PENSATA | Um poeta para se guardar 21/11/2024 - 14:40
por Rodrigo Garcia Lopes
Antonio Cicero Correia Lima (Rio de Janeiro, 1945 – Zurique, 2024) foi um dos poetas mais brilhantes de sua geração. Autor de livros notáveis como Guardar¹ (1996), A cidade e os livros (2002) e Porventura (2012), Cicero escreveu o poema “Guardar", hoje um clássico contemporâneo incluído no livro Os cem melhores poemas do século (2001). Ensaísta, filósofo e erudito, lia grego e latim e amava clássicos como Homero, Horácio e Ovídio. Morreu por suicídio assistido na Associação Dignitas, na Suíça, ao lado de seu companheiro de longa data, Marcelo Pies. Apenas o marido sabia de sua decisão; até mesmo sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima, foi comunicada apenas um dia antes. Cicero havia recebido o diagnóstico de Alzheimer em julho de 2023, mas, ainda muito lúcido, escreveu uma carta de despedida aos amigos explicando sua decisão. Nela, dizia: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.” Ele sempre defendeu a eutanásia e, em 2008, escreveu um artigo em sua coluna na Folha de S. Paulo sobre a “boa morte”.
Meu primeiro contato com sua poesia foi pelas canções que escreveu com Marina, especialmente “Fullgás” (1984). Depois, conheci seus poemas em livros e acompanhava seu blog Acontecimentos², onde ele escrevia sobre arte, filosofia, crítica, literatura, política e, claro, publicava poemas dele e de outros, sempre escolhidos com extremo bom gosto. Cicero também seguia a tradição dos poetas-críticos, refletindo sobre o ofício e a relevância da poesia, defendendo-a como uma arte e não mero entretenimento. Coisa rara hoje em dia, quando o poema costuma aparecer “disfarçado” na forma de prosa (ruim) empilhada em linhas cortadas aleatoriamente, ou refém de certas pautas, numa cena literária onde sobra pose e falta, muitas vezes, poesia. Nelson Ascher, poeta e tradutor de sua geração, resumiu: “Seus poemas reúnem o discurso filosófico que não se deixa engaiolar num prosaísmo árido e o cantabile de canções que nada têm de ingenuamente romântico”³. Sua formação filosófica embasava sua visão poética, diferenciando-o de outros poetas brasileiros: ele unia o rigor do pensamento à leveza da canção popular e à música das palavras (poesia).
Em seu ensaio “Sobre as letras de canções”, do livro Poesia e crítica, que resenhei para a Folha de S. Paulo em 2017, ele revisitava a velha polêmica sobre se letra de música é poesia, questão aparentemente resolvida com o Nobel dado a Bob Dylan, um ano antes. Sem deixar de explicar que o poema é uma estrutura autônoma, enquanto a letra é sempre parte de um conjunto maior, Cicero afirmava ser mais pertinente perguntar se “a letra de música pode ser um bom poema”. Ele relembrava que os poemas líricos da Grécia Antiga e dos trovadores provençais, hoje exemplos de grande poesia, eram letras de música. Para mim, se uma canção se sustenta no papel, é poema. Se um poema não se sustenta cantado, não é uma canção. Em toda grande canção há uma inter-relação simbiótica entre palavra, música e voz. Por isso, lembro-me do impacto de “Inverno”, composta em parceria com Adriana Calcanhotto, em 1994, uma pérola de nosso cancioneiro e um dos pontos altos do disco “A Fábrica do Poema”. Vale a pena republicá-lo aqui, tal como aparece em Guardar:
INVERNO
a Suzana Morais
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
***
Meu último contato com Antonio Cicero foi marcado por uma série de coincidências. No dia 6 de outubro, escrevi a ele de onde me encontro no momento, em uma residência de escritores na Suíça, mas sem dizer que estava aqui. Mandei um e-mail curto, cumprimentando-o pelo seu aniversário, como fazia todos os anos. Não demorou muito e ele me respondeu, agradecendo. A única coisa que me lembro é que era uma mensagem curta, generosa como sempre. Lembro de ter reagido com um “Nossa!”, pois tinha um tom mais emocionado que o habitual. No dia 23 de outubro, logo de manhã, fui surpreendido pela notícia de sua morte, na Suíça. Primeiro fiquei sem entender e, depois, sem acreditar. A coincidência é que, no mesmo dia em que ele estava fazendo seu suicídio assistido em Zurique, eu estava passando por Zurique, no fim de uma viagem de trem pelo país. Ao saber da notícia, chocado, imediatamente abri meu email em busca da mensagem e descubro que ela havia simplesmente desaparecido. Havia sumido, exatamente como Cicero, “à francesa”, como ele escreveu em uma de suas parcerias mais conhecidas com Marina (“Mas os momentos felizes / Não estão escondidos / Nem no passado e nem no futuro”).
Encontrei-o poucas vezes, uma delas na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2004. Sua energia boa, elegância e serenidade sempre me impressionavam, assim como sua voz calma, pausada, e sua gargalhada contagiante. Em 2011, no Festipoa em Porto Alegre, ele deu uma brilhante aula sobre a arte da canção, explicando como musicava melodias de parceiros como Adriana Calcanhotto, João Bosco e Marina, mostrando gráficos de escansão que usava para criar letras fiéis aos acentos da melodia.
Em 2012, escreveu uma orelha generosa para meu livro Estúdio realidade (2013). Cicero sempre foi receptivo ao meu trabalho na poesia e na canção, e percebo agora que era assim com muitos outros poetas. Essa generosidade e receptividade ao outro eram intrínsecas à sua personalidade, à sua virtú. Em um encontro em Curitiba, em 2011, conversamos longamente no hotel onde estávamos hospedados. Energizado, subi para meu quarto e escrevi um poema inspirado por nossa conversa. É com ele que termino minha homenagem a este grande poeta e letrista.
Antonio Cicero, onde quer que você esteja, tenha certeza de que iremos guardá-lo para sempre.
¹ Do verbo em latim guardare, que se originou de uma raiz germânica, wardôn, que significa “vigiar” ou “proteger”. Em português, significa “proteger”, “vigiar”, “zelar por algo ou alguém”, ganhando também o sentido de “preservar algo no interior de si”, carregando, portanto, um sentido simbólico de reter algo valioso, não apenas fisicamente, mas emocionalmente e intelectualmente, aspectos da palavra explorados em seu poema mais conhecido.
² Acessável em antoniocicero.blogspot.com/. Acesso: 04/11/2024.
³ “A exposição ambígua da poética”. Acessável em: www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/2/09/mais!/15.html. Acesso: 04/11/2024.
ESCRITO NUM HOTEL
Para Antonio Cicero
O que nos leva a escrever
Se até o tempo, escrita da mente,
Desmente estar ali para entreter
Até o tempo se fechar, até a luz se resumir?
O primeiro gesto que a detona
É o eco da palavra que a devora
Exibindo seu osso e seu recheio
Como vem, de seu impulso dono — ou dona.
É para confundir os registros
Que a luz num quarto se anuncia.
E é para tornar-se ainda mais lúcida
Que a mão, distraída, nos escreve. E para.
Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Seus últimos livros são O enigma das ondas (Iluminuras, 2020), Poemas coligidos (1983−2020) (Kotter, 2023) e a tradução Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire (Penguin-Companhia das Letras, Selo Clássicos, 2024).