Os bastidores da vida literária 10/07/2015 - 14:00

A correspondência entre escritores é cada vez mais utilizada nos estudos literários e ajuda na compreensão de temas que aparecem no período em que narrativas e poemas foram produzidos

 


Marcio Renato dos Santos

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Mário de Andrade recebeu 7 mil cartas e fez da correspondência um meio para afirmar o modernismo brasileiro. Foto: Lasar Segall / Reprodução

Fernando Sabino e Otto Lara Resende. T.S Eliot e Ezra Pound. Rubem Braga e Vinicius de Moraes. Goethe e Schiller. Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Clarice e Elisa Lispector. Todos os autores mencionados trocaram cartas. Alguns até com mais de um interlocutor. Mário de Andrade, por exemplo, se correspondeu com inúmeros amigos, de Câmara Cascudo a Tarsila do Amaral. E o conteúdo dessas correspondências adquire, cada vez mais, valor — inclusive para os estudos literários.

O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Pedro Theobald afirma que, durante anos, as informações das correspondências entre escritores foram desprezadas pelos estudiosos — consideradas inúteis para o estudo da produção literária. “Acreditava-se que era adequado manter uma separação rígida entre o que a pessoa era e o que produzia. Hoje, no entanto, percebe- se que praticamente nada é desprezível, as informações mais ínfimas podem servir não só para documentar a biografia de um autor como também esclarecer o seu processo de criação, a gênese de sua obra”, diz.

Já a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Diana Junkes Bueno Martha observa que não se deve ler uma obra em função da história de vida do artista. Mas, pondera a estudiosa, as cartas são um rico material tanto para a realização de pesquisas como para compreender a biografia dos escritores: “Por meio de cartas são revelados projetos da obra, reflexões sobre a literatura e a arte. A partir da interlocução entre escritores é possível, muitas vezes, compreender ideários estéticos de modo amplo.”

O professor da Universidade São Paulo (USP) Marcos Antonio de Moraes comenta que as cartas, principalmente a partir dos românticos, mostram que os autores começavam a ter consciência da figura do escritor na sociedade — a necessidade de ser reconhecido publicamente aparece, por exemplo, na correspondência entre Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo.

Moraes destaca o esforço de Castro Alves em busca da consagração. Em 1868, o poeta pernambucano vai ao Rio de Janeiro, procura José de Alencar, para quem apresenta alguns de seus textos. Alencar publica carta aberta em um jornal e, em seguida, Machado de Assis também elogia publicamente Castro Alves. “A correspondência de Castro Alves mostra como ele se movimentou para conseguir divulgação. O poeta, como tantos autores, fazia muita política literária”, comenta Moraes.

Gigantismo epistolar

Mário de Andrade recebeu 7 mil cartas, das quais Marcos Antonio de Moraes reuniu mais de duas mil, algumas com mais de 60 páginas. “A partir do modernismo, a carta deixa de ser, por exemplo, algo vazio ou um mero gesto de cordialidade”, afirma Moraes, que fez mestrado e doutorado sobre o assunto e atua no Instituto de Estudos Brasileiros na USP, onde está à frente de pesquisas sobre o acervo de escritores.

As cartas escritas pelo autor de Macunaíma, ressalta o pesquisador da USP, revelam dedicação e cuidado com a escrita. Na correspondência que enviou dia 26 de setembro de 1924 para Câmara Cascudo, Andrade discute algumas questões com o interlocutor, entre as quais a pertinência, ou não, de publicar crônicas em forma de livro: “Crônica é pra jornal. Livro é uma concepção mais inteiriça e completa. As suas crônicas ficaram muito bem num jornal. Em livro a maior parte delas perde 90% da graça e oportunidade.”

Em carta destinada à Tarsila do Amaral, com a data de 15 de novembro de 1923, Andrade faz restrições à amiga e aos colegas modernistas que, naquele contexto, estavam na Europa: “Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. […] Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem.”

Marcos Antonio de Moraes analisa que Mário de Andrade usou as cartas para, bem mais que estabelecer diálogo, criar e consolidar o projeto do modernismo. “A correspondência dele revela o esforço para afirmar uma geração. Mário de Andrade utilizou as cartas como uma forma de legitimar o modernismo”, comenta Moraes, que conquistou Prêmio Jabuti com os livros Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira (2000) e Câmara Cascudo e Mário de Andrade — cartas 1924- 1944 (2010).

Escreveu, é pra publicar

Moraes acredita que o interesse, contínuo e crescente, de pesquisadores e do público leitor pelo conteúdo das correspondências de escritores tem explicação: “Literatura é processo. O livro é o resultado final e as cartas revelam questões pouco conhecidas, como intenções, negociações e tensionamentos.”

Monteiro Lobato, o primeiro escritor brasileiro a publicar a própria correspondência, tinha noção de que haveria leitores para o diálogo escrito e, em um primeiro momento, privado entre autores. Em Barca de Gleyre (1944) estão reunidas algumas cartas que Lobato trocou com o amigo escritor Godofredo Rangel.

Na mensagem escrita dia 8 de julho de 1921, o autor do Sítio do pica-pau amarelo, e também editor, faz uma sugestão, comercial, ao interlocutor: “Rangel, a publicação dos teus contos virá melhorar a saída do romance, de modo que é mais comercial imprimi-los agora do que depois. E não te incomodes com a parte econômica do negócio — se dá ou não dá lucro para a casa. É coisa que não tem a mínima importância. O importante é que você vá se imprimindo e imprima-se todo — nem que o editor leve a breca.”

 

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