PENSATA | Os 100 anos de James Baldwin 16/08/2024 - 14:04
Romancista, contista, poeta e ensaísta, o afro-americano James Baldwin, nascido em Nova York, teria completado 100 anos no último 2 de agosto. Morou até a adolescência no Harlem, bairro da comunidade negra. A infância foi marcada pela pobreza, pelo abandono do pai biológico e por abusos verbais e físicos por parte de seu padrasto. O escritor também teve que ajudar a mãe a tomar conta dos irmãos mais novos enquanto ela trabalhava. Na coletânea de ensaios intitulada Baldwin: Collected Essays, publicada por Toni Morrison em 1988, Baldwin relata, em um texto autobiográfico, que a literatura foi um refúgio. Enquanto apoiava um de seus irmãos num braço, no outro, segurava um livro. Escritora e afro-americana, Morrison também era amiga próxima de James Baldwin e publicou o livro um ano após o falecimento do escritor, em 1987.
A infância e adolescência de Baldwin foram também envoltas pelo protestantismo, praticado nas igrejas do Harlem e influenciado por seu padrasto, que era um pastor evangélico. O escritor, no entanto, acabou abandonando o protestantismo, por perceber que havia um lado comercial na religião, com o qual ele não concordava. Além disso, foi assediado por alguns pastores. Ao atingir a maioridade e decidir tornar-se escritor, Baldwin muda para o Greenwich Village, bairro novaiorquino onde moravam e circulavam os artistas iniciantes, assim como os outsiders e a comunidade queer. No Village, Baldwin fez amizades com outros artistas, como Marlon Brando, com quem chegou a morar junto. Foi pelas suas vivências no Harlem e no Greenwich Village que James Baldwin construiu o que é considerado o marco de seu território na literatura: o entrelaçamento da questão racial com a homoerótica. Nisso, Baldwin foi também o precursor.
O início da carreira, como escritor negro, pobre e sem formação acadêmica, foi marcado pelo enfrentamento do racismo e do preconceito social. Os primeiros escritos foram ensaios, que ele levava pessoalmente às redações de jornais, sendo recebido na maioria das vezes com desprezo e até deboche. O homem negro, baixinho, franzino e pobre, travou várias batalhas até conseguir o primeiro contrato para escrever um livro na editora Knopf. Seu primeiro romance, Go Tell It on the Mountain (1953) seguiu o padrão da literatura afro-americana, tratando apenas de questões raciais. A transgressão do status quo literário veio em 1956, com seu segundo romance, O quarto de Giovanni, que conta a história de amor entre dois homens brancos, o estadunidense David e o italiano Giovanni, que vão morar juntos em um quarto na periferia de Paris. Foi a primeira vez em que um escritor afro-americano tratava da questão homoerótica abertamente. O livro causou polêmica por seu conteúdo homossexual e por não ter personagens negros.
O romance O quarto de Giovanni foi escrito durante o autoexílio de Baldwin na Europa, principalmente em Paris. Devido ao forte racismo, acentuado pelo aperthaid, o início da década de 1950 foi um período difícil para os artistas afro-americanos, o que fez com que muitos deles se refugiassem em Paris, onde o preconceito era mais ameno. De volta aos Estados Unidos, para a publicação do romance, Baldwin foi criticado acerca da falta de personagens negros e pelo casal gay protagonista. Respondeu que era negro e escritor e que escrevia sobre quem e o que ele quisesse. Essa reação de Baldwin aos limites impostos pelo mercado literário e pela elite intelectual a um artista negro já era sinal do que viria a seguir: o enfrentamento do racismo e da homofobia, com o lançamento de seu terceiro romance, Terra estranha, em 1962.
A narrativa de Terra estranha, que se passa no Harlem e no Greenwich Village, trata das vivências de um grupo de amigos negros e brancos, que se envolve em relacionamentos inter-raciais, tanto heterossexuais quanto homoeróticos. Ou seja, já no início da década de 1960, James Baldwin inseriu na literatura marcadores de diferença, identidades subalternizadas de raça, classe, gênero e sexualidade que coexistem em uma única pessoa e que só vinte anos depois, com as feministas negras, a exemplo de Kimberlé Crenshaw e bell hooks, viria como um conceito: a interseccionalidade. Os personagens principais são mulheres negras e pobres, homens brancos e negros, também do proletariado. Por sua vez, os personagens masculinos têm algo a mais em comum: o homoerotismo. Os relacionamentos inter-raciais entre homens e mulheres, mas principalmente entre homens, em Terra estranha desestabilizaram o cânone literário notoriamente branco e heterossexual. Baldwin pavimentou, com este romance, o caminho para a literatura negra e homoerótica.
A literatura negra, como diz Conceição Evaristo, não é apenas aquela produzida por uma escritora ou escritor negro, mas a que também apresenta e discute a questão racial de forma crítica, a literatura que tem a consciência negra. Neste contexto, Baldwin também inovou ao colocar mulheres negras em posição de destaque em seus romances. Na literatura afro-americana, as personagens femininas negras costumavam ficar em segundo plano, sem voz ativa, ao passo que as de Baldwin se destacam por seu discurso antirracista e pelo enfrentamento à submissão ao homem e ao patriarcado. O romance Se a Rua Beale falasse (1974) é narrado sob o ponto de vista da jovem negra Tish, a protagonista. A obra ganhou uma versão cinematográfica em 2018, que rendeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante à Regina King, no papel da mãe da jovem. Dois anos antes, em 2016, escritos inacabados de Baldwin sobre sua relação de amizade e ativismo com Martin Luther King e Malcolm X serviram de inspiração para o documentário Eu Não Sou Seu Negro, filme que ajudou a reprojetar o nome do escritor no cenário internacional.
Por sua vez, o homoerotismo, de forma aberta e não apenas sugestiva, já havia sido trabalhado por escritores brancos, como Gore Vidal, com seu personagem também branco, Jim Willard, no romance A cidade e o pilar, publicado em 1948. Mas, para um escritor negro, era um fato inédito. Com Rufus, seu personagem masculino negro, que se envolve sexualmente com outros homens em Terra estranha, James Baldwin foi o pioneiro. Ele retomou a temática negra e homoerótica de maneira ainda mais forte e transgressora com os personagens masculinos em Just Above My Head (1978), último romance publicado por Baldwin e que só foi traduzido uma vez no Brasil, com o título de Marcas da vida, pela editora Nova Fronteira, dois anos após sua publicação original.
Outro fato interessante, ousado e corajoso, é que os personagens homoeróticos de James Baldwin, a começar com Giovanni, de O quarto de Giovanni, são libertários, desprovidos de culpas e tormentos. Em Terra estranha há, inclusive, um personagem que vive com outro homem e é descrito por Baldwin como andrógino. Jurandir Freire Costa, escritor, professor universitário e psicanalista descreve os personagens homoeróticos de Baldwin como desinibidos, em contraposição a personagens de outros escritores, entre eles Gore Vidal, Julien Green, Dominique Fernandez e David Leavitt, que são descritos como atormentados.
James Baldwin, como todos os escritores e escritoras negras, enfrentou um mercado que procurou silenciá-lo e foi ignorado pelo cânone, branco e racista. O escritor, contudo, passou por mais adversidades ainda quando sua obra passou a ser marcada pela diferença não apenas com relação à raça, mas à sexualidade, ao misturar negritude com o homerotismo masculino. Com mais diversidade, o preconceito é duplicado, pois Baldwin passa a enfrentar o racismo e a homofobia. Na atualidade, 100 anos após seu nascimento, James Baldwin finalmente está sendo reconhecido como um dos melhores escritores de todos os tempos. No livro O racismo ao vivo, de sua amiga e antropóloga Margareth Mead, publicado em 1973, Baldwin faz um comentário que define o que fez em sua literatura, ao unir de forma inédita e ousada negritude e homerotismo: o objetivo do poeta é escrever para subverter, para perturbar a paz.
Paulo Rogério Bentes Bezerra é Mestre e Doutor em Performances Culturais, nas Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Métodos e Técnicas de Ensino, pela Universidade Salgado de Oliveira. Bacharel em Letras-Inglês, Licenciado em Letras-Português∕Inglês, também pela Universidade Federal de Goiás. Sua tese, intitulada “Performances Negras e Homoeróticas na Literatura de James Baldwin” foi publicada e ganhou o Prêmio Visibilidade das Performances Culturais.