eduardo Sens dos Santos; Cabeça de José, de Patrícia Galelli; Sagu, de Mariana Berta e Do Lado de Dentro do Mar, de Daniela Stoll.