Memória | Anthony Bourdain 28/09/2020 - 17:38

 

O que você faz quando seus sonhos se realizam?

 

De volta à TV brasileira com a série Lugares Desconhecidos, Anthony Bourdain (1956-2018) sempre buscou na escrita uma forma de espantar seus fantasmas pessoais

 

Luiz Rebinski

anthony
Anthony Bourdain (1956-2018) volta à TV brasileira com a série Lugares Desconhecidos. Foto: Divulgação

 

A trajetória de Anthony Bourdain pode parecer com a de um loser que deu certo na vida, como tantos que conhecemos, na arte e na literatura. Mesmo ele não sendo de fato um loser; era, sim, um trabalhador apaixonado pelo que fazia, que levava a vida com certa poesia. Um dia, em um misto de sorte, persistência e ousadia, essa poesia se materializou. O sapo virou príncipe.

Por isso parece inacreditável que há dois anos o chef mais carismático do mundo tenha afivelado um cinto no pescoço e tirado a própria vida em um hotel de uma pequena cidade francesa, onde estava para gravar mais um dos episódios das muitas séries de TV que estrelou — uma das mais famosas, Lugares Desconhecidos, acaba de estrear na filial brasileira do canal pago CNN.

Em tempos de pandemia, onde a vida parece ter menos sentido do que já tinha antes, a lembrança de Bourdain vem bem a calhar. Aliás, como o chef, que era um cidadão do mundo, se sentiria ao ser impedido de viajar para fazer seu trabalho? O que estaria pensando / escrevendo / falando sobre tudo o que está acontecendo no mundo? Certamente seria uma voz interessante nesse babelesco momento de confusão.

Até os 40 anos, Bourdain era aquele cara “normal”, antenado em coisas bacanas, como música, cinema e arte. Tinha viajado pouco, mas se alimentava de cultura (e muitas drogas) para ter experiências que valessem a pena. Suas referências, portanto, não eram muito compartilhadas, ficavam mais em uma esfera, digamos, particular, restrita a um pequeno círculo de amizade. Era bom no que fazia profissionalmente, mas não chegava a ser sensacional.

Bourdain sempre buscou na escrita uma forma de tocar pra longe seus fantasmas e dar vazão às tantas referências que tinha. E Cozinha Confidencial, lançado no ano 2000, é o ponto de virada em sua vida. Antes já havia tido uma experiência como romancista, mas com pouca aceitação. A turnê de lançamento do livro Bone in the Throat (1995), paga do próprio bolso, foi um fracasso enorme. No que não há muita injustiça, já que suas tentativas no terreno da ficção não são tão empolgantes assim, ainda que ele tenha ritmo e boa imaginação.

É em Cozinha Confidencial que Tony, como era chamado na intimidade, acha o tom exato para narrar suas aventuras, repletas de perrengues, pelo mundo elitista e blasé da grande culinária. É exatamente contra esses adjetivos, que costumam acompanhar a alta gastronomia, que Cozinha Confidencial se rebela. O livro se tornou uma espécie de antítese da “gourmetização”, termo que colou em tudo que diz respeito à cozinha e comida e se alastrou para toda e qualquer atividade humana, transformando-se em uma palavra que explica o que é metido a besta, dos campos de futebol “padrão FIFA” aos drinks fuleiros do passado que passaram a ter status de obra de arte.

 

Trincheira

Há, claro, uma ideia bem definida em Cozinha Confidencial: mostrar como funciona uma trincheira no meio da guerra, metáfora usada por Bourdain, que também se refere aos seus cozinheiros como “piratas” ou “corsários”, paramentados com argolas nas orelhas e bandanas sujas na cabeça. Uma visão romântica da atividade, mas que cabe bem no estilo Bourdain de narrar.

O livro pode não ser tão fiel ao que o chef realmente viveu (nunca saberemos), mas o jeitão como as histórias são contatas faz com que se pareçam MUITO verdadeiras. É quando o leitor é fisgado pela narrativa e se afeiçoa à persona do narrador. Há muito de On the Road na narrativa quando o autor se coloca no centro das tramas e chama para si todos os bons e maus momentos que o leitor acompanhará. A estrada, neste caso, é feita de praças (os territórios em que se divide a cozinha de um restaurante), repletas de facas, caçarolas e homens instáveis a um passo de tacar fogo no ambiente.

 

Esfregar pratos e panelas, raspar pratos, descascar montanhas de batatas, arrancar as barbichas dos mexilhões, tirar vieiras das conchas e limpar camarão não me pareciam coisas muito agradáveis de fazer. Mas foi esse humilde começo que me levou até a condição de chef. Pegar aquele primeiro serviço, como lavador de pratos do Dreadnought, me empurrou para a trilha que continuo até hoje.

 

É o mesmo modo “confessional” que Jack Kerouac utilizou para descrever suas andanças com Neal Cassady, o Dean Moriarty de On the Road. E assim como na obra do principal nome da geração beat, Cozinha Confidencial é salpicado por tudo aquilo que tira a vida do seu curso natural: drogas, conflitos, bebedeiras, maldade, paixão, ódio e bom humor (muito bom humor, mesmo quando o personagem caía em desgraça).

As partes da narrativa sobre “dicas” gastronômicas, como aquela em que Bourdain orienta o leitor a não comer peixe às segundas-feiras, fizeram a fama do livro, obviamente. A sinceridade de Bourdain em revelar o modo de operar de alguns restaurantes e cozinheiros atraiu a atenção de quem sabe do que o chef está falando, mas também daqueles que nunca pisaram em um três estrelas de Manhattan. No entanto, é o subtexto o prato principal (não resisti à metáfora fácil, desculpe!).

 

bourdain
O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama e Anthony Bourdain. Foto: Reprodução

 

Além da cozinha

Quando aparentemente não está falando sobre uma cozinha de restaurante ou o preparo de um foie gras, Bourdain mostra a que veio. As histórias sobre suas andanças pelo mundo gastronômico para sobreviver, pagar o aluguel atrasado, suas participações em festas loucas, a fissura por mais uma carreira de pó ou pedra de crack, sua mania em acordar sempre no mesmo horário, as divertidas associações entre comida e filmes (a do corte do alho com Os Bons Companheiros é uma das melhores) e os perfis psicológico-profissionais que faz de alguns ex-companheiros (o de Bigfoot é o mais inspirado) dão a Cozinha Confidencial um justo status literário. Uma prosa saborosa, para ser bem cretino, mas verdadeiro.

Sob a carapaça da gastronomia hype, releva-se um livro difícil de classificar, um olhar peculiar sobre a vida nas metrópoles, mas também com ressonâncias da observação mundana que lembram Montaigne, cujo maior legado é ter mostrado que todo assunto é assunto... Basta saber “abordar” o tema.

E foi esse olhar “para além da cozinha”, de observador montaigniano, que o levou para a televisão. A cada nova temporada de seus programas (teve vários, em diferentes canais), ele se aprofundava muito mais em análises sociológicas dos lugares que visitava do que propriamente na comida local. Sempre tentando entender o diferente, e tomando todo cuidado do mundo para nunca deixar que preconceitos enraizados em um homem branco da classe média americana saíssem com seus perdigotos. Isso fica visível nos textos em off dos programas, escritos pelo próprio chef.

 

Olhar apurado

Em um episódio de Parts Unknown dedicado ao Porto, ele claramente não concorda com as opiniões de seu entrevistado em relação à visão que americanos têm de Portugal. Sem alongar a discussão, encerra o papo com um gole de vinho. Ainda assim, não deixa de apontar marcas indeléveis da cultura que visita, como a acachapante desigualdade que viu no Brasil.

Aos poucos, Bourdain, com sua figura pouco discreta, cabeça descomunal, tipo um Frankenstein moderno, cravejado de tatuagens de gosto bastante duvidoso, vai se tornando ele mesmo o assunto dos programas. Não importa tanto a comida que está sendo preparada, mas o que ele pensa sobre a refeição e o contexto em que está inserida. Nem mesmo a presença de Obama (ainda presidente), no famoso episódio em que se encontram no Vietnã para uma refeição tradicional do país, apequena a figura do entrevistador.

Bourdain foi de trabalhador quase braçal a milionário em duas décadas. Trocou de mulher algumas vezes nesse intervalo de tempo e virou uma celebridade. Tudo de bom? Não. Havia alguma coisa fora de esquadro. Para usar um personagem que o próprio chef reverenciava, é como se uma espécie de coronel Kurtz (de Apocalypse Now) vivesse em um canto de difícil acesso de seu cérebro. Um dia Kurtz e seus asseclas saíram da caverna e incendiaram a floresta.

Mas ao passar a régua na própria trajetória, o que fica é a pergunta que o próprio Bourdain faz a certa altura de Cozinha Confidencial: “O que você faz quando seus sonhos se realizam?”.

 

LUIZ REBINSKI é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul (2016). Editou o Cândido desde sua criação, em 2011, até junho de 2019.