PENSATA | Afinal, João do Rio era racista? 29/02/2024 - 15:41

Artigo assinado por Carlitos Marinho analisa o perfil de João do Rio (1881-1921), um dos primeiros jornalistas modernos do Brasil

 

“Diante dos meus olhos de civilizado, passaram negros vestidos de Xangô”, disse João do Rio, pseudônimo criado pelo aclamado jornalista João Paulo Alberto Barreto. O contista, romancista, teatrólogo e conferencista é considerado o renovador da reportagem. De acordo com Luís Martins, estudioso do escritor carioca, João do Rio transformou os métodos de jornalismo no Brasil a partir de uma abordagem moderna de reportagem, focada nos aspectos sociais e humanos da vida urbana.

Para além desse conceito, minha motivação para analisar a obra de João do Rio surgiu a partir da leitura do livro dele, A Alma Encantadora das Ruas. No texto, é notável a forma preconceituosa que o autor trata as diferentes classes sociais da sociedade carioca. Além disso, outra inquietação que decorreu, é o quanto é pouco explorada essa faceta do jornalista. A partir de biografias sobre o literato e a pesquisa de Juliana Farias, João do Rio e os Africanos: Raça e Ciência nas Crônicas da Belle Époque Carioca, busquei entender os caminhos que levaram Paulo Barreto a se tornar o reverenciado repórter João do Rio.

João Paulo Alberto Barreto, conhecido mais pelo pseudônimo de João do Rio, nasceu no Rio de Janeiro no dia 5 de agosto de 1881. Segundo Luís Martins, João do Rio foi filho de mãe mulata1 (Dona Florência) e recebeu educação do pai (Coelho Barreto), que era branco, professor de mecânica e astronomia no Colégio Pedro II, e também positivista ortodoxo. Nessa época, o Rio fervia em prol da campanha abolicionista com os comícios inflamados de José do Patrocínio, que foi contraparente de Paulo.

Conforme João Carlos Rodrigues, autor da biografia de Paulo Barreto, há diversas evidências da participação da família de Paulo na campanha abolicionista. Isso inclui o altruísmo da avó, que gastava além de seus recursos para libertar escravos, e a participação do casal Coelho Barreto (pais de Paulo Barreto) em um concerto antiescravatura do maestro Carlos Gomes, realizado no salão da baronesa de Mamanguape, no bairro São Cristóvão.

Em 1897, enquanto ainda era adolescente, Paulo teve a oportunidade de visitar os bastidores do Teatro Recreio por meio de um médico próximo de sua família. Nesse local, estava sendo encenada a peça Capital Federal, escrita por Artur de Azevedo. Paulo tinha grande admiração por Azevedo, considerando-o "o homem que eu queria ser aos 11 anos". A experiência nos bastidores, com as luzes, música, cenário, coristas, e especialmente com a estrela Pepa Ruiz e o humorista Brandão, teve um impacto significativo em Paulo, transformando-o completamente. Durante esse período, influenciado pela visão materialista de seu pai, Paulo se voltou para a literatura realista, explorando obras de Balzac, Dostoiévski e Eça de Queiroz, conforme detalhado na biografia escrita por Rodrigues.

Depois de ter iniciado no jornalismo aos 17 anos em revistas sem tanta importância – como informa Brito Broca – Paulo ainda publicou no combativo jornal de José do Patrocínio, o Tigre da Abolição, sob o pseudônimo de Claude. Contudo, foi apenas em 1900 que Paulo Barreto ganhou projeção na imprensa carioca a partir de artigos sob o pseudônimo de João do Rio. Essa popularidade foi adquirida a partir de crônicas na Gazeta de Notícias que, posteriormente, seriam agregadas no volume As Religiões do Rio.

Em 1910, aos 29 anos, foi escolhido como membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a vaga deixada pelo poeta Guimarães Passos. Posteriormente, foi redator e colaborador no periódico O País. Em 1920, Paulo Barreto criou o jornal diário e matutino A Pátria, sediado no Rio de Janeiro, e o liderou até 1921, ano de sua morte. Na noite de 23 de junho, ao sair da redação e retornar para casa, ele faleceu de forma repentina dentro de um táxi. Constâncio Alves, seu sucessor na Academia Brasileira de Letras, ao assumir a cadeira que antes pertencia a Paulo, comentou que o excesso de trabalho foi o responsável pela sua morte.

Em sua obra Ordem e Progresso, Gilberto Freyre equipara os ensaios sobre as religiões no Rio de Janeiro, de João do Rio, a obras como Os Sertões, de Euclides da Cunha, O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco e Canaã, de Graça Aranha. O autor pernambucano destaca o valor jornalístico, literário e sociológico em As Religiões do Rio: “Talvez deva ser considerado o maior triunfo na arte da reportagem até hoje alcançado em língua portuguesa, com sucesso não apenas jornalístico, mas literário e até sociológico.”

Todavia, os valores atribuídos por Gilberto Freyre à obra de Paulo Barreto podem ser mais bem aprofundados, levando em conta que o jornalista observava a realidade como um indivíduo externo, não integrado socialmente ao ambiente que estava documentando. Para além desse distanciamento, em A Alma Encantadora das Ruas, por exemplo, é característico como o autor se refere aos negros sempre em terceira pessoa com “eles”, em contradição do “nós”, no caso de portugueses.

Conforme o biógrafo Rodrigues, ao examinar as fotografias de Paulo Barreto, percebe-se uma transição de uma criança de aparência branca para um adolescente com características “fortemente amulatadas e cabelos cacheados”. Somado a isso, Monteiro Lobato argumenta que Paulo usava o corte escovinha para esconder o "pixaim", segundo o escritor. Contrariamente, o biógrafo não encontrou retratos ou caricaturas de Paulo com esse penteado, destacando que ele ficou careca muito cedo. Embora a versão de Monteiro Lobato não pareça improvável, é ressaltado que a foto oficial para a Academia de Letras foi bastante retocada, especialmente o nariz, de perfil, afinado, diz Rodrigues.

Retomando a linguagem de João do Rio em sua obra, ainda que deixasse claro que era a favor da reforma do sistema penitenciário, com o fim da pena e o foco na ressocialização do indivíduo, o escritor não deixa de lado o teor de julgamento sobre seus personagens. Em Alma Encantadora das Ruas, os termos utilizados para se referir aos integrantes de religiões de matriz africana que o autor encontrou em um centro de detenção, eram: “negros degenerados”, “negros capangas com as bocas sujas”, “mulatos com contrações de símios”, entre outros termos pejorativos.

Essa discriminação de Paulo se difere, por exemplo, à literatura de Lima Barreto, que denunciava a desigualdade entre as classes e as condições em que negros estariam submetidos no Brasil pós-abolição. Mais do que a diferença dos autores no campo literário, a relação pessoal entre eles não era nada amistosa. Inclusive, no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, sobre a imprensa e o jornalismo brasileiro da época, Lima fez duros ataques a João do Rio, que estava retratado na obra sob o pseudônimo de Raul Gusmão. Ele é mencionado como “covarde moral”, “mescla de suíno e de símio”, “fisionomia de porco Yorkshire”, entre outros termos ofensivos. Segundo o biógrafo Rodrigues, Paulo Barreto nunca respondeu ou dedicou uma linha à Lima.

Ainda sobre escritores contemporâneos que utilizavam da linguagem da crônica-reportagem, pode-se destacar o trabalho de Vagalume, vulgo para Francisco Guimarães, jornalista negro que iniciou a historiografia do samba com o livro Na Roda do Samba, escrito em 1933, e mencionado na “Pensata” da edição anterior, nº 146, do Cândido. Diferente da relação de distanciamento e julgamento que João do Rio tinha com a fonte, Vagalume tinha o respeito dos sambistas da época e destacava o lado positivo dos personagens que costumam aparecer somente nas páginas policiais da grande imprensa.

Mas afinal, de que forma João do Rio retratou os africanos e seus ascendentes em seus textos? A pesquisadora Juliana Farias analisou as crônicas do autor que veicularam no jornal Gazeta de Notícias entre 1904 e 1905, e que estão disponíveis no site da Hemeroteca Digital Brasileira. Parte dos textos que foram escritos nos meses de fevereiro e março de 1904 foram incluídos na coletânea As Religiões do Rio.

Nessas crônicas, João do Rio investigou cultos evangélicos, judaicos, maronitas, satânicos, além de fisiólatras, cartomantes e integrantes da igreja positivista. De acordo com Juliana, os textos sobre o desconhecido “mundo dos feitiços” foram os que mais chamaram a atenção dos leitores cariocas. Veja abaixo, por exemplo, parte de uma crônica sobre sua visita aos cordões carnavalescos da Cidade Nova, bairro da zona central do Rio de Janeiro.

 

Quem diria, vendo na terça-feira gorda, uma ronda feroz de negros suados, esfregando os tamborins e xequeres, vestido de belsutinas sujas, trazendo nos braços cobras enroscadas, lagartos e jabotis, que essa ronda fétida, nascida na África, é a irmã gêmea das festas de Dionísio e do carnaval das aldeias medievais? [...] Deus misericordioso! Como estudando o atrasado cérebro africano admira a gente a escassa inventiva humana!

(Gazeta de Notícias, 25 de junho de 1905, p.1)

 

Em sua pesquisa, Juliana destaca que a associação entre “raça preta”, crime, loucura, embriaguez e prostituição era constante nos textos de João do Rio sobre os africanos. A seguir, parte de reportagem sobre as iaôs – como são chamados os filhos de santo que já passaram pela iniciação no candomblé e no batuque – carregado de relações pejorativas. De acordo com o cronista, as mulheres iaôs

 

[...] abundam nesta Babel da crença, cruzando-se com a gente diariamente, sorriem aos soldados ébrios nos prostíbulos baratos, mercadejam doces nas praças, às portas dos estabelecimentos comerciais, fornecem ao hospício a sua cota de loucura, propagam a histeria entre as senhoras honestas e as cocotes, exploram e são exploradas, vivem da crendice e alimentam o caftismo inconsciente.

(João do Rio. As Religiões no Rio, p. 36.)

 

A partir da leitura da obra As Religiões no Rio, é possível afirmar que para João do Rio, parecia não ter dúvidas de que estava lidando com homens e mulheres afrodescendentes de “raças inferiores”. Isso fica evidente em momentos em que João diz que o personagem Sanin tinha “cérebro restrito de africano”, ou que ele trazia do centro da África “a capacidade poética daquela gente de miolos torrados” e, após abrir a carteira e convencer Sanin de que “todas as suas fantasias, arrancadas ao sertão da África, não valem o prazer de as vender bem”, concluiu no final de sua crônica que “Dinheiro, mortes e infâmia: as bases desse templo formidável do feitiço”.

Em síntese, ao examinar as crônicas de João do Rio, é inegável que estas apresentam elementos que corroboram a presença de representações racistas. As observações detalhadas de Juliana Farias sobre as associações frequentes entre raça, crime e estigmatização, bem como a análise crítica do autor em relação às religiões de matriz africana, revelam uma perspectiva carregada de estereótipos negativos.

Contudo, segundo o biógrafo Rodrigues, em um texto mais recente, ele acredita que estamos distantes de um preconceito mais particularizado. O biógrafo argumenta que os pesquisadores mais engajados deveriam se abster de fazer julgamentos sobre escritos de 1904 usando os critérios do século XXI. Se por um lado as representações de João do Rio podem ser interpretadas como expressões de preconceito, por outro, é possível argumentar que elas também refletem os estereótipos disseminados na sociedade da época.

Em contrapartida à visão do biógrafo, ao contextualizar essas representações no cenário histórico e social do início do século XX, não se pode ignorar o fato de que João do Rio contribuiu para a disseminação de concepções preconceituosas em suas crônicas. Nesse sentido, é crucial reconhecer e confrontar a existência desses elementos racistas em sua obra, promovendo um diálogo crítico sobre a herança literária que, por vezes, perpetuou estigmatizações prejudiciais às comunidades afrodescendentes.

Portanto, ao confrontar de maneira franca a presença de representações racistas nas crônicas de João do Rio, contribui-se para uma análise mais aprofundada e consciente de seu legado, incentivando reflexões sobre como a literatura do passado pode influenciar a percepção racial contemporânea e a necessidade de questionar atitudes discriminatórias em todas as formas de expressão artística.

 

1 O artigo preserva as palavras e termos dos textos originais citados, embora estes não estejam alinhados com as diretrizes editoriais dos redatores do jornal Cândido

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.