PENSATA | Carlitos Marinho 31/01/2024 - 11:35

Um repórter negro na roda do samba

Após 90 anos, o livro Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães (Vagalume), é relançado e marca a importância da história do samba

 

Na Roda do Samba vai desmascarar muita gente e, principalmente, os consagrados autores de produções dos outros”, comentou o jornalista Vagalume com o sambista De Chocolat, em um dos livros que iniciou a historiografia do samba. O Na Roda do Samba, livro originalmente escrito em 1933 por Francisco Guimarães, ganhou nova versão em 2023, pela editora Serra da Barriga, e foi organizado pelo historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Nesta obra, Vagalume presta uma respeitosa homenagem aos criadores do samba, e, ao mesmo, denuncia a exploração comercial da música que surgia por meio da indústria fonográfica e de uma elite de poetas letrados que tinham acesso às gravadoras.

Antes de ser jornalista — e ser conhecido como Vagalume —, Francisco Guimarães foi um jovem negro nascido no Rio de Janeiro em 1877 e só se alfabetizou porque conseguiu uma vaga no Asilo dos Meninos Desvalidos. Essa educação foi dada no contexto da pós-abolição em um dos Institutos Profissionais criados para dar futuro aos jovens beneficiados pela Lei do Ventre Livre. A formação educacional permitiu que Francisco trabalhasse como auxiliar de trem na Estrada de Ferro Central do Brasil. Nesta atividade, conheceu um jornalista que cobria as notícias da ferrovia para um jornal da capital.

Passou pela redação do Jornal do Brasil e se dedicou a registrar o cotidiano dos subúrbios cariocas ainda incipientes, os distritos policiais, a rotina dos trabalhadores da noite e as rodas dos primeiros batuques daquilo que, posteriormente, seria reconhecido como samba. Tal experiência contribuiu para que o jornalista desenvolvesse um estilo próprio de relato, sempre tratando os diferentes espaços da sociedade com equidade, sem nunca deixar de registrar os personagens relevantes para o subúrbio carioca. Para se ter noção, Vagalume chegou a dirigir a primeira sucursal suburbana do JB, no bairro Engenho de Dentro.

A informação sobre a vida e a obra de Vagalume citada anteriormente foi resultado de dez anos de trabalho incansável de Leonardo Pereira. O historiador contou que demorou para organizar a nova edição do livro Na Roda do Samba porque não tinha acesso à publicação original. Na internet, facilmente é possível encontrar uma versão online em PDF do livro, contudo, Leonardo alertou que essa adaptação é uma transcrição feita com muitos erros e que não é confiável. Há cerca de um ano, o editor Jaime Filho, da Serra da Barriga, conseguiu a versão primária de 1933. A partir desta descoberta, se iniciou o trabalho da editora que se dedica a divulgar o pensamento de autores e personagens negros, como o de Vagalume. A cuidadosa organização desta edição recebeu notas e posfácio que proporcionam ao leitor uma melhor fruição do texto original.

O ponto central do livro escrito por Vagalume é a crítica à indústria musical que passou a associar o gênero samba com cantores brancos, como Francisco Alves, retratado na obra como Chico Viola. Também escrito no mesmo ano, o jornalista e poeta Orestes Barbosa, em consonância com a posição defendida por muitos intelectuais modernistas, apresentou a história do ritmo do samba, que encobria as disputas e os conflitos que fizeram parte do processo de afirmação do gênero musical. Ou seja, escritores que não faziam ideia sobre as peculiaridades do movimento cultural que abrangia o samba, forjavam uma brasilidade de cima para baixo, como apontado por Pereira no posfácio da nova edição.

Mas afinal, qual seria o verdadeiro samba defendido por Vagalume? Primeiramente, não é qualquer um que entra na roda. Para o autor, o samba carioca surgia nos morros da Favela de São Carlos, da Mangueira, do Salgueiro ou do Querosene, que eram os “morros-academia”. Só depois iria à aprovação do povo do Estácio e seguia à consagração da gente do Catete. Bom, para ser mais específico, o samba nascia “no alto do morro. No coração amoroso de um homem rude cuja musa embrutecida não encontra tropeços para cantar as suas alegrias e as suas mágoas em versos mal alinhavados, que traduzem o sentir de um poeta que não sabe o que é metrificação nem tem relações com o dicionário”, disse Vagalume.

E onde morre o samba? O samba perde sua essência e é esquecido quando deixa de ser uma expressão autêntica nas rodas de samba e se transforma em um produto comercial, apenas para gerar lucro para editores e outros produtores. Para o autor, o samba pertence aos trabalhadores e ambientes negros. Na roda do samba destaca o lado positivo dos personagens que costumavam aparecer somente nas páginas policiais da grande imprensa. Vagalume escreveu crônicas sobre o mundo do carnaval, do samba, da religiosidade e, por conta disso, ao longo da primeira república, talvez seja o maior especialista da imprensa sobre temas relativos às culturas negras. Esta obra é resultado do fruto do trabalho de Francisco Guimarães como jornalista. O samba deve muito a ele.

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.