OUTRAS PALAVRAS | Mulheres que circulam pela cidade 22/10/2025 - 17:31

Por Naomi Mateus


O Cândido publica o especial Outras Palavras, uma série de entrevistas realizadas pela equipe do jornal com as escritoras e artistas participantes das mesas redondas do evento “Ocupação Mulheres Arquivadas” — ação em parceria com o Projeto Mulheres Arquivadas e a Biblioteca Pública do Paraná — realizada no mês de março. 

A edição "Mulheres que circulam pela cidade" contou com Bruna Alcantara, Cris Pagnoncelli e Maria Vitória Rosa. O bate-papo girou em torno da escrita, produção artística das mulheres na cidade de Curitiba e a relação desses processos com suas vivências.

 

Bruna Alcantara
Bruna Alcantara

 

Bruna Alcantara é artista visual e jornalista. Sua pesquisa artística explora diferentes campos da cultura e dos canais de informações para trabalhar temas como as violências do espaço público e político, assim co­mo as relações do corpo feminino no contexto social e histórico. Nas ruas ou nos objetos de arte, muitas vezes se apropria da sua própria imagem enquanto mãe, através de autorretratos e ressignificação desses objetos: usa seu corpo para dar amplitude a uma voz plural feminina. 

A expressão "flâneuse" define a mulher como observadora do espaço urbano. Em sua prática, como o analisar a cidade se relaciona com sua arte/escrita a partir de uma perspectiva feminina? 

Acho que primeiro é importante falar que fica evidente que os espaços públicos não foram feitos por e para mulheres. É opressor por si só, estar num espaço com nomes de homens, estátuas de homens, seguros para a figura masculina. A mulher, como observadora desse espaço, e também como corpo presente e inserido nesse espaço, já cria por si só uma tensão nele. Meu trabalho de arte se relaciona com essa tensão, porque parte dele está nas ruas através da linguagem do lambe lambe, discutindo o papel fundamental da mulher imposto em grande escala ao público. A relação é direta, a reação também, já que comumente minhas obras são tiradas, arrancadas das paredes.


O que lhe causa inspiração?

Que o mundo seja mais igual. Construir um lugar melhor pro coletivo, para o meu filho, para os filhos e filhas de quem está lendo, futuro. Mesmo que isso parta da indignação, e muitas vezes da raiva, é uma maneira de gritar, de dizer que estamos aqui, que somos muitas. Não gosto de pensar que faço por mim, gosto de pensar em representatividade. Se chamam isso de panfletário, se torcem o nariz, se não vende, não é o que me importa. Me inspiram as histórias de outras mulheres, poder contá-las, recontá-las, recriá-las.


Que perguntas você traz para sua escrita/arte?

São muitas, mas acho que a maioria tem a ver com igualdade. Muitas vezes são perguntas óbvias, que ainda precisam ser feitas e repetidas diariamente, para que direitos adquiridos não se percam com facilidade. É preciso sempre colocar tudo em dúvida. Isso é extremamente cansativo para nós mulheres.


Como funciona seu processo de criação?

Não existe um processo metódico, uma rotina. É uma constante, eu nunca paro de ser artista, como um botão que desliga. À medida que eu acolho a arte, ela está sempre aqui: no que eu vejo, consumo, crio, vivo. Meu ateliê tem linhas, revistas antigas, tintas e pincéis, fotografias, tecidos,um material diverso, para a diversidade de sentimentos que podem me atingir e me causar impulso de criação.


Como suas vivências atravessam suas obras?

Minhas vivências são as minhas obras. A partir do momento que se cria de maneira declaradamente autobiográfica, toda vivência está ali, aos olhos da obra ma­terializada. 


Cite uma artista que é referência para o seu trabalho.

São tantas, mas atualmente ando apaixonada por Tracey Emin novamente (já fui apaixonada por ela num passado). E claro, as mulheres que me cercam me inspiram mais que ícones que não conheço: amigas, irmãs, mãe, avós, estou sempre lembrando de falas, cita­ções, simpatias, ensinamentos, choros e risadas.

 

Cristina Pagnoncelli
Cristina Pagnoncelli

 

Cristina Pagnoncelli é artista visual, designer e muralista. Com mais de 18 anos de experiência no mercado criativo nacional e internacional, é formada em Design Gráfico pela PUC-PR, tem pós-graduação em Ilustración Creativa pela Escola de Disseny i Art (Barcelona, ES) e especialização em Visual Branding pela School of Visual Arts (Nova York, EUA). Também é educadora artística e curadora, com foco na igualdade de gênero e no protagonismo feminino realizando projetos como o "LUTE TODOS OS DIAS" – uma iniciativa social que incentiva a arte e conecta mulheres em todo o Brasil.


A expressão "flâneuse" define a mulher como observadora do espaço urbano. Em sua prática, como o analisar a cidade se relaciona com sua arte/escrita a partir de uma perspectiva feminina?

É impossível não ser atravessada pela nossa cultura ur­­bana todos os dias. Como uma mulher artista e ciclista, que constantemente ocupa as ruas com um corpo que nem sempre é bem vindo ou se sente seguro aonde quer que vá, é inevitável que eu coloque todas essas questões e percepções na minha arte. Contar a nossa história, mostrar a nossa visão de mundo, colocar a nos­sa voz na rua é essencial para que sejamos vistas e, quem sabe, mais respeitadas em nossa existência e vivências. 


O que lhe causa inspiração? 

A vida em geral. Viver. Me sentir viva. Pedalar, sentir meu corpo em movimento, dançar, ouvir música, criar, pintar. Corpo e mente conectados consumindo ou fazendo arte. 


Que perguntas você traz para a sua escrita/arte? 

Sempre busco retratar como poderia ser um mundo mais igualitário e justo para nós, mulheres. 


Como funciona seu processo de criação? 

Pode variar, mas normalmente mergulho em pesquisas, leituras, sons e visuais relacionados ao contexto do projeto que estou envolvida. Muitas vezes apenas viver o dia a dia, estar atenta e presente já é o suficiente para que a criatividade aconteça, nos mínimos detalhes, nas coisas sutis e simples do cotidiano. 


Como as suas vivências atravessam suas obras?

Impossível separar a artista de sua arte. Acredito que tudo que faço e coloco no mundo passa pelas minhas experiências sendo uma mulher desejante, curiosa, a­paixonada pela vida, com vontade de criar e deixar o mundo mais colorido. 


Cite uma artista que é referência no seu trabalho. 

São tantas. Difícil citar uma só. Mas deixo o nome de Barbara Kruger, seu trabalho já me influenciou em vários momentos na minha carreira.

 

Maria Vitória Rosa
Maria Vitória Rosa

 

Maria Vitória Rosa é escritora, atriz e ativista curitibana. Tem dois livros de poesia publicados: Poética Pandêmica, Hábitos Políticos (2023) e No Limbo (2024), com lançamentos na Feira Literária do Sesc, Biblioteca Pública do Paraná e Feira do Poeta. Fez sua estreia como atriz e dramaturga no teatro com a peça "A Neta do Sol" em 2024, reapresentada no Festival de Teatro de Curitiba em 2025. Também trabalha na Câmara Municipal de Curitiba, se dedicando à construção de uma cidadania integral, plena e igualitária para pessoas LGBTQIAPN+. Em suas obras aborda questões de identidade de gênero e vivências sociais de uma mulher travesti.


A expressão "flâneuse" define a mulher como observadora do espaço urbano. Em sua prática, como o analisar a cidade se relaciona com sua arte/escrita a partir de uma perspectiva feminina?

Acho que deixamos esse lugar de meras observadoras para trás quando conquistamos nosso espaço político com a luta das sufragistas e posteriormente das feministas. Nos tornamos agentes históricas ativas com o controle absoluto de nossas narrativas. E como mulher trans, minha escrita tem o dever de ser política, de denunciar as violências que ainda atravessam as mulheres. A cidade é apenas o palco desse show grotesco que o patriarcado financia e alimenta com infindáveis contradições para ele continuar existindo. Meu interesse está na vida das mulheres trabalhadoras do nosso tempo histórico, pois são essas mulheres que ocupam a cidade hoje que me inspiram a criar, que são de fato a revolução.


O que lhe causa inspiração?

São três pontos bem distintos, mas que considero cruciais no meu processo: meus sonhos, a realidade social que estou inserida e minha vida afetiva. Vou falar mais desse lugar onírico pois é o mais influente em meus trabalhos: é um negócio meio Paul McCartney que eu sonho com o poema, acor­do e já tento materializá-lo. Engraçado que esses meus so­nhos possuem uma estrutura épica, um formato literário, arcos narrativos e por aí vai. Esse lugar parece ser a fonte da minha criatividade, mas acima de tudo é também onde me conecto com as divindades que acredito. É lá que encon­tro as musas.


Que perguntas você traz para a sua escrita/arte? 

Normalmente eu me perco nas perguntas, sou bem avoada. Mas gosto de demarcar pautas fundamentais que permeiam minhas obras e que tento abordar de forma poética. Acho que os marcadores principais seriam: a existência e a história de uma mulher trans lésbica, bruxa, poetisa, atriz e ativista política de esquer­da. Tudo que eles mais odeiam, esse é o mote e o pon­to de partida das minhas obras.


Como funciona seu processo de criação?

Na força do ódio. No caso, ódio como potência criativa e impulso de vida. Tipo aquele ódio que faz a gente levantar da cama todos os dias, esse movimento que nos impele. Na minha escrita, ele aparece como vontade de produzir, às vezes é mais que vontade, é obrigação mesmo. Estou sempre criando projetos literários, e a partir do tema pensado eu monto o livro com escritos novos e antigos dentro dessa temática. Tenho sempre um bloco de notas por perto e minha produção nasce e cresce da produção manual, me sinto mais à vontade escrevendo a mão para depois transferir para o digital.


Como as suas vivências atravessam suas obras? 

Ser uma mulher trans/travesti é por si só um marcador social cheio de camadas, problemáticas individuais e coletivas, nuances que nossa sociedade ainda não consegue lidar com seriedade. Passei quase toda a vida achando que carregava uma maldição por ser diferente. Foram muitos anos para eu entender meu desabrochar, para a minha primavera chegar. Depois que me dei conta que essa maldição era na verdade minha mis­são, tudo mudou. Ser uma mulher trans é uma missão política, espiritual e principalmente artística, para mim. Uso toda essa potência de uma vivência dissidente para transgredir, para lutar contra a opressão. A arte e a escrita são minhas armas nessa guerra. Nós, pessoas trans, demoramos muito para ocuparmos os espaços que nos foram (cis)sistematicamente negados por tanto tempo e não estamos dispostas a perder um centímetro sequer dessas conquistas. Quero usar essa opor­tunidade histórica para registrar, imprimir e transcre­ver as vivências de uma escritora travesti.


Cite uma artista que é referência no seu trabalho. 

Cecília Meireles.

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