NICOLAU | Entrevista apócrifa com Poty 26/04/2024 - 02:54

*Psicografada por Valêncio Xavier

 

De cara, se você não sabe o que é, pegue o Aurélio e verá que vindo do grego apókryphos, através do latim apocryphu, diz-se de obra ou fato sem autenticidade, ou cuja autenticidade não se provou. Ou ainda: entre os católicos, diz-se de escritos de assuntos sagrados não incluídos pela Igreja no cânon das escrituras autênticas e divinamente inspiradas.

Veja que você tem aí duas opções, e eu, se fosse você, ficava logo com a primeira, porque nesse negócio de religião eu sou um relapso, herege mesmo. Quan­to ao Poty nunca discuti religião com ele, porque acho que religião, e cinema, não se discute, é questão de foro íntimo de cada um. Sei que o Poty é de muito desenhar, gravar e entalhar santos, notadamente o São Fran­cisco, aquele dos pássaros. Sei ainda que, na casa dele, sempre estão de prontidão as imagens dos mártires São Cosme e São Damião, enfeitados com fitas colori­das com um pires na frente para quem quiser (não é obrigatório) depositar uma ou mais moedas e mesmo notas. Sei ainda da devoção dele por Nossa Senhora da Aparecida, porque presenciei (não gosto nem de lembrar) o Poty, num momento de grande dor, invocar a Padroeira do Brasil pedindo que ela terminasse logo com aquilo. Mas, não se deixe levar por conclusões a­pressadas, talvez isso não queira dizer religiosidade, eu mesmo na hora que pensei que o avião ia cair invoquei não só Nossa Senhora, mas também o Menino Jesus, Jeová, Buda, Alá, o Espírito Santo, Maomé e o aia­tolá Khomeini.

Bem, se você já escolheu qual o apócrifo, vamos deixar de papo furado e vamos começar logo com essa entrevista, porque, certamente, terá outras coisas mais importantes para ler.

Liguei para o Poty, a cobrar, no Rio de Janeiro, ele atendeu:

— Que história é essa de me ligar a cobrar? Quer me levar à falência?

— É que a Secretaria da Cultura me encarregou de fazer uma entrevista contigo para uma revista que está lançando…

— Comigo?

— Parece que eles acham que você é um artista importante e, como já fizemos uns livros juntos, acham que sou a pessoa indicada para entrevistá-lo... alô... alô...

O sacana desligou. Experimentei mais três vezes ligação a cobrar e o Poty não aceitou. Tive de ligar DDD, eu pagando: o quanto eu não me sacrifico por um amigo ingrato?!

— Escuta aqui, Poty, falta de educação a sua desligar na minha cara. Tenho culpa se eles insistem na entrevista?

— Invente qualquer coisa.

— Olha aqui, Poty, não dá porque inclusive tem uma pergunta que eles querem que eu faça. Querem saber, eu não entendi direito a pergunta...

— Isso não é novidade, burro do jeito que você é.

— Escute aqui, Poty.

— (BRABO) E pára com esse troço fascista de “Olhe aqui”, “Escute aqui”. Isso é coisa que você aprendeu na televisão.

— Mas, Poty, olhe aqui.

 

— Viu, viu?! Taí você de novo com esse linguajar nazista.

— Tá bom, ta bom. O que eles querem saber é como você conseguiu triunfar, se o fato de você ter saído de Curitiba e mudado para o Rio teve influência.

— Vá à merda!

Outra vez me desligou o telefone na cara, deve ter achado a pergunta meio idiota; lembro uma vez que ele me falou: “Terrinha de loucos essa de vocês! (Na verdade terrinha dele que é curitibano; eu, apesar de não ter culpa disso, sou paulistano.) Tenho a impressão que se eu voltasse a morar aí, em quinze dias estava todo o mundo me metendo o pau”. Sabe o que eu respondi? “Não dou nem tanto tempo assim, em menos de uma semana estaria todo mundo dizendo que você desenha mal e é um chato. Curitiba toda te paparica e manda pedir entrevista porque você mora no Rio e fez carreira por aí.”

Como sou um camarada persistente, ligo novamente:

— Outra vez, que insistência! Vão te pagar pela entrevista?

— Diz que vão. — e antes que me desligasse o telefone na cara, mudei de tática — Olha aqui, Poty.

— De novo esse linguajar nazista de televisão.

— (INSISTO) Olha aqui, Poty: Quem dirigiu “A Sombra da Guilhotina”?

— Lá vem você com perguntas do primeiro ano primário. foi:

 

1

— É claro que na sua ignorância nunca ouviu falar em William Cameron Menzies!

É claro que eu já tinha ouvido falar num dos maiores diretores de arte da história do cinema, responsável entre outras coisas pela direção de arte de “E O Ven­to Levou”. Mas não quis irritar o Poty dizendo que ele se enganara, que “A Sombra da Guilhotina” era do Antony Man e não do William Cameron Menzies. Falei foi isto:

— Não só ouvi falar como vi um dos únicos filmes dirigidos por ele, “Things to Come” uma ficção científica de 1939, inspirada no livro de H.G. Wells. (Eu sou brilhante, confesse!)

— Acabou?

— Yes.

— Mentira, você nunca viu um filme inteiro em toda sua inútil vida.

— Não só vi como tenho uma cópia em vídeo em casa e te convido para vir assistir.

— Deus me livre.

— E tem mais, tenho o "My Darling Clementine", do John Ford, que você curte horrores.

 

2

 

— Nunca, nunca. Never more, disse o corvo: a hora, a hora da meia-noite que apavora. O Corvo de Poe, na tradução de Machado de Assis.

— A do Machado já era, tenho a tradução que o Reynaldo Jardim e a Marilu Silveira fizeram para meu filme. Bem que você podia ilustrar.

— Já está você me explorando.

— Olha como é melhor do que a do Machado: É meia-noite, tenebrosa meia-noite/ Em funda melancolia eu penso/ sobre um fascinante livro de ciências ocul­tas. E vai por aí afora.

— Tá bom... deixa ver... vou ver se ilustro.

 

3

 

 

— Mas não mude de assunto, venha a Curitiba ver o "My Darling Clementine" no meu videocassete.

— Nunca, nunca assistir numa telinha o que foi feito para a magia da tela grande.

— Ah, peguei-te na mentira! Leia este bilhete que você mesmo escreveu anos atrás, do seu próprio punho.

 

4

 

— Não quer dizer nada, escrevi em condescendência a você, mas não adoto.

— Bem, vamos continuar a entrevista, Poty.

— Faça uma coisa apócrifa.

— Lá sei o que é isso (eu ainda não tinha ido olhar no Aurélio).

— Inventa qualquer coisa e diga que fui eu quem disse. Capricha e faça a coisa a mais ridícula possível.

— Poty, a coisa é séria. Responda minhas perguntas: como você começou a desenhar?

— Sei lá, faz tanto tempo.

— Sabe o que acho de sua arte?

— Não quero saber e afinal a entrevista é comigo ou com você?

— Tenho culpa se você não fala. Você espalha o boato de que não gosta de falar, de dar entrevistas, e manda tudo que é chato falar comigo, como se eu fosse seu porta-voz. E eu não sei nada do artista Poty.

— Que você é um ignorante todo mundo sabe, não precisa ficar repetindo.

— Então se é para eu inventar, vou dizer que você é profundamente inspirado pelas gravuras do Okusai.

— Mentira, só fui conhecer gravura japonesa muito tempo depois que eu desenhava.

— Se a entrevista é minha, Poty, digo o que eu qui­ser. Inclusive vou dizer que você desenha tudo torto porque nunca foi a um oculista, que o dia em que usar óculos passa a desenhar direitinho. Vendo esse desenho que você me fez, qualquer um vê que você tem problemas na vista: me fazer feio, logo eu que sou parecido com o Paul Newman!

 

5

 

— Coitadinho! Já acabou de falar bobagens? Vou desligar porque senão o que você ganha com a entrevista fica tudo com a Telepar.

— Que por sinal está um assalto. Mas agora falando sério, sabe o que acho do teu desenho? E preste mui­ta atenção porque vou dizer algo que a crítica nunca disse sobre tua arte. A Adalice Araújo vai ficar com inveja.

— (BOCEJOS) Sou todo ouvidos.

— Olha, Poty, acho que você é um grande artista porque tua arte está totalmente voltada para o ser humano. Dentro do espaço de teus desenhos a figura humana está em maior dimensão do que qualquer outra coisa, ela é maior do que a casa, as árvores, que tudo. Sei não, mas acho que com todos os grandes artistas é assim... Você não acha, Poty... Alô, Poty, alô... alô…

— Zzzzzzzzz...… Zzzzzzzzz...… Zzzzzzzzz...…

— Pare de me gozar, estou falando sério, nunca falei tão sério... É verdade o que eu disse, basta olhar para qualquer desenho teu, mesmo os apenas esboçados, como os croquis para a segunda edição do Curitiba, de nós, onde a gente ia acrescentar umas figuras que não entraram na primeira edição porque esquecemos: a Maria Polenta, o Bento Mossurunga, o João Turim, o Alexandre da Merda, a Maria Bueno…

 

6

 

— E as vadias de agora de trás da Catedral. E como sempre, eu trabalhei, bolei, fiz os desenhos e você ficou dormindo e nunca escreveu o texto.

7

 

Mas, Poty, é que eu estive...

— Chega de desculpas esfarrapadas. Já ouvi você falar muita bobagem, por hoje chega. Vou desligar e voltar para minha leitura.

— Olha, Poty, vamos terminar essa entrevista, preciso entregar amanhã, senão me matam.

— Não tenho nada com isso. Vou desligar e voltar ao meu Swift. Vou continuar lendo as Viagens de Guliver, que apesar de escrito há tanto tempo se aplica a muita coisa de hoje em dia, inclusive entrevistas idiotas.

 

8

 

Compatibilidade de gênios

 

Poty Lazzarotto completaria 100 anos em março de 2024. Valêncio Xavier, no mesmo mês, 91 anos. Nesta entrevista apócrifa, publicada na primeira edição do Jornal Nicolau, em 1987, Valêncio imagina Poty, constrói diálogos e inventa cenas. Cria gênios, lance a lance.

Gravador, desenhista, ilustrador, muralista e professor, Napoleon Potyguara Lazzarotto (1924-1998) viveu a infância e a adolescência no bairro Capanema, em Curitiba (PR). A casa da família ficava às margens da estrada de ferro e no mesmo terreno foi montado o restaurante conhecido como Vagão do Armistício, frequentado por políticos e intelectuais. Foi colaborador da Revista Joaquim (1946-1948), editada por Dalton Trevisan. Ilustrou livros de escritores como: Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, entre outros. Suas obras podem ser vistas em várias ruas da cidade de Curitiba; na Casa do Brasil, em Paris (1950); no Memorial da América Latina, em São Paulo (1988); e outros locais, deixando sua marca nas artes visuais do Brasil e do mundo.

Valêncio Xavier (1933-2008) foi escritor e cineasta. Passou parte de sua juventude na França, onde conviveu com Marcel Duchamp, Henri Cartier-Bresson, Hans Arp e outros nomes do dadaísmo e do surrealismo. Trabalhou na TV Globo, em São Paulo, ao lado de Sílvio Santos e Jô Soares. Chegou em Curitiba aos 20 anos, trabalhou em TV`s e foi colaborador dos jornais Gazeta do Povo e Folha de S. Paulo. Em 1973, publica seu primeiro livro, Desembrulhando as Balas Zequinha, depois Curitiba, de Nós (1975), em parceria com Poty Lazzarotto, além de outras obras. O Mez da Grippe ganhou o Prêmio Jabuti (1998) de melhor produção editorial. No ano de 1975, em plena Ditadura, Valêncio deu origem à Cinemateca de Curitiba. Conhecido por exercer múltiplas funções, com características transgressoras, “Valêncio é responsável por uma instauração da pós-modernidade na literatura brasileira”, diz o artista plástico Sergio Niculitcheff, sobrinho do escritor, em entrevista publicada na vigésima nona edição do jornal Cândido, em dezembro de 2013.

*Publicamos todas as edições do Jornal Nicolau em sua versão original, inclusive com o acordo ortográfico vigente na época e a biografia dos autores(as).