PERFIL | Waltel Branco 31/01/2024 - 12:01

Um gênio oculto entre nós

Waltel Branco transitou pelos principais gêneros e movimentos musicais, mas permaneceu alheio ao grande público

 

por Felippe Aníbal

 

Waltel Branco
Waltel Branco. Foto: Arquivo pessoal

 

Da mesa em que eu estava, vi o senhorzinho se aproximar devagar, apoiado a sua bengala metálica. Tinha aura de artista: trazia a barba branca por fazer, vestia um casaco grosso e tinha um chapéu Panamá metido à cabeça. Saudou-me, chamando-me de “meu rapaz”. Tivemos nossa primeira conversa ali, num dos cafés da Praça Osório, sob sol entre nuvens, no fim de uma manhã de março de 2015. Meu interlocutor, em questão, era o maestro Waltel Branco. Hoje, olhando em retrospecto, pergunto-me se quem o visse passeando calmamente pelas ruas de petit-pavé do centro saberia que ali ia um gênio. Tenho para mim que não. Waltel vivia oculto em um semianonimato, sem que a História tivesse feito justiça à sua história.

Eu, mesmo, só conhecia microfragmentos da trajetória do velho maestro. A partir daquele café inaugural passei a frequentar assiduamente o apartamento 222 do Hotel Globo, ali nos arredores da Osório, onde Branco residia. Aos poucos, imergi na história do personagem, com declarado objetivo de contar sua vida – e que se materializou no livro Waltel Branco – O Maestro Oculto, lançado em novembro passado pela Banquinho Publicações. O gênio foi se revelando ali naquele quartinho de hotel, a cada entrevista. Mas também expunha sua(s) face(s) a cada café, a cada almoço ou a cada passeio pela Rua XV, em que era, invariavelmente, saudado com deferência por quem quer que o reconhecesse: “Olá, maestro!”, “Boa tarde, maestro!”, “Como vai, maestro?”.

Logo, uma percepção se impôs: era possível contar a História da música brasileira da segunda metade do século XX para cá por intermédio da trajetória de Waltel. Eu explico. Como instrumentista, compositor, arranjador, maestro, diretor ou supervisor musical, Branco transitou pelos principais gêneros e movimentos musicais que eclodiram no Brasil e que influenciam nossa formação cultural. Nessa esteira, conviveu e/ou trabalhou com músicos, intérpretes e compositores que fizeram a música brasileira ser o que ela é hoje. Waltel esteve em todas: da bossa nova ao soul; do sambalanço ao jazz; do brega ao samba; do erudito ao popular. (Há quem trace um paralelo entre o maestro e Forrest Gump, personagem vivido por Tom Hanks no cinema, que testemunhou ou participou dos eventos mais representativos da história dos Estados Unidos).

Certamente, você já se deparou com um dos feitos musicais de Branco – ainda que não saiba que há dedo do maestro ali. Sabe Azul da Cor do Mar (Tim Maia), Bastidores (Cauby Peixoto) e Faz Parte do Meu Show (Cazuza)? Todas têm arranjos da lavra de Waltel. O “lerê-lerê” do tema de abertura da novela A Escrava Isaura (a música Retirantes) e o galope ritmado de Irmãos Coragem também são criação do maestro. Assim como a batuta de Branco conduziu a abertura original de Fantástico – O Show da Vida, as trilhas de Chico City, Vila Sésamo e da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Isso sem falar em trabalhos de Waltel com expoentes da magnitude de João Gilberto, Elis Regina, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Elza Soares, Novos Baianos, Alceu Valença, Zé Ramalho, Roberto Menescal, Djavan, Odair José, Alcione, Elizete Cardoso e tantos outros.

Essa vastidão plural, no entanto, implicou em efeitos colaterais para o escritor. É que Branco, por ter tido uma trajetória tão superlativa, considerava tudo normal – não importa se estivéssemos falando de personagens do quilate de João Gilberto, Dizzy Gillespie ou Elis, por exemplo. Tornava-se lacônico, sem dar grandes importâncias aos próprios feitos. Contava com simplicidade histórias que fariam (e fazem) brilhar os olhos de qualquer um. Para ele era corriqueiro. Nós é que nos impressionamos.

O assombro também se estende sobre quem é expert em partituras e escalas. A poeta e violoncelista Denise Emmer, que integrou o time de arranjadores da Globo, se maravilhava com uma característica de Waltel, que classificou como um traço de genialidade: ele compunha direto na pauta, sem ter qualquer instrumento por perto – apenas transcrevendo a música que ouvia dentro de si. O mais espantoso era que Branco era capaz de levar a cabo esse processo peculiar de composição mesmo em ambientes coletivos, barulhentos, em que o burburinho das conversas não o impedia de fechar-se em seu mundo. “Assim, só teve ele e Beethoven, né?”, disse-me Emmer.

Se é bem verdade que Waltel permanece à margem do grande público, o mesmo não se pode dizer em relação às entranhas do universo musical. Quem é do métier atesta a importância de Branco. Menescal se divertiu ao relembrar velhas histórias. Djavan abriu uma brecha em sua agenda, em plena gravação de Vesúvio, para falar comigo sobre o maestro. João Donato destacou o início de carreira de ambos, em Copacabana. Guinga chorou quando lhe dei informações do velho amigo, a quem não via havia anos. Odair José enfatizou conselhos que recebeu de Waltel e que carregou para a vida. Tito Madi destacou a dimensão humana de Branco. E assim por diante...

De minha parte, a revelação se concluiu em uma manhã, em que cheguei ao Hotel Globo e encontrei Waltel dormindo. Assim que acordou, o maestro me contou que havia sonhado com um mosquito que perseguia uma garotinha, ao som de uma música – um chorinho. Pediu, então, para que eu alcançasse seu violão. Tocou, então, a trilha do próprio sonho. Branco compôs dormindo. Tive a certeza de que eu presenciara algo extraordinário. O gênio continuava oculto. Entretanto, com meu livro, eu tentaria fazer jus à sua obra.

 

Felippe Aníbal (1981) é jornalista e escritor. Como repórter, publicou em veículos diversos, como revista piauí, The Intercept Brazil, Folha de S. Paulo, Valor e Plural. Vencedor Prêmio Imprensa Embratel, Prêmio Estácio de Jornalismo e Prêmio Fiep, além do segundo lugar no Prêmio Latinoamericano de Periodismo de Investigación.