Poema | Cidinha da Silva 27/08/2020 - 11:28

A casa vazia

Os dias de pesadelo são os piores. Pesadelo reforça o sentimento de solidão, de desamparo, mas as noites de sonho nem sempre são boas. Sonhar é trabalhar no que fica adormecido, escondido, também cansa.

Acordar é me saber viva na casa vazia, cambalear de sono até a varanda para assistir o Sol nascer, iludida de que você surgirá e abraçará minhas costas, como o rastro de fumaça perfumada que ainda ficou nos primeiros dias. Deixei as janelas fechadas pra que o cheiro do teu cachimbo não fugisse pelas frestas. Guardei as cinzas de teu fumo de ervas numa caixinha pra respirar quando tua ausência fosse insuportável.

Nessa hora triste do mundo, as notícias das ilhas humanas chegam pelas telas, pequenos visores a promover encontros. De ti, nenhuma notícia, seguramente porque as crias não te permitem ser a ilha que gostarias, e gostar delas é uma coisa, gostar de ser mãe é outra.

Queria te contar uma novidade: agora sou parceira da nossa cantora predileta. Ela musicou um poema do livro que você mais gosta. Quando recebi o áudio, ouvi a música por umas três horas seguidas, só eu e os fones, em segredo, enquanto trabalhava. Eu não queria que as paredes ouvissem, só faria sentido se pudessem contar pra você.  É bonita, um arranjo leve de piano pros meus versos sem rima.

Você está rindo, eu sei. Os poemas daquele livro são anteriores à tua chegada, é que a poesia, desde sempre, anunciava tua vinda.

Acho que você choraria ao ouvir a música, talvez chore ao ouvir meu amor derramado na voz da nossa cantora, meu poema seu, meu amor-você, Yauaretê-mirim.

 

CIDINHA DA SILVA é uma escritora e editora mineira. Publicou 17 livros em diversos gêneros, entre eles #Parem de nos matar! (2016) e Um Exu em Nova York (2019), vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional. Participou da coletânea de ensaios Explosão Feminista, de Heloisa Buarque de Hollanda, com um texto sobre feminismo negro, assinado em coautoria com Stephanie Ribeiro. É editora da Kuanza Produções e do programa do YouTube Almanaque Exuzilhar.